Opinião: W. Somerset Maugham é o meu autor favorito. Também é possível que já o tenha dito de Steinbeck, e é igualmente verdade. São dois autores com várias obras publicadas, entre contos, romances e novelas, muitos dos quais já tive o prazer de ler. Quando os leio, os seus livros competem apenas com as outras criações deles próprios. Avalio-os pela sua própria escala. No caso de Maugham, durante anos foi também dramaturgo, e terá sido com base nesses conhecimentos da vida nos palcos que escreveu este As Paixões de Júlia, ou, no original, Theatre. É também um gentleman, e das poucas pessoas da História que eu gostaria realmente de ter conhecido. Quem sabe ele me convidasse para a sua casa do Mónaco para tomar chá, e nos tornássemos bons amigos ou, pelo menos pen pals.
Este romance centra-se num casal inglês, Michael e Julia, e no modo como ambos dedicam a sua vida ao teatro. Michael é um homem bem parecido, altruísta apesar de avarento, sem outro talento que não a beleza. Julia é uma mulher de aparência vulgar, mas de génio, cuja vocação a levou a tornar-se a melhor artista de teatro inglesa. Juntos, gerem um teatro e as suas relações com elegância.
Maugham dá voz a Julia, uma mulher que, segundo o filho, representa a todos os instantes. Julia é calculista, caprichosa e egocêntrica. A sua grande tragédia é perder-se sob camadas de fingimento, arriscando-se a nem existir. Usa a sua capacidade de ler os outros, e de os contemplar com o que esperam dela, para ser adorada e aceite em todos os círculos. A sua reputação é imaculada e ela adora ser o centro das atenções. Acompanhamo-la desde a juventude, em que era uma atriz promissora, enamorada por Michael, até aos seus 46 anos, altura em que, assustada pela possibilidade de estar a envelhecer e a perder a admiração de que goza há tanto tempo, se deixa envolver num caso desesperado com um jovem contabilista que a admira cegamente.
Apesar de a primeira metade do livro não oferecer grandes emoções, e o romance ostentar a frivolidade da própria protagonista, na segunda parte o autor valeu-se do seu conhecimento inigualável da natureza humana para nos surpreender. Julia é apanhada nos seus exercícios de fingimento, o seu amante talvez não lhe seja assim tão devoto e o filho, que considera insípido, talvez seja a única pessoa que a vê sob todas as camadas de que o teatro a revestiu.
"Não conheces a diferença entre verdade e fingimento. Estás sempre a representar. Em ti é uma segunda natureza. Representas quando temos uma festa em casa. Representas com o pai, representas comigo. Comigo fazes o papel da mãe carinhosa, tolerante e célebre. Não existes, não passas dos inúmeros papéis que interpretaste. Interroguei-me muitas vezes se terá alguma vez existido uma Julia Lambert ou se nunca foste mais do que um veículo para todas essas pessoas que fingiste ser. Ao ver-te entrar numa sala vazia, senti por vezes vontade de abrir a porta de repente, mas tive medo de não encontrar ninguém."
Mais uma viagem inesquecível pela pena do meu adorado Maugham.
Sinopse: Julia Lambert está no auge do seu sucesso: é considerada a maior actriz inglesa do seu tempo. No palco, é uma verdadeira profissional, dominando totalmente as suas emoções, e as suas actuações são arrebatadoras. Na vida real, está cansada do marido e é bastante menos disciplinada. Quando um tímido e jovem fã a cobre de atenções, Julia fica inicialmente divertida, mais tarde entusiasmada pela sua persistência e, por fim, louca e perigosamente apaixonada… A sua vida, até então aparentemente perfeita e imperturbável, vai sofrer uma viragem irreversível.
Ainda que Maugham seja preferencialmente aclamado enquanto romancista e escritor de contos, foi enquanto dramaturgo que ele conheceu inicialmente o sucesso. O presente romance é um testemunho desse seu entusiasmo pelos palcos.
A minha edição é o livro #5 da Coleção de Clássicos da Livros do Brasil de 1951, e traz a sinopse do livro seguinte. Por esse motivo, deixo a sinopse da edição com o ISBN 9724128733, edição Asa @ 2002.
Sinopse: Florença. Uma magnífica casa nas colinas serve de cenário para um sonho que, subitamente, se transformará em pesadelo... Nesse refúgio de tranquilidade, as violentas emoções do passado são momentaneamente eclipsadas e Mary Panton pode encarar calmamente as perspectivas do seu segundo casamento com Sir Edgar Swift — que ela admira e respeita, mas não ama. Um simples acto de compaixão, o desejo de proporcionar alguma beleza à vida atribulada e infeliz de um jovem refugiado, vai no entanto dar início a um pesadelo de violência que destruirá a ténue serenidade de Mary. Intuitivamente, ela vai confiar na ajuda e compreensão de Rowley Flint, um estranho de reputação mais que duvidosa. E compreenderá com ele que rejeitar o amor, mesmo com todos os seus múltiplos riscos, é rejeitar a própria vida. Escrito com a simplicidade das grandes obras literárias, Paixão em Florença é um exemplo perfeito da genialidade de Somerset Maugham.
