Opinião: Maravilhoso! Ainda melhor que o primeiro volume.
"Se o homem pudesse achar um estado em que, sendo ocioso, se sentisse útil e ciente do dever cumprido, acharia uma das facetas da felicidade primitiva."
Neste segundo volume, estamos familiarizados com a miríade de personagens, já lhes conhecemos o passado e começamos a preocupar-nos com o seu futuro. Muita coisa aconteceu ao longo dos quase sete anos (1805-1812) que o livro cobre. Os soldados russos regressam de Austerlitz para a vida em sociedade, sendo que a sua prestação no exército (e na Batalha em específico) se reflete no seu estatuto social. A humanidade de cada personalidade adensa-se. Pierre, sem qualquer ligação aos palcos de guerra, foca-se na aprendizagem e na melhoria do seu carácter, bem como numa série de questões espirituais, Andrei sofre uma reviravolta na sua vida que leva a que se isole e caia em melancolia, e depois, quando o seu destino se cruza com o de outra personagem que nos é cara, vai redescobrir o prazer de estar vivo. Nikolai Rostov, também regressado a casa de Austerlitz, é agora visto como um homem pela família, mas ainda conserva alguns trejeitos da juventude. Descobrimos nele um idealista romântico, e nem a situação de ruína eminente da família o leva a agir contra os seus princípios.
Em geral, trata-se de um segundo volume passado num período de paz, em que Napoleão forja uma aliança com o Império Russo, conseguindo assim um hiato no conflito armado. A Rússia respira de alívio, decide "manter-se fora dos conflitos Europeus", mas, em simultâneo, nasce nos russos um sentimento de si próprios. Por muito que a cultura francesa continue a ser admirada nas esferas aristocráticas, surgem indícios do que é a verdadeira essência deste povo. Há uma cena em que Natacha (uma menina criada na sociedade moscovita, que usa vestidos à la mode, penteados à grega, que fala francês e vibra com a valsa austríaca), usa um lenço tradicional russo estendido por uma criada, e dança animadamente ao ritmo da balalaica que um trabalhador rural dedilha. Essa demonstração do modo de ser russo - tão natural, tão instintiva em Natacha -, por parte de uma jovem que foi criada para os maneirismos "europeus", espanta e delicia um tio que vive à margem da sociedade, e portanto distanciado desse europeísmo que vinga na aristocracia imperial.
Neste volume, começam as emoções fortes. Desiludimo-nos fortemente com algumas personagens, deixamo-nos enternecer por outras. Acompanhamos um pouco do quotidiano, das vivências daquele povo tão à margem do resto do mundo, das suas dinâmicas sociais, ideologias e excessos, bem como da sua espiritualidade e ocasional abnegação. Neste momento a narrativa subdivide-se em vários núcleos, e todos me surgem interessantes e promissores, daí que me seja tão difícil parar de ler. Ontem, por volta da meia-noite, faltavam 90 páginas para encerrar o volume. Disse a mim mesma que terminava hoje, mas que ia "ler só mais um capítulo". Quando dei por mim, tinha avançado 30 páginas, só faltavam 60, ainda assim muitas, por isso terminava hoje. Sentei-me na cama, decidida a ir beber um último copo de água antes de dormir, e quando o fiz, com o livro no colo, iniciei a leitura de um novo capítulo e despachei mais 30 páginas. Fui beber o copo de água, voltei para a cama e olhei para o livro. Que importam as horas? Só faltavam 30 páginas, podia bem lê-las assim que abrisse os olhos, mas...
Aqui está um livro que não quero que acabe, mas cuja conclusão desejo alcançar o quanto antes. Pergunto-me porque nunca lhe tinha dedicado um pensamento sério, porque me mantive desinteressada dele até agora? Possivelmente porque julguei que não teria nada em comum com os russos, que não encontraria identificação com os seus dilemas. No entanto, a humanidade dos russos é tal e qual a nossa. Os dilemas são os mesmos transversais a cada indivíduo, a cada povo. Será que Deus existe? Será este o caminho da felicidade? Se viver apenas sem causar mal, viverei bem e serei absolvido? Terei coragem para deixar ir a pessoa que mais amo, e enfrentar a solidão após a sua partida? Um ano de afastamento será a eternidade para dois apaixonados? Devemos sacrificar os sentimentos ao bem-estar financeiro, à posição social e ao prestígio das nossas relações?
