Sinopse:Uma jovem de 23 anos, estudante universitária brilhante, descobre que está grávida. Tomada pela vergonha, consciente de que aquela gravidez representará um falhanço social para si e para a sua família, sabe que não poderá ter aquela criança. Mas, na França de 1963, o aborto é ilegal e não existe ninguém a quem possa acorrer. Quarenta anos mais tarde, as memórias daquele acontecimento continuam presentes, num trauma impossível de ultrapassar e cujas sombras se estendem para além da história individual. Escrito com uma clareza acutilante, sem artifícios, este é um romance poderoso sobre sofrimento, justiça e a condição feminina. Escrito por Annie Ernaux em 1999, foi adaptado ao cinema em 2021 por Audrey Diwan, num filme vencedor do Leão de Ouro em Veneza.
Opinião:
"Sendo a primeira a realizar estudos superiores numa família de comerciantes, tinha escapado à fábrica e ao balcão. Mas nem o liceu nem a licenciatura em letras haviam conseguido contornar a fatalidade da transmissão de uma pobreza da qual a rapariga grávida, tal como o alcoólico, eram símbolos. Tinha sido apanhada na curva, e aquilo que crescia em mim era, de certo modo, o fracasso social."
Foi a minha estreia com Annie Ernaux, e compreendi o elogio de como a sua obra conta a história de um século através de relatos com travo a autobiografia. Ao longo da leitura, senti várias vezes que estava a ouvir a confissão da própria autora. É a sensação que tive ao ler, mesmo porque a personagem está a contar "o acontecimento" a partir de 1999, volvidos 35 anos sobre o seu aborto ilegal, e o tipo de detalhes que recorda parecem fruto de uma imaginação sensível e progidiosa, ou de uma experiência traumática pessoal.
A relevância do livro é tanto social quanto política. É um ensaio relativamente simples - e, no entanto, de uma complexidade angustiante - sobre o significado de uma gravidez indesejada. Neste caso, o regresso à pobreza, hesito em dizer "estatuto", mas "estatuto" não significa apenas privilégio, tantas vezes significa segurança económica, aceitação social, respeito, reconhecimento. Também nos recorda das trevas que as mulheres tiveram de desbravar - ainda há 50 anos - para poderem interromper voluntariamente uma gravidez em segurança. A brutalidade dos métodos, a clandestinidade, a dor e o trauma que inflingiam a uma mulher, de resto, saudável. O risco, a sujeição. O julgamento social, a crítica direta, o crime.
Por outro lado, o pai da criança, e o facto de lavar completamente as mãos do assunto. De não estar obrigado a prestar nenhum apoio àquela mulher, de não fazer nenhum esforço para a ajudar num momento de desespero, porque não é nada com ele. Um retrato nítido do que significa o machismo e a sociedade patriarcal. O homem isento de culpa e responsabilidade, a mulher atormentada pelo julgamento moral e a pôr a própria vida em risco para manter o que conquistou e as perspetivas de futuro.
Ainda bem que o mundo evoluiu, desde aí. Era necessário. Uma pequena obra com muito pano para reflexão. Fiquei com vontade de ler mais livros da autora.
Sinopse: Em 1921, um jovem Ernest Hemingway chega a Paris decidido a abandonar o jornalismo e a iniciar carreira como escritor. De bolsos vazios e com a cabeça povoada de sonhos, percorre as ruas de uma cidade vibrante nos dias de pós-Primeira Guerra Mundial, senta-se nos seus cafés para escrever, recolhe-se em retiros apaixonados com a sua primeira mulher, Hadley, e partilha aprendizagens e aventuras com algumas das mais fulgurantes figuras do panorama literário da época, como Ezra Pound, F. Scott Fitzgerald ou a madrinha desta - por si apelidada - «geração perdida», Gertrud Stein. Situada entre a crónica e o romance, Paris é uma Festa é a memória destes anos e a obra mais pessoal e reveladora de Hemingway. Deixada inacabada pelo autor, seria publicada postumamente, em 1964.