Opinião: Com apenas 189 páginas, onde predomina o intenso odor da velhice neste exemplar com 68 anos, Maugham constrói uma novela intensa. Estimo que Um Casamento em Florença se passe em cerca de uma semana, durante a estadia de Mary - a personagem principal, uma mulher à semelhança de em O Véu Pintado - na villa dos Leonard, em Florença. Numa rotina de receções e de uma realeza caída, no pós-II Guerra, Mary está mais ou menos prometida ao futuro Governador de Bengala, um homem que vê como amigo e que é 24 anos mais velho do que ela. Tudo se complica quando conhece, durante um jantar, um refugiado austríaco miserável. O seu coração e romantismo falam mais altos, mas o que se segue é desastroso e é Rowley, um americano de péssima reputação, quem acaba por formar uma inesperada dupla imoral com ela.
Maugham explora uma vez mais a natureza humana, as expetativas sociais, a Europa desconstruída após a guerra, e a reorganização social - e hipócrita - que se lhe seguiu. Como nunca deixa de acontecer com este autor, é o seu profundo conhecimento da alma humana que empresta solidez e encanto às páginas. E com vários e inesperados twists.
“- Ela tinha uma alma maravilhosa, ardente, idealista e generosa. Os seus ideais eram magnânimos. Até no final houve uma certa nobreza na forma como procurou a destruição.”
O Fio da Navalha, publicado em 1944, e adaptado ao cinema em 1946 e em 1985, é o terceiro romance que leio do escritor britânico W. Somerset Maugham. Quando li o seu Servidão Humana, soube de imediato que tinha encontrado um dos escritores que me acompanhariam pela vida fora, e cujas obras haveria de ler e reler. Guardei este volume para uma altura de crise, em que precisasse de ter confiança na obra em que pegasse e, se o início foi algo espinhoso, depressa a voz única do escritor me envolveu, e quando dei por mim não conseguia pousá-lo. Há muito que não leio romances em pouco mais de vinte e quatro horas, e devorei as 300 páginas deste nesse mesmo período de tempo. Ainda assim, sei que ficará comigo. É daqueles que haverei de mencionar vezes sem conta.
Embora a sinopse sugira que este romance conta a história do aviador Larry Darrell, por quem um companheiro de aviação dá a vida na I Guerra Mundial, o romance é muito mais do que isso. Maugham conseguiu transportar-me para o período entre guerras sem cair em politiquices nem ao detalhes aborrecidos de estratégia militar. De facto, não dissesse ele, a poucas páginas do fim, que “rebentou a guerra”, e nem nos apercebíamos que o maior conflito armado de sempre, com 70 milhões de baixas, se insinuava nas entrelinhas das receções parisienses das personagens que acompanhamos há duas décadas.
A ação tem início em 1919 na sociedade de Chicago, e ao longo destas páginas o próprio Maugham é uma personagem algo secundária, que transita de núcleo em núcleo e que vai tendo notícias das pessoas a quem nos apresenta. Começamos por conhecer Elliott, um americano que circula nas esferas mais altas da sociedade Europeia, e que insiste que a única cidade civilizada para um homem superior viver é Paris. A partir daí, temos a ponte criada entre os capitalistas americanos, a bolsa, os corretores e o desejo desenfreado de progresso nos anos prósperos que antecedem o crash, e a realeza em decadência na Europa pós-guerra, que vive de superficialidades e de pedantismo.
Sendo Larry o fio condutor que intriga o nosso narrador – e que ilustre narrador! – ao longo dessas duas décadas, ficamos a saber que o aviador parece ter perdido parte do juízo quando o seu melhor amigo da Força Aérea deu a vida para o salvar de uma ofensiva alemã, e o Larry de antes, com apenas 18 anos, bem posicionado na sociedade, com uma fortuna modesta e de noivado marcado com Isabel Bradley, uma menina de bem, muda. De repente, Larry deixa de se interessar pelo lado mundano da vida, e coloca-se à parte, como observador circunspeto. Procuram ceder-lhe um lugar entre os bem-posicionados de Chicago, pedem-lhe que se junte à construção de um país que se evidencia mais próspero do que o velho mundo, delapidado pela guerra e pelos velhos costumes de repente fora de moda, mas Larry garante, para desconcerto de quem o rodeia, que tudo o que deseja da vida é fazer “nada”, e que deve valer-se do privilégio de ter um bom rendimento para poder dedicar-se a isso mesmo.
Esta é a premissa principal de um livro que, um pouco à semelhança de Servidão Humana, me parece uma senda pessoal, muito espiritual e até mística a certa altura. O que, pela voz metódica e ultrarracional – por vezes também romântica e melancólica – de Maugham, poderia soar a contrassenso.