Parto para o terceiro livro com renovado entusiasmo, a torcer por estas pessoas e a desejar que cumpram os seus desejos e sejam bem-sucedidos nas suas lutas. Sempre consciente de que Napoleão irá violar a aliança a qualquer instante e marchar Rússia adentro, para destruir tudo o que sempre foi familiar a estas personagens. A Batalha de Borodino aproxima-se, e com ela há-de abrir-se uma ferida sem precedentes no orgulho russo. Aquilo que foi o maior fiasco de Napoleão, que levou à retirada mais catastrófica de um exército na história militar, e que custou a vida a 375 mil pessoas, no seu balanço final, será o absoluto desastre para os Rostov, os Bolkônski e os Bezukhov? Estas famílias atravessam-se entre Napoleão e o seu objectivo, e prevejo um final épico para os seus destinos.
Opinião: Li o primeiro de quatro volumes do incontornável, assustador, megalómano, “Guerra e Paz” (1865-1869) em oito dias. Até a mim me surpreendi.
Em primeiro lugar, devo dizer que tinha um chavão ao qual recorria em diversas ocasiões na minha vida. Quando me diziam “Não leste o livro de instruções?”, referente a produto tal, eu replicava “Se tivesse tempo, lia o Guerra e Paz”. O meu interesse por esta obra nunca foi grande – tinha-o na lista dos livros que queria muito ler mas não pelo enredo em si, nem sabia se algum dia haveria de lhe pegar. Queria lê-lo por ser um daqueles livros que devemos ler antes de morrer, só para saber o porquê de tanto burburinho ao seu redor. O desejo de vencê-lo intensificou-se o ano passado, quando comecei a dedicar-me à literatura russa. Já tinha lido A Sonata de Kreutzer, que me pareceu um tanto difícil de digerir – são os nomes, a história, os diminutivos, os lugares, o modo de estar, o afrancesamento da aristocracia russa, tudo tão difícil e exótico para quem neles se inicia (por vezes até artificial, o que creio que, em Tolstoi, funciona como crítica social). Depois li Turguenev, Fumo, e pensei “embora não me fascinem, estes russos até não são tão inacessíveis quanto isso”. De Turguenev saltei para Dostoievski, porque tanta gente me afirmou, desde sempre, que Crime e Castigo é o seu romance favorito de sempre. E li-o: um desafio, sem dúvida, mas também um sem fim de emoções, desde a angústia ao riso. Regressada a Tolstoi, leio A Morte de Ivan Iliitch, que se transformou automaticamente numa das minhas novelas favroitas, e de uma simplicidade desconcertante. Atiro-me então aos Os Irmãos Karamázov, uma obra que receava ler por vários motivos: sendo o tamanho e o facto de se tratar de uma história de homens num mundo de homens alguns dos principais. Apaixonei-me por aqueles irmãos, dificilmente esquecerei o Dmitri, o Ivan e o Aliocha. Estou convencida que é outro dos livros que me vai ficar par a vida.
Tendo viajado por todas estas obras, e vendo-me em casa devido ao confinamento, comecei a estudar russo básico, o que me esclareceu mais alguns pontos sobre a cultura russa. Aportei num documentário do Youtube em oito episódios, sobre os 300 anos da Dinastia Romanov, e agora entendo que a contextualização dos reinados de Catarina, A Grande (ep. 5) e de Pavel I (ep. 6), bem como de Aleksandr I (ep. 7) me ajudaram a compreender a situação das várias camadas sociais na Rússia Imperial, bem como um pouco das suas relações com o estrangeiro.
