Vida de Escritor
O dinheiro, os prémios, as ideologias
Nunca gostei que me apelidassem de "escritora". Para mim, "escritor" é aquele que vive da escrita, e estou muito longe disso. Não é nada fácil viver-se da escrita como profissião, e o problema é que, na minha ótica, quanto mais a escrita é profissão, menos o escritor o é em essência. Isto porque, para mim, escrever é algo que acontece a pessoas que têm algo para dizer. Escrever é um acidente na vida dos filósofos, na vida dos grandes pensadores, na vida de qualquer homem ou mulher que se interesse pelo que acontece no mundo ao seu redor. Escrever é um reflexo da mente. Escrever com o objetivo de fazer disso ganha-pão retira a imparcialidade que uma mente necessita para gerar ideias, pensamento. Viver de escrever soa-me a trabalho, a obrigação. Escrever para vender é-me incompreensível, eu já tentei (há fórmulas infalíveis), mas não consigo... Não consigo produzir um 365 Dias, porque a escrita vem de meditação, de recantos profundos, e não consigo produzir com o lucro em mente. Pior para mim.
Este ano, estando desempregada, tenho tempo. Com o tempo, montei um calendário de eventos literários que possam interessar-me, e, mais importante, de prémios literários a que vou tentar concorrer com obras já terminadas. Porque amo a literatura e quero ver o meu trabalho destacado com uma dessas menções? Não, falso. Eu amo a literatura e por isso leio, os prémios literários pouco têm a ver com literatura. O motivo é outro: é porque preciso de dinheiro. Soa trágico, soa fraudulento, soa mercenário. Fui ler sobre o assunto, e descobri que não estou sozinha neste intento.
Germano Almeida, neste artigo, reflete sobre a importância dos prémios literários para os escritores, e sobre casos específicos como o de Camilo José Cela, reconhecido primeiro com o Nobel, e só mais tarde com o prémio máximo de literatura no seu país. Que dizer de Saramago, persona non grata em Portugal, um imaginário prolífero para a academia sueca? Que valem estes prémios todos, afinal? São sinónimo de boa literatura? De esforço contínuo? De carreira? De destaque entre os pares? Ou apenas um palco para gerar receitas, destacando-se um autor anual? Dar voz a um cidadão de uma qualquer nação? Mas, para se usar da voz, convém ter ideias. São poucos os escritores neste país - sobretudo das "novas gerações" que defendam grandes ideais. Paz, amor e a natureza não são bem ideais... São mais a luta da hora, politicamente correta. Quantos escritores atuais abrem a boca para falar de política? De sociedade? Li "Em Teu Ventre" do José Luís Peixoto, apenas em busca de um ideal. O autor acredita ou não acredita que as crianças tenham visto a Nossa Senhora? Dispõe-se à discussão, ao debate? Não. O livro agrada a gregos e troianos, está ali para todos. Fui ver algumas entrevistas, a ver se o ideal passava, mas o "extraordinário escritor" não se descoseu em momento algum. Diz que "o livro trata das aparições", que "são aquilo que nunca surge no livro". Saramago teria feito algo grandioso disto - e de repente lamento imenso que tenha partido sem o fazer!
O próprio autor admite que a questão da fé não tem lugar no livro - limitou-se a explorar os aspetos históricos. Com um tema tão poderoso, tão interessante, porquê fugir disso para relatar o dia a dia de três pastores num ermo do interior sem ir mais além?
Este ano hei de participar em tudo o que é prémio literário. Se, por um lado, como também destaca o autor cabo-verdeano no mesmo artigo, adoraria receber algum reconhecimento pelo trabalho que tenho vindo a desenvolver, por outro o dinheiro dava mesmo jeito. Mais jeito ainda daria o destaque: quem sabe as portas se abrissem, me visse por fim convidada para os encontros literários e festivais da mesma estirpe, para os quais nunca existi. Mas e o amargo de boca? Isto é: de vez em quando, leio um ou outro autor premiado, e fico sempre desiludida. A sensação de: é isto o melhor que foi a concurso? E depois surgem sempre várias dúvidas. A maior delas prende-se com o facto de vivermos no Sul da Europa, onde a corrupção é endémica e o nepotismo é de bom tom. Perguntamo-nos porque são sempre os mesmos a receber as mesmas graças, os mesmos convites e destaques. Tudo bem que o país é pequeno, mas porquê um leque tão curto de destacados? Destacados esses que depois vão, nos ditos festivais literários, apertar a mão aos presentes e futuros juris dos tais prémios literários... Tantos livros medíocres são produzidos nestes nichos, sem alma, sem ideal, sem perdurarem no tempo...
Tive tantas desilusões com prémios literários... Se, nos grandes portugueses de antigamente, as obras destacadas se evidenciavam pela complexidade de discurso, a exaustão das descrições, a narrativa entaramelada, a controvérsia política, os novos destacados são tão nus, tão simples, que dói. Fica sempre a dúvida: escrevo pior do que isto, ou sou apenas pior relacionada? Falta-me o tal prémio que me eleva ao estatuto de igual aos outros? Quereria eu pertencer a um consórcio de escritores? Não, eu nem me sinto escritora. A escrita sai-me nos tempos livres, quando a mente está desanuviada dos problemas do dia-a-dia.
E porque gostaria eu de receber um prémio? O dinheiro, sem dúvida. E depois? Mais dinheiro. Ou, também interessante, o sentar-me lado a lado com os "pares", aqueles que tento ler sem conseguir, aqueles cuja sorte procuro interpretar. Porque chegaram eles ali e eu, que desprezo a estrada, não consigo sentar-me na mesma cadeira? E quereria eu sentar-me nessa cadeira, dar por mim a escrever para publicar, para ganhar mais dinheiro, para que não me esqueçam? Sem nada a dizer, sobretudo sem me atrever a ofender?
Sim, não? Porquê? Sei lá. Acho que é porque não sei fazer mais nada.