Opinião: Esta é a quarta obra que leio de Ernest Hemingway, o controverso Nobel americano. Comecei por “Na Outra Margem, Entre as Árvores”, um livro dos anos 50 que considerei profundamente misógino. De seguida, li “O Velho e o Mar”, e não consegui deslindar-lhe a prometida profundidade. Foi em “O Adeus às Armas” que o autor me conquistou por fim, e agora com “Paris é uma Festa” a minha admiração pela obra de Hemingway consolida-se.
Parece-me transversal na obra de Hemingway que o autor fazia questão de escrever de um modo claro – sem demasiado palavreado e, segundo ele diz a determinada altura nesta obra, tem alguma aversão ao adjetivo – e também com muitos diálogos. Os temas são, quase sempre, relacionados com a experiência pessoal do autor. Sabemos que viveu em Cuba, e daí devolve-nos “O Velho e o Mar”. Combateu na Primeira Guerra Mundial e conta-nos a sua experiência em “O Adeus às Armas”. Viveu em Paris nos anos 20, onde se cruzou com inúmeras figuras de relevo no campo das artes, e este livro, meio crónica, meio romance, permite-nos acompanhá-lo na sua rotina de escritor pelas esplanadas de uma das cidades mais inspiradoras do mundo.
Nos anos 20, quando viveu em Paris com a primeira mulher e o filho, Hemingway era apenas um contista. Tinha abdicado do jornalismo para se dedicar apenas à escrita, e lutava por escrever um romance. Engraçado ver um futuro Nobel a debater-se com a escrita de um romance, mas é assim que o autor o descreve. Acompanhamo-lo sentado nos cafés e nas esplanadas da cidade, com o seu caderno e o lápis, a trabalhar no esboço de “O Sol Nasce Sempre”. Com ele cruzam-se James Joyce – a quem admira e vê como uma estrela -, Ezra Pound, T.S. Elliot, Scott Fitzgerald e tantos outros. A riqueza do livro – talvez sobretudo para uma escritora – seja esse vislumbre dos escritores sem fundos, a dormir em quartos alugados e a ansiar por um pagamento de um artigo que escreveram há imenso tempo, ou por um prémio literário que os salve da vida de artistas desgrenhados e desfavorecidos. Por ex., conta-nos que T.S. Elliot era um ótimo poeta que se refugiava sempre no mesmo banco, fizesse chuva ou sol, e que ele próprio e outros tantos uniram-se numa fundação chamada Bel Esprit para o resgatarem daquele banco com fundos comuns. Acontece que T.S. Elliot lá viu o seu trabalho reconhecido e foi premiado com uma boa soma de dinheiro, acabando por sair sozinho do banco.
Mas o livro é valioso por muito mais do que esta janela para a vida de escritores que se consagraram e venceram o teste do tempo (Joyce, que terá cegado no fim da vida, devido a sífilis, e Scott Fitzgerald, que bebia demasiado e era um tanto hipocondríaco e inseguro). “Paris é uma Festa” vale muito pelo retrato da Paris que se reconstrói após a Primeira Guerra Mundial, e que floresce por via de artistas como Picasso, Cézanne, Miró e tantos outros, que Hemingway conhece e admira. Nesta Paris do pós-guerra, vemos já as sementes que hão de arrastar a Europa para a Segunda Guerra. Fala-se em inflação, em estropiados, em militares esquecidos após terem perdido um ou mais membros pela pátria.
”Alguns usavam a fita da Croix de Guerre na lapela. Outros, ainda, ostentavam o amarelo e o verde da Médaille Militaire. Eu punha-me a observar a maneira como eles venciam a deficiência dos membros e atentava na qualidade dos seus olhos artificiais e na maior ou menor eficiência com que lhes haviam reconstruído os rostos. (…) Nesse tempo, não tínhamos confiança em ninguém que não estivesse estado na guerra; aliás, não confiávamos totalmente em ninguém, e achávamos que, na verdade, Cendrars poderia bem mostrar-se menos exibicionista quanto à falta do braço.”