Há várias passagens de grande riqueza humana. Aliás, ler o meu escritor favorito referir-se ao “animal humano”, uma expressão com que tantas vezes nos identifico, por ausência de outra que melhor exemplifique o que pretendo dizer, coloca-me em plena sintonia aquilo que julgo que Maugham sentia e pretendia ilustrar. É este o forte deste romancista. A capacidade de observação, a perspicácia, a tempos a ironia e o humor, a classe, a crítica social - elegante, subtil -, mas também a ausência de pedantismo que lhe permite falar ora de rameiras ora de condessas com a mesma elegância, a mesma dignidade.
Destaco dois momentos de Nirvana que servem para exemplificar momentos de clarividência de duas personagens – uma delas o próprio Larry, a outra um homem de negócios que de repente, perante o crash da bolsa, se vê despojado de tudo o que lhe era caro. Foram passagens de tamanha beleza, tamanha carga emocional… Maugham encheu-me o peito e depois esvaziou-o com um grande suspiro com essas passagens, mas eu já não me sentia a mesma depois de as ler. São sítios próximos a outros que experimentei em meditação ou em momentos em que contemplei a natureza, e por isso os senti na pele com a nitidez de um arrepio.
A tempos claustrofóbica, a sua descrição da alta sociedade americana e europeia parece-me bastante detalhada, e soa-me desgastante. Tantas receções, cocktails, jantares, idas ao teatro… Enfim, tanto ócio, tanto hedonismo, tanta hipocrisia, tanta superficialidade e, ainda assim, tanta grandeza e humanidade nesses simples humanos, Comuns Mortais como o autor os nomeia, cai-me sempre enternecedora; é-me palpável.
Cheguei a meio do livro sentindo-me íntima não só do nosso escritor deambulante, mas também de toda e cada uma das personagens, e a cada vez que o autor se cruzava numa das suas viagens – Paris, Marselha, Mónaco, Londres – com essas pessoas que, desconfio, são bem reais, mas às quais ele terá prestado a cordialidade de alterar os nomes, dei por mim a beber avidamente das atualizações das suas vivências, das reviravoltas das suas expetativas e desencantos.
Larry, como caminho sinuoso e de poucas palavras que constitui em simultâneo a maravilha e o mistério deste romance, constitui um contraste gritante para com o borrão cinzento dos tais Comuns Mortais. É como se fosse uma obra de Picasso no marasmo bucólico de uma exposição de nenúfares. É com as suas viagens, a sua abordagem à vida, ao mal e aos outros, que o livro de facto se supera, e é das suas parcas palavras que tirei as principais lições de O Fio da Navalha.
Destaco também a elegância desta edição da Asa, que me parece irrepreensível e sem dúvida muito adequada ao conteúdo sublime deste romance. A isto junta-se a grande competência da tradução, que me pareceu elevar um livro já de si de extrema elegância e por vezes até poético.
A ler no momento certo.
Classificação: 5*****
Sinopse: Quando um amigo e colega de combate morre ao tentar salvá-lo, a vida de Larry Darrell muda para sempre. Para o jovem aviador americano, a morte passa então a ter um rosto. O inexorável mistério da morte leva-o a questionar o significado último da frágil condição humana e a embarcar numa obstinada e redentora odisseia espiritual. Ao recusar viver segundo as convenções impostas pela sociedade para buscar o sentido da vida (que encontrará, certa manhã, algures na Índia), Larry torna-se simultaneamente uma frustração para os que o rodeiam - principalmente para Isabel, a namorada, e Elliott, tio desta, que cultivam acima de tudo a aceitação e o prestígio sociais - e a personificação de um ideal de espiritualidade e não-compromisso. Por duas vezes adaptado ao cinema, O Fio da Navalha é um romance intemporal. As ansiedades e dúvidas de Larry são também as nossas; continuamos até hoje a buscar um sentido para a nossa existência. Para encarnar essa luta contra o destino, Somerset Maugham criou um dos mais fascinantes personagens do seu vasto legado literário. Da Primeira à Segunda Guerra Mundial, passando pela Grande Depressão, ele leva-nos, através das sociedades francesa, americana e inglesa, à verdade mais recôndita da alma e do sentimento humanos.