Voltando a Guerra e Paz, Volume I, e a importância de o ter lido em 8 dias… É que este primeiro volume introduz uma miríade de personagens, lugares, ligações, interesses e estratégia militar. Também contextualiza o momento histórico, as alianças militares e algumas batalhas históricas como Austerlitz, em que o próprio Napoleão conduziu as suas tropas contra a aliança russo-austríaca. Por tudo isto, creio que será, dos quatro volumes que compõem este colosso, o mais desafiante. Quase na viragem das 200 páginas, estive prestes a desistir. De repente saía dos salões de S. Petersburgo, onde tudo era etiqueta, e da nobreza despreocupada de Moscovo, para a tomada de uma ponte algures numa Europa que sofreu inúmeras alterações geográficas desde esse distante ano de 1805. Estava no meio de ajudantes-de-campo, generais, hussardos e cossacos, com os seus sabres, baionetas, espadas e penachos. Perguntei-me se seria capaz. Mas o obstáculo não durou mais de dois capítulos, e de repente a guerra já me acelerava o pulso; começava a conhecer as personagens que vou acompanhar ao longo destas cerca de 1200 páginas em situações de vida ou morte, e a deslindar os corajosos dos cobardes, os valorosos dos mesquinhos. Comecei a preocupar-me com os seus destinos, a desejar que a Rússia triunfasse sobre o inimigo imbatível, e, terminado este primeiro volume, lancei-me ao segundo, ansiosa por acompanhar estas personagens no rescaldo dessa batalha sangrenta.
Diria que as personagens principais são as seguintes: Nikolai Rostov, Andrei Bolkônski, Pierre (Conde Bezukhov) e Natacha Rostova. Parece-me que a acção irá sempre decorrer em torno dos destinos destas personagens, auxiliadas por dezenas – se não centenas – de personagens secundárias (li algures que o romance conta com 550 personagens), o que torna esta obra tão rica e tão complexa. Muitas dessas personagens e dos eventos aqui descritos são históricos: os generais, como Kutúzov e Napoleão, o Imperador Aleksandr I que faz as suas aparições em batalha, e recepções como a organizada em honra do príncipe Bragation, felicitando-o pelo seu brio militar em Moscovo, existiram de facto.
Fiz um esquema das personagens na primeira página do primeiro volume, coisa que me ajudou a reconhecer quem é quem, quem se dá com quem e, principalmente, a associar os nomes, diminutivos, famílias e títulos a cada personagem. Foi assim que entendi que Hélène é Elena, e também Liólia. Anna também é Annette, Piotr também é Pétia, e Petrushka, Mária também é Marie, e Macha, Vassili também é Vássia, e Vasska, e por aí fora. Conforme a personagem que toma a palavra, refere-se ao outro de um modo ou de outro. É de pôr a cabeça a andar à roda, mas sinto que toda essa confusão está arrumada no segundo volume. A partir daqui já sabemos distinguir as inúmeras personagens (desisti de acompanhar os cargos militares). Importamo-nos realmente com eles, apesar de tantos e de tão distintos, cada um com a sua responsabilidade no combate a Bonaparte e, em breve, na defesa da mãe Rússia. Esta tradução é muito boa, e sigo sempre as várias notas que ajudam a esclarecer o contexto dos diálogos e da narrativa.
Há trechos de enorme beleza narrativa ao longo deste primeiro volume, em que as personagens são pela primeira vez confrontadas pela brutalidade da guerra.
"Apesar de ainda não ter passado muito tempo desde que o príncipe Andrei deixara a Rússia, já mudara bastante. Na expressão do seu rosto, nos movimentos e no andar já não se lhe notava o antigo fingimento, o cansaço e a preguiça: o ar dele agora era o de uma pessoa que não tem tempo para pensar na impressão que pode causar aos outros () O seu rost exprimia mais concórdia () o sorriso e o olhar eram mais alegres ()"
Não consigo parar de ler, sou apenas vencida pelo cansaço, pela falta de posição e pela necessidade de repouso da vista. Por isso sinto que, se ler o segundo livro ao ritmo do primeiro (coisa que desconfio que hei de ler muito mais rápido, porque estou muito motivada), em duas semanas terei lido metade de Guerra e Paz. Em um mês terei lido o livro completo. E cumpre-se, assim, um sonho que cheguei a arrumar para o lado, por julgar impossível.