Imaginar a Paris dos anos 20 com um cabreiro acompanhado de um cão pastor a tocar uma gaita de foles e a chamar os parisienses à porta de púcaro, caso quisessem leite de cabra, é precioso. A Paris onde se pescava ao longo do Sena também me parece fascinante. Em cem anos, como as coisas mudaram!
Um Hemingway em fim de vida, que não chegou a terminar esta obra nem a vê-la publicada, leva-nos de volta no tempo, e recorda-nos qual a ferramenta essencial para se criar em qualquer ramo artístico: viver.
Sinopse: Pan é, desde a sua publicação, um dos livros mais apreciados e amados de Knut Hamsun. Uma obra-prima da literatura, onde «a natureza fala na língua subtil e sonhadora de um breve e idílico Verão nórdico».
Através dos papéis encontrados depois da sua morte, o tenente Glahn relata-nos a sua trágica paixão pela jovem Edwarda, num crescendo de exaltação que invade e se confunde com a paisagem envolvente, tornando-se difícil distinguir entre natureza e psique.
Opinião: Ainda no outro dia se falava, algures pelo Instagram, sobre comprar-se livros pela capa. Comprei Victoria (1898) precisamente pela capa, depois ajudada pela sinopse. Gostei tanto que pouco depois me comprometi a adquirir Fome (1890, vejo-o sempre esgotado), e este Pan (1894).
Pan é uma figura da mitologia grega, meio humano meio animalesco (focinheira e chifres), divindade dos bosques, e portanto dos pastores e dos caçadores. Uma breve leitura a seu respeito revela-nos que o seu lado humano lhe conferia sentimentos ternos, bem como a capacidade de se apaixonar. Porém, o seu lado animal levava-o a destruir tudo o que acarinhava.
O título do romance entrelaça-se com perfeição nesta figura mitológica. O enredo decorre numa ilha nórdica que o autor nunca chega a nomear, onde o Tenente Glahn se isola numa cabana de caça com o seu cão, Esopo. É a sua voz que nos guia através das estações e da paisagem, das noites de ferro, do ir e vir das embarcações no cais da ilha. Glahn é um jovem mistério para os habitantes da ilha, que acabam por se sentir atraídos pelo seu modo de vida e pela sua maneira de ser. Vêem algo de romântico no homem solitário que percorre a montanha com a espingarda e o cão, caçando para viver, cozinhando a própria comida, observando a natureza e a aurora boreal sem outra companhia que não os seus próprios pensamentos.
No início do romance, Glahn está em plena harmonia com a natureza ao seu redor. Disserta a respeito da paz e da felicidade que o mundo ao seu redor lhe inspira, com a sua tranquilidade e os seus ciclos. Porém, a dada altura, conhece Edwarda e o seu pensamento afasta-se do campo terreno para o mundo volátil dos sentimentos e das dores amorosas. Passa a experimentar ciúme e despeito, o que o transforma num ser por vezes cruel.
Knut Hamsun é uma figura controversa da literatura internacional. Terá sido uma figura errante que se entregou a períodos de vagabundagem ao longo da sua vida. Viveu na Noruega mas também na América do Norte, e a sua obra literária despreza o progresso e o mundo cosmopolita. Era grande apreciador da natureza, e um grande admirador da Alemanha e da sua visão do mundo, tendo-a apoiado em ambos os conflitos mundiais. Em 1920, foi galardoado com o Prémio Nobel da Literatura. Como defensor do regime nazi, e tendo inclusive apoiado a invasão do seu país natal pelo III Reich, chegou a escrever uma elegia a Hitler após a sua morte, engrandecendo as suas qualidades de guerreiro e pensador. Essas posições valeram-lhe um internamento psiquiátrico no pós-guerra, partindo do princípio de que sofreria de algum tipo de patologia que lhe condicionava as ideias. Ainda assim, em pleno internamento, escreveu a sua última obra, criticando os profissionais que duvidavam das suas capacidades mentais.