Quer queiramos quer não, umlivro está impregnado do espírito do autor. Não significa que traduza tudo oque ele é nem todas as suas crenças; o autor pode, inclusive, ter-se esforçadopor explorar temas que lhe são desconhecidos e adoptar posturas que condena.Neste “Servidão Humana” descobri a grandeza da simplicidade. Eu desconfiava dasua existência, mas jamais a vira em tamanha graça e glória. É uma obragrandiosa na sua simplicidade. Não é sobre grandes vitórias, não é sobre umgrande aventureiro, sobre bravura, sobre perfeição incompreendida ou sobre umavida madrasta. É sobre os caminhos escolhidos, as consequências que aí advém eos diversos prismas pelos quais é possível encarar-se a situação. Phillip Carey tempé boto, é órfão acolhido pelos tios e cresce no puritanismo do Kent de finaisdo século XIX. Já crescido, passa a desprezar a languidez do tio, a sua inérciae o seu egoísmo, assim como ora se comove ora se exaspera com a lamechice exacerbadada tia. Deus é um amigo, uma verdade inabalável até certo ponto. Ao desistir,contudo, da carreira eclesiástica, vai estudar para a Alemanha e depara-se como protestantismo. Também um budista e um católico dividem o mesmo espaçoconsigo e todos, a par dele que é anglicano, parecem ver a verdade apenas nasua religião. Isso e a sua falta de insolência ou vaidade levam-no a concluirque a religião é, sobretudo, uma questão de geografia. Como ele próprio diz,teria grandes chances de ser protestante se tivesse nascido na Alemanha, oucatólico se tivesse nascido em Itália. Isso significa que, por não ser crentena fé anglicana, estaria condenado às chamas do Inferno? É aqui a primeiragrande viragem da sua vida. Deus já não comanda a sua vida; o bem e o mal advêmda sua percepção, as escolhas emergem duma mentalidade jovem no início de umséculo em que a própria sociedade, a economia, a tecnologia, a medicina, omundo, todo o resto se encontram em ebulição e em franca mudança. Phillip émuito distinto, convencido que está de que é um cavalheiro. As dezenas depersonagens – todas elas fortíssimas e indispensáveis – vêm baralhar-lhe asconvicções de si próprio. Perante um rico é um burguês patético. Perante umpescador é quase um aristocrata. Embora não seja da sua natureza sersnob– porque também ele é duramentemaltratado pela sua condição física e escassez de recursos – discriminainvoluntariamente várias vezes. É generoso, mas discreto, tímido e cobarde.Essa sua tendência em pregar-se a uma personalidade mais forte levam-no a tornar-sea sombra dos amigos na escola, na arte, na quase totalidade da sua existência.Ele vai-se dando conta disso, mas não confia no seu próprio juízo. Também istoé uma lição importante a assimilar.
E depois há a Mildred, claro. Opapel que, no filme de 1934, impulsionou Bette Davis para o sucesso. Feia,vulgar, snob, miserável,interesseira, estúpida e leviana. Uma simples criada que o humilha num primeiromomento e perante quem Phillip terá sempre tendência a deixar-se perder. Deixaque ela faça dele o que quer, desbarata a sua herança com ela, deixa-o traí-lode todas as formas possíveis e volta sempre a estender-lhe a mão quando elaregressa, por sua vez desdenhada por um homem mais esperto, que a vê comoaquilo que ela é. Que personagem perturbadora, esta Mildred, com a suadecadência moral, as suas mentiras, os seus falsos ares de senhora, os seusqueixumes, amuos, sorrisinhos e seduções fáceis, a sua gratidão fingida emomentânea, os seus clarões de fragilidade, o seu desinteresse por qualquerassunto que não entretenimento – jantares, teatro, passeios -, a suaignorância, “istudante”, a sua fúria sempre prestes a dar azo a outradiscussão. Os seus amores assolapados, rápidos a vir e a partir, dando lugar aódios exacerbados. E Phillip, seu bom “amigo”, a patrocinar-lhe férias com oseu melhor amigo, a cobri-la de chapéus e vestidos, a sustentar-lhe a filha deoutro. E depois vem a pobreza extrema, para ensiná-lo a valorizar o trabalho ea ver a vida no seu estado mais dificultado.
Amor, dinheiro, falta detrabalho. Acompanhando o crescimento de Phillip, a sua maturação, surgem assim,por ordem cronológica, os três motivos pelos quais as pessoas parecem dispostasa suicidar-se. E ele, ponderando fazê-lo por cada uma delas, vai-se obrigando aprosseguir. Os tempos são outros. O que é crucial na vida, afinal? Assumindoque esta não tem propósito, ficamos assim perante o seu único sentido; aausência de nexo. Sem um deus que o guarde, Phillip está por si próprio. A sonhar,a cometer erros atrás de erros, a almejar para si uma felicidade que pareceestar sempre ao lado daquilo para que ele se precipita. E então, numa conclusãobrilhante, pueril, verdadeira (sobre a qual eu própria discursei bastantedurante os meus tempos de faculdade), parece despertar para aquilo que, navida, se pode extrair de mais doce.
Aconselho vivamente a quemquer que queira experienciar os grandes sobressaltos da existência de qualquerum dos nove aos trinta anos deste Phillip. Tratanto-se de uma autobiografiaficcionada do próprio autor, posso apenas dizer que, como Phillip ou comoSomerset, Maugham é um espírito admirável.
