Uma Família Inglesa
Com os preparativos das férias, as insónias (que me mantém sonolenta o dia todo), e os dias como ama do bebé mais delicioso do mundo, ainda não consegui terminar Uma Família Inglesa, de Júlio Dinis. Está a ser um livro maravilhoso, uma surpresa que me deixa feliz por finalmente conseguir extrair toda esta admiração e prazer de um livro nosso!
O livro segue comigo para férias, mas gostaria de deixar dois excertos de que gostei particularmente, e que exprimem um sentimento português muito verdadeiro até há pouco tempo.
Se ousamos falar de Camões, ao mesmo tempo que de Tasso, de Dante e de Milton; se ousamos apregoar o vinho do Porto, junto com o de Xerez, Château-Lafite e Tokay, é porque lhe deram lá fora o diploma de fidalguia; que por nós... continuaríamos calados."
No período da Regeneração, em que o jovem Júlio Dinis teceu esta belíssima obra - tanto em prosa, quanto em reflexões e asserções a propósito do modo de ser português e do modo de se ser inglês no seio dessa sociedade - Portugal começava a procurar alguma valorização, algum sentido de si. Havia obras públicas, tertúlias, nasciam e criavam-se gerações de excelentes pensadores, escritores, cientistas sociais. Júlio Dinis é conterrâneo de Alexandre Herculano, Eça de Queiróz, Camilo Castelo Branco. As mudanças políticas e sociais levam também a uma revolução na literatura. O jovem médico do Porto repudiou o romantismo (levado ao extremo por Camilo Castelo Branco) e introduziu-se no realismo (com laivos de naturalismo). Também me parece inovador, na sua obra, a forma como o ambiente (por exemplo, o tom violeta do quarto da jovem Jenny Whitestone) exprime a essência da pessoa que o habita e que por ele circula. Ou seja, o quarto de Jenny é simples e confortável (ali "nada mente", não há latão a fazer-se passar por metal precioso, nem vidro por pedras de maior valor, nem madeira que finja ser mármore). O escritório onde o Sr. Whitestone se dirige para saber novas dos seus negócios, por sua vez, é húmido, acanhado e soturno, o que é um ambiente claramente contrário àquele que agradaria a um jovem vivaço como Carlos Whitestone, protagonista da narrativa.
A causa disto é sermos nós uma nação pequena e pouco à moda, acanhada e bisonha nesta grande e luzidia sociedade europeia, onde por obséquio somos admitidos, dando-nos já por muito lisonjeados, quando os estrangeiros se deixam, benevolamente, admirar por nós."
Júlio Diniz, de ascendência também inglesa, dispõe do ângulo perfeito para analisar os costumes dos portuenses, e também dos ingleses desta sua família de burgueses de posses; os Whitestone. O autor tem toda a legitimidade para admitir aquilo que os portugueses nem a si próprios confessam: que só reconhecemos o que temos de bom no nosso país quando os estrangeiros lhe conferem um selo de qualidade. Até no Turismo isso é verdade - por outro lado, foi o Turismo que, nos últimos anos, permitiu que Portugal parasse, por fim, de se comparar a outras nações. Volvido século e meio da publicação de Uma Família Inglesa (1868), o boom do setor turístico em Portugal levou a que compreendêssemos, por fim, o valor dos nossos pastéis de nata, do nosso vinho, das nossas sardinhas, dos nossos enlatados, da nossa cortiça, das nossas paisagens, do nosso Alentejo, do nosso Porto (era uma ruína em 2011, quando comecei a trabalhar em turismo)!
E tudo porque os estrangeiros vieram para cá, escreveram artigos em revistas internacionais e disseram que isto é espetacular, é original, é o último reduto da autenticidade na Europa, onde há uma Itália já sobreexplorada pelo turismo, gentrificada (em Roma mal se vêem italianos), uma Paris pouco amiga de estrangeiros (por terem sido o destino mundial #1 durante anos, um Algarve inflaccionado e pejado de bares e de hotéis à beira mar. O revés da moeda é que nem todos os portugueses entenderam que os estrangeiros vêm para cá por causa das nossas diferenças, não para buscar semelhanças. Começaram a surgir restaurantes internacionais em casa esquina de Lisboa (daqueles com fotografias e explicação dos pratos) - além do bacalhau (muito bem, embora inflaccionado até às lágrimas no centro de Lisboa) - há tapas, restaurantes italianos, gelatarias, e até os fingidos pastéis "tradicionais" de bacalhau e queijo da Serra (só quem nunca comeu uns pastelinhos de bacalhau feitos à colher pela avó é que acha aquilo "tradicional"). E que dizer da loja do carroussel? A das latas de sardinhas a mais de 7,00€ cada, só por causa do ar afrancesado do sítio e da data impressa nas latas?
Enfim, o turismo há-de voltar. Mas espero que não volte o de massas. O que destruiu as baixas, o que empurrou os portugueses para fora dos bairros tradicionais, o que fez disparar o valor das casas e que atirou muitos portugueses para o limiar da pobreza (enquanto outros, os investidores, alguns deles até políticos *cof**Robles*cof* lucraram com o mercado imobiliário fechando os olhos a todos os danos colaterais).
A ver se voltamos a dar valor ao que é nosso. Sem deixarmos de ser nós.