Sinopse: Lev Tolstói foi e continua a ser um dos nomes maiores da literatura, e as suas ideologias, a par dos seus escrito, influenciaram sobremaneira o panorama social, político, religioso e literário do século XIX, e daí em diante. Escritor, filósofo, pedagogo e até profeta, o escritor russo foi um defensor acérrimo das minorias e dos mais desfavorecidos, e um dos primeiros a insurgir-se contra a escravatura. Com um percurso de vida tumultuoso, e apesar das muitas perseguições a que foi sujeito, Tolstói encontrou na escrita um refúgio e é de forma sábia que abordou temas tão inquietantes quanto complexos. Embora não haja uma data precisa, sabe-se que foi entre 1865 e 1869 escreveu e publicou aquela que é talvez a sua obra-prima e uma das maiores criações literárias de sempre: Guerra e Paz. Tendo como pano de fundo um cenário de guerra, com a invasão da Rússia por parte das tropas Napoleónicas, esta novela épica apoia-se em episódios ficcionais e históricos sobre aquele país, num momento de profunda convulsão, e surge como uma reflexão sobre a vida humana e a sua frágil existência. Nesta obra grandiosa, as personagens amam, odeiam e lutam, mas acima de tudo anseiam por encontrar o sentido da vida. Tal como elas, também Tolstói se confrontou inúmeras vezes com a sua própria condição enquanto ser humano, refugiando-se a dado momento numa fé e religiosidade profundamente vincadas. Tolstói deixou-nos um valiosíssimo legado literário e o seu nome perfila ao lado de outros grandes vultos como Shakespeare ou Homero.
A presente obra – publicada em quatro volumes – inicia uma nova colecção, intitulada Obras-Primas da Literatura e foi traduzida directamente do russo por Nina Guerra e Filipe Guerra que, pela excepcional qualidade do seu trabalho, venceram o Grande Prémio de Tradução Literária APT/Pen Clube Português.
Um livrinho tão pequeno e com tanta intensidade! Foia minha estreia com Tolstoi e maravilhou-me. É daqueles livros em que, determos experienciado apenas a amargura de um lado da moeda, nunca saberemos oque sucedeu de resto. Este é um livro sobre um ciumento doentio, inseguro,cronicamente insatisfeito? Ou sobre um homem honesto que, na tentativa de setornar num modelo de moralidade, casa como de si é esperado e é vítima duma viltraição? Haverá, de facto, traição?
O livro começa com uma viagem de comboio ondedesconhecidos partilham a mesma carruagem. São russos numa Rússia do últimoquartel do século XIX. Pessoas que procuram acompanhar o progresso tecnológico,intelectual e, sobretudo, social da Europa, tantas vezes evocada como termo decomparação. Em seguida a história esvoaça para um caso que sucedeu há pouco: ummarido que matou friamente a sua mulher, por suspeita de traição. Um dospassageiros é esse marido assassino, que se dispõe a contar ao nosso narrador oque aconteceu para o levar a esse extremo.
Portanto viajamos com um assassino, um homemperturbado, um fumador compulsivo que se esforça por beber chá e que nosintroduz ao esperado do jovem russo; que visite prostíbulos, que conheçamulheres, que se proteja toscamente da sífilis e que, depois de “adquirirexperiência”, escolha para si a mais inocente das jovens russas para casar. Aironia, o tom de crítica de Tolstoi e os seus ideais transparecem nesta tãopequena obra. Um homem sujo que apenas se acha digno da mais pura das mulheres.O pai honesto que folga em causar a filha donzela com o porco promíscuo maisrico disponível. O casamento sem amor, infeliz, fonte de desacatos, ódios,conflitos constantes.
Tolstoi parece culpar a sociedade por todos os erroscometidos na existência deste homem perturbado. Primeiro empurraram-no para asmulheres, por ser o esperado de si. Depois empurram-no para um casamento comuma jovem casta de boas famílias, para que ele a conspurque. Depois sãoincapazes de tolerar-se mutuamente, mas uma separação é praticamenteimpensável. Tudo isto é estranhamente contemporâneo – não a obrigação de a moçase casar, mas a efectividade de todas estas “imundícies” que causam dissaborese infelicidade parecem-me ainda presentes na nossa sociedade.
Acaba abruptamente, deixando-me um tanto ou quantodesconcertada. Dividida, confusa. Virei a página e, de súbito, com o chegar deum comboio a uma estação, há um adeus e o drama pessoal/conjugal encerra-se.
O autor é humano, contemplativo, reflexivo, provocador, capaz de analisar eventos como algo de maior, crítico e sarcástico. Um génio não apenas da literatura, mas também do coração humano.