Se eu conhecesse oPhillip Carey, provavelmente desprezá-lo-ia. Se fosse criada de mesa, jovem epobre, provavelmente ter-me-ia aproveitado dele como a Mildred Rogers faz. Dapágina duzentos e pouco até à quatrocentos atravessamos os novos erros eavaliações de consciência do Phillip. Ele não consegue ser totalmente felizporque, sendo uma pessoa do mais banal que existe, insiste em procurar sermaior, acreditando que algo de grandioso lhe está reservado. Este medo deperecer sem ficar na memória, sem responder às grandes questões filosóficas nemse engrandecer através da Arte ou duma profissão, é muito humano eidentificável com todos nós. Com a diferença de que o Phillip é tão volátil queabandona tudo o que está a fazer a cada vez que acorda com os pés de fora. Comobem diz o seu tio vigário, falta-lhe perseverança. Ele quer algo fácil,instantâneo. Anseia por liberdade e por aventura mas, na realidade, é snob, burguês, aborrecido e insosso. Étão palpável, contudo, que é impossível não nos debruçarmos com interesse paraesta personagem. É a Mildred, contudo, que até aqui fez emergir no Phillip oque de mais fraco ele tem.
É-lhe servil, cegamente devoto – cegamente está aqui mal aplicado, porqueele reconhece que ela é estúpida, snob,pretensiosa, vaidosa, interesseira e obsoleta. Ainda assim, amava-a. É-lhe umparadoxo ver-se assim desprovido de razão e de integridade. Esta mulher, estamiserável criada de uma casa de chá, desdenha dele, aproveita-se dele, não sepreocupa realmente com nada que lhe diga respeito e dispensa-o sempre quealguém lhe oferece algo melhor. É feia – lábios finos, pálida, anémica, magra,sem ancas, sem peito, de franja. E ele arde de desejo por todas estasimperfeições físicas, por uma vez familiarizado com as incongruências do amor eespicaçado pelo desejo carnal. Ele tem de tê-la. O rapaz tímido, ingénuo, éagora inflamado e espontâneo. Pena de ciúmes, é esbanjador em relação à atitudepoupada anterior. Obcecado em conseguir o afecto desta mulher leviana,desperdiça até aquilo que poderia ter sido um bom futuro ao lado de uma viúvaque o ama mais do que ele a ela. Mas como o próprio Phillip diz, o que importano amor não é tanto ser amado, mas amar. E por isso sujeita-se aos caprichos daMildred. Vejamos onde vai isto dar.
(Tendo lido mais cempáginas)
Concluo que o Phillip édaquelas pessoas tão desengraçadas e de tão baixa auto-estima que, por seremincapazes de se valorizar, pensam que só adquirem afecto comprando-o. Então, “aproveitando-se”dum momento difícil da Mildred – na realidade é ela que se aproveita dele –julga que a tem na mão porque ela precisa dele financeiramente. Embora tenhaconsciência de que ela é uma “cadela”, como ele próprio diz, que salta de coloem colo, é a única maneira de a ter e contenta-se com qualquer farrapo deatenção que ela lhe atribui. Em troca delapida a herança do pai em chapéus paraessa ingrata (palavras dele próprio), vestidos, e chega ao ponto de ter tãopouco amor-próprio que lhe sustenta a filha de outro e lhe patrocina jantares eidas a teatros de variedades quando ela se enamora do melhor amigo dele. Maisdo que isto… paga-lhes umas românticas férias em Oxford, tudo porque compreendeque ela se tenha apaixonado pelo seu bom amigo, que considera tão maiscativante do que ele próprio, e porque assume que a culpa é sua por tê-losapresentado. Não estamos perante uma personagem vulgar ou cativante. O Phillipé uma pessoa desprezível na sua cobardia e na sua timidez. É incapaz de umgesto mau, tirando chamar-lhe “cadela” e ajoelhar-se-lhe aos pés em seguida,que sabe ele de dar-se ao respeito? Culpa o pé boto pelos seus problemasrelacionais, mas nesta fase do livro acaba de ser confrontado por um jovem compé boto que é perfeitamente feliz. Talvez tenha entendido que os seus problemasnão são físicos, mas sim que sofre de uma fraqueza de carácter exasperante. Quepersonagens notáveis, Somer.
Algures no Goodreads surge uma review a este livro, com uma classificação bastante depreciativa, em que o identifica como “uma sucessão de erros da personagem principal”, é vê-lo cometer um disparate atrás do outro. Eu concordo com isto, mas adoro o livro por esse mesmo motivo. Acho que acabei de entender o que é que o Maugham pretendia com este livro: vêem-se assim expostos os vícios e as fraquezas de uma civilização a quem nada está vedado. As possibilidades são infinitas. Desde o meu último update, o Phillip já esteve em Inglaterra (Kent) e na Alemanha (Heidelberg), e também em grandes urbes como Londres ou Paris. Já trilhou uma espécie de Introdução à Contabilidade, que emerge na viragem do século como profissão de novos cavalheiros, e estuda Arte em Paris. No novo século é-lhe até difícil distinguir um cavalheiro dum comum trausente. No novo século as mulheres têm famas dúbias e envolvem-se em escândalos amorosos (mesmo as solteiras). Viveu um envolvimento conturbado com Mrs. Wilkinson, uma criaturinha que ele quase abomina mas da qual se serve apenas porque, na visão de Phillip, estava na hora de ter um romance para narrar aos amigos. Se Phillip é uma personagem amorosa, admirável? Não, Phillip é, na minha opinião, uma marioneta. Dança ao sabor das milhentas possibilidades do novo século. A Europa inteira é-lhe um anfiteatro de ruelas por onde se embrenhar. A onde ir? O que aprender? O que fazer? Quem ser? Phillip está perdido. Podendo ser qualquer coisa, dispersa-se. Terá vinte e poucos anos e já desistiu da carreira eclesiástica (desacredita Deus), já largou um ano de estágio em Contabilidade, está agora a desencantar-se com o seu parco talento para a pintura numa escola de Paris. Mas a culpa não é de Phillip, a culpa é dos tempos. Os tempos obrigam-no a ter um caso amoroso - e ele é muito susceptível ao que pensam dele, é muito orgulhoso e tímido também -, os tempos obrigam-no a deslocar-se para onde a vida fervilha realmente, a Cidade das Luzes, os tempos obrigam-no a querer imitar um Manet ou um Monet, um Renoir ou um Degas. O desafio é a limitação do seu talento aos seus almejos. Ele nem sequer é uma pessoa efusiva, mas deixa-se absorver pelas personalidades marcantes que vão surgindo aqui e ali, todas elas mais fortes do que ele. Ele é uma sombra da luz que os outros emanam, absorve-os e tenta seguir-lhes o exemplo, quase sempre com fraco desempenho. Impressiona-se facilmente e, apesar de ser inteligente, é demasiado ingénuo (e novo) para se conhecer a si próprio. Está ancorado às convenções, ao que parece bem, enquanto brame que é um homem moderno e dono do seu destino. É uma alma fraca, ansiosa por se ligar a outras, ciumento, cobarde demais para ser cruel ou directo, persistente mas também teimoso, desmotivado e desmoralizado pela anomia social do século que se aproxima.
Conheci o Somerset Maugham através d’O Véu Pintado, e conheci O Véu Pintadoatravés da adaptação de 2006 com o Edward Norton e a Naomi Watts. Filmeprecioso, um olhar íntimo sobre a vida privada de um casal dos anos 30. O livroé diferente; é desconcertante na sua abordagem ao coração humano, à inclinaçãoincontornável ao erro, ao mais fácil, ao queimar-se uma outra vez na mesmachama. A profundidade humana é tocante, fascinante e qualquer leitor seidentifica facilmente com estes espectros erróneos que o Maugham descreve. Foium romance um pouco mais da minha linha, no sentido em que há uma relaçãocentral como fio da meada. Há a China, a cólera e a mulher infiel. E pronto, euestava rendida. Não precisei de muito para penar pelo seu “Servidão Humana”. Jámencionei que, de visita à Russborough House, em Wiclow (Irlanda), parei numabiblioteca enorme à procura dum autor que conhecesse e, de entre todos os nomesdesconhecidos, apenas Maugham me acenou? Foi como estar, subitamente, em casa.
SPOILERS, SPOILERS ALL AROUND!
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O livro começa com a morte de uma mãe. Uma criança órfã queanseia por carinho e por vitimar-se. É humano, será que vale a pena dizermosque quer vitimar-se? Trata-se apenas de tirar alguma vantagem das desgraçaspessoais. Para este rapazinho, isso espelha-se no abraço, na palavra decompaixão, nos mimos que podem servir de recompensa à perda da mãe. Nestaprimeira centena de páginas podia já o romance encerrar-se, e eu estaria járendida e apaixonada. Não há romance, há apenas relações humanas. O servilismo,a existir, é do eu perante sipróprio. Este Phillip Carey, esta pessoa tão comum e, contudo, tão intrigante,é já uma das minhas personagens favoritas de sempre. Isto porquê? Phillip sofrede todas as mesquinhices humanas: vaidade, mentira ocasional, orgulhoexacerbado, ciúme injustificado, ocasionalmente inveja. Cresceu à sombra dumtio vigário e, por isso, nunca duvidou de Deus ou da veracidade absoluta dadoutrina da Igreja Anglicana. Nunca,até certo ponto. Nesta primeira centena de páginas Phillip foi já confrontadocom a possibilidade de vir a tornar-se também ele vigário e, posteriormente,começa a questionar, através de conhecimentos que faz na Alemanha, longe doKent onde cresceu, se existirá realmente uma religião verdadeira ou um deusúnico. O que estou a apreciar é,sobretudo, o meu desbastar dos receios que alimentava quanto a este livro; é umlivro enorme (lê-se incrivelmente bem), Somerset é um grande escritor, será queconseguirei acompanhá-lo? (ele esforça-se por vir ao meu encontro sem, noentanto, me tomar por imbecil), será um pseudo-intelectual? Terá algo aacrescentar-me? (o autor atira-nos para os olhos a ignorância de Phillip maisgritante a cada vez que algo de novo lhe é ensinado. Tão vastas as extensões,depressões, viragens de rumo da Natureza humana num livro com ainda tanto paraoferecer.
Philipp é tímido, tem pé boto, é inteligente mas tantas vezes estes doisfactores impedem-no de expressar essa inteligência e é tomado por idiota. Cadapessoa com que se cruza – as que ama e as que odeia – são palpáveis eapaixonantes a seu modo. Mr. Carey, o tio vigário. Mrs. Carey, nunca mãe, tiade sangue, frágil e submissa (queixa-se,porque é mulher, obedece, porque é esposa). Mr. Watson, o director decolégio religioso que ri demasiado alto e é bruto a demonstrar carinho pelosalunos. Mr. Perkins, director da escola preparatória, descendente de umfanqueiro, por isso desprezado pela trupe de intelectuais abastados que ensinamnessa escola, tão inteligente e perspicaz que é finalmente com ele que asagacidade de Phillip se expande.
Phillip a descobrir o poder da literatura para alheamento dos que vivemexistências infelizes. Phillip a aprender a ser selectivo na Literatura. Phillip a considerar a Igreja Anglicana como um elemento de conforto na suavida. Phillip a considerar deus umultraje a igreja um embuste. Phillip a considerar a sua orfandade motivo depena, de dessabor. Phillip a considerar o seu pé boto um entrave para criarligações. Phillip a agradecer a deus pelo fardo do pé boto, que lhe permitiucrescer mais ou menos à margem dos restantes, aculturando-se enquanto osrestantes jogam futebol. Phillip a querer alguém – um amigo – só para si. Phillip odiar esse amigo. Phillip a querê-lo de volta. Phillip a quererdesistir da escola, a lutar afincadamente para consegui-lo. Phillip inconsolável, irritado consigo mesmo, por ter conseguido deixar a escola,vencido a batalha, quando afinal tudo o que quer é ficar. E a sua comoção face à beleza, à arte, à natureza, surge como um marco importante na vida de qualquer ser humano. Foi naquele dia que primeiramente testemunhou a beleza, e a sua vida mudou.
Estou arrebatada, encantada por tanta complexidade. Estão aqui algumas dasmelhores personagens com que tive o prazer de privar na Literatura, juntando-sea Kitty Fane d’O Véu Pintado, Scarlett O’Hara e Rhett Buttler do E Tudo o VentoLevou, e Dr. Victor Frankenstein e o monstro, do livro homónimo ao médico.
Sinopse:«Kitty sente-se prisioneira de um casamentoinfeliz e de um estilo de vida que está longe de ser aquele que sonhou para si.Sem que tivesse obtido a notoriedade social que desejava e afastada do seu paíse da família devido à profissão do marido – bacteriologista destacado para HongKong –, a jovem acaba por encontrar algum consolo numa relação extra conjugal.Mas a traição acaba por ser descoberta pelo marido, que leva a cabo umaestranha e terrível vingança… Através do despertar espiritual daadorável e fútil Kitty, Somerset Maugham pinta um retrato vívido da presençabritânica na China e apresenta-nos uma galeria de personagens inesquecíveis.»
Opinião:"O Véu Pintado", adaptação com Edward Norton e Naomi Watts, é dosmeus filmes favoritos. A banda sonora é simplesmente sublime! Li trechos dolivro a ouvi-la, amplamente comovida pela beleza e a nostalgia que transmite.Já ouvi quem dissesse que estava muito aquém do livro, mas hoje, e terminada aleitura, considero até que o filme - tendo em conta a altura a que um filme sepode erguer perante um livro, é tão bom quanto o dito cujo, neste caso. Vouexplicar que matemáticas básicas me levam a este resultado: o filme romanceouum pouco a história, fazendo com que a Kitty se redimisse devido ao amor e àadmiração que acaba por nutrir pelo marido. Julguei que fosse um romance assim,sobre redenção. Sobre o facto de ela ser jovem e viver de centelhas de brilhopara, em seguida, se dar conta do verdadeiro valor intrínseco à naturezahumana. Em contrapartida o livro exibe o talento nato do autor para explorar ofuncionamento da mente e das emoções humanas.
O livro é sobreerros. Sobre arrependimento e sobre recaídas, sobre desprezo, compreensão eincompreensão, e sobre o quão inalcançáveis algumas pessoas nos parecem, talfechado é o seu modo de ser. Houve uma parte em que a Kitty teve um relance dacomplexidade do marido e descreve esse momento como olhar para uma florestafrondosa e escura à noite, vê-la alumiada momentaneamente por um relâmpago,julgar ter lá visto algo e, então, regressar às trevas. O Walter Fane é umpuzzle fascinante e comovente. É ternamente apaixonado pela Kitty (não digoloucamente porque é demasiado tímido e contido, mas a dimensão do seu afecto éobviamente desmesurada) e fica feito em cacos quando ela o trai. Provavelmentepara se perdoar a si próprio - por ter amado uma criatura como ela, umaadúltera mimada e caprichosa - e para atenuar a sensação de desprezo por simesmo (pelos mesmos motivos), obriga-se a fazer um sacrifício maior. Umsacrifício que porá em risco tanto a sua vida quanto a da sua esposa infiel:como bacteriologista, refugia-se em Mei-tan-fu, um recanto na China onde aspessoas perecem como moscas devido à Cólera.E é nesse cenárioexótico e de choque de culturas que a Kitty "cresce". Nos poucosmeses (dois ou três) que passa em contacto com a doença, com as freiras doorfanato, com o seu vizinho inglês que vive com uma mulher manchu, a sua menteexpande-se e ela começa a reflectir sobre a vida, o amor, a felicidade, siprópria, a religiosidade, e a tentar decifrar o modo como a sua traiçãomodificou o marido - outrora tão dedicado - e a condenou à infelicidade e acaminhar lado-a-lado com a morte. As suas prioridades rearranjam-se e elacomeça a vencer os próprios preconceitos e a desejar ser uma pessoa melhor.A Kitty Fanetornou-se, rapidamente, uma das minhas personagens favoritas da literatura. ANaomi Watts é bonita e tem aquele ar doce meio espevitado, mas a personagem emtrês dimensões do livro tem pensamentos preciosos que espelham a mesquinhez queocupa tão frequentemente a mente dos humanos. Ela enoja-se, de início, por terde conviver com crianças chinesas - amarelas e de nariz achatado e olhosinexpressivos, segundo ela própria. Ela sente repulsa de uma criança que temuma doença que implica um tamanho de cabeça desproporcional em relação ao corpoe que se baba, e que para mais a segue e está obcecada por conseguir o seuafecto. Ela pensa nela própria antes de pensar nos outros - e com o seudesenvolvimento ao longo do livro começa a importar-se cada vez menos consigo emais com o bem estar geral, de um modo sincero que acaba por espelhar umcrescimento gradual e maduro. Faz amizades genuídas que a ajudam a entreabriros véus que envolvem os grandes mistérios da personalidade e das razões humanas.O filme, tendoforjado uma reconciliação entre o Dr. Fane e ela, satisfez o meu sensoromântico, porque achei que havia ali muito pano por onde debater. O orgulhoferido dele e o amor que, vencendo o primeiro, prevalece. O vencer do asco queparece ter ao marido - por ele não ser bem-parecido nem popular e por ceder comfacilidade aos seus desígnios - por parte da Kitty. Mas *spoiler alert!* aKitty do livro acaba por admirar e respeitar o marido, mas a reconciliaçãonunca se dá. Inclusive, ao morrer, ela implora-lhe por perdão. E ele responde:o cão foi que morreu.Adorei a viagem aointerior da Kitty e à sua percepção de quem a rodeava. Adorei as paisagenschinesas e a sua cultura (é o segundo livro, no espaço de um mês, que leio eque revolve em torno da China). Adorei as reviravoltas da mente do autor, queme pôs a reflectir seriamente e, inclusive, me comoveu uma ou outra vez. Fiqueifascinada pelo Walter, que pertence exactamente ao tipo de homem que só se amaquando se tem um elevado grau de maturidade. E sobretudo adorei o absurdo davida: qual é o caminho a seguir? A Kitty não sabe. Algum dia virá a perdoar-sea si própria? A Kitty não sabe. O marido chegou a perdoá-la? A Kitty também nãosabe. É um romance desconcertante, lido num sopro que durou dois dias, que mecomoveu e me encheu de melancolia e de pequenas tristezas. As das despedidaspara sempre. As das grandes viagens para não mais regressar. As da tragédiahumana e social.Apesar demagistralmente bem escrito, arquitectado e conduzido, não consigo dar-lhecinco. Atribuo-lhe um quatro e setenta e cinco sólido. Apenas não posso darcinco porque o li à procura desse descer à terra da Kitty, mas os seus erros,de tão térreos, acabam por ser exasperantes. O autor foi tão realista que nãosobrou umas lascazinhas de romance para esta romântica se agarrar. A relação daKitty e do Walter tem tantas potencialidades a partir do momento em que ela seapercebe do valor dele! Como é que o autor não a desenvolveu? Oh Somerset, eusei que na vida real as pessoas têm tendência a prosseguir pela estrada maisfácil, pelo caminho dos erros aonde se insinua, lá ao fundo, a pirite, qualouro dos tolos... mas não poderias ter levado a Kitty a um porto seguro? Nãopodias tê-la conduzido até ao ouro genuíno? Não poderia ela ser daquelas raraspessoas que a literatura descreve como tendo-o achado, enquanto a pirite é paraos que se ficam pela vida real...? Até isso louvo na tua obra...! Que coragempara não dares aos leitores o que eles querem.Contudo, foi dasleituras mais prazerosas dos últimos tempos. Certamente que um dia voltarei alê-lo... quem saiba esteja eu própria mais consciente da falta de nexo daexistência.