"Fome", "Pan" e "Victoria" formam uma espécie de trilogia que ilustra uma fase da escrita do autor, em que se evidencia o pensamento panteísta (o universo e Deus como um só, para simplificar, sendo que Deus se manifesta através do universo e mais concretamente da natureza), um lirismo que me recorda o romantismo de inícios do século XIX, embora com trejeitos de maldade.
"- Podias dar-me o Esopo? Eu não hesitei. Respondi-lhe: - Sim. - Então talvez possas vir amanhã e trazê-lo contigo - pediu ela. (...) Porque razão teria ela pedido para aparecer pessoalmente e levar-lhe o cão? Iria ela dizer-me alguma coisa e falar comigo pela última vez? Já não tinha qualquer tipo de esperança. Como iria ela tratar Esopo?Esopo, Esopo! Irá torturar-te! Irá chicotear-te por minha causa, com e sem razão (...). Chamei Esopo para junto de mim, afaguei-o, juntei as nossas duas cabeças e peguei na minha arma. Ele já gania de prazer, pensando que iríamos sair para caçar. Juntei as nossas cabeças novamente, encostei o cano da arma ao pescoço de Esopo e disparei... Paguei a um homem para levar o corpo de Esopo a Edwarda."
Espero voltar a lê-lo em breve, embora nem toda a sua obra esteja disponível em português, coisa que entendo porque vejo um fosse ideológico e estilístico entre este tipo de literatura e a que foi vingando na Europa do Sul.
Sinopse: Siddhartha, filho de um brâmane, nasceu na Índia no século VI a.C. Passa a infância e a juventude isolado das misérias do mundo, gozando uma existência calma e contemplativa. A certa altura, porém, abdica da vida luxuosa, protegida, e parte em peregrinação pelo país, onde a pobreza e o sofrimento eram regra. Na sua longa viagem existencial, Siddhartha experimenta de tudo, usufruindo tanto as maravilhas do sexo, quanto o jejum absoluto. Entre os intensos prazeres e as privações extremas, termina por descobrir «o caminho do meio», libertando-se dos apelos dos sentidos e encontrando a paz interior. Em páginas de rara beleza, Siddhartha descreve sensações e impressões como raramente se consegue. Lê-lo é deixar-se fluir como o rio onde Siddhartha aprende que o importante é saber escutar com perfeição.
Opinião: Este foi o primeiro livro que li da autoria de Herman Hesse, naturalizado suíço e vencedor do Prémio Nobel da Literatura em 1946.
Hesse aproximou-se da cultura e filosofia oriental durante uma viagem à Índia, em 1911, e essa viagem marcou profundamente os seus trabalhos. De salientar que viveu as duas Guerras Mundiais, com toda a carga emocional a elas associada.
Não consigo pronunciar-me acerca de Siddhartha sem evocar as minhas crenças espirituais; isso é um dos contributos do livro para o leitor - a ideia de que a espiritualidade é algo que vem de dentro, que se busca em nós e no Samsara (uma espécie de energia que une todos os seres vivos e que funciona como fluxo constante da vida, fazendo com que passado, presente e futuro sejam um só). Eu não acredito em religiões - acho que as religiões servem o único propósito de controlar as massas, e outras servem apenas os homens e a sua ganância. Há "igrejas" que são, na realidade, empresas com objectivos estabelecidos que visam enriquecer uma cúpula de privilegiados. Sou obrigada a mencionar o Edir Macedo e a corja de cães gulosos da IURD, que sugam a alma e a paz aos desgraçados que por lá aparecem para ouvir o Evangelho. Em Mateus (19; 24), encontramos a célebre citação de Jesus: "é mais fácil fazer passar um camelo pelo buraco de uma agulha do que um rico chegar ao Reino dos Céus", e acredito que esta simples ideia tenha dado azo a muito debate. Não concordo com ela numa visão socialista (todos os ricos são maus), mas sim numa visão céptica, em que nem sempre quem é rico é-o por mérito próprio ou através do próprio suor. Este tipo de doutrina não interessa aos cães gulosos, mas é aquilo que de mais significativo encontramos sobre aquilo que seria a filosofia de Cristo. Isto e o não pedir nada, porque me parece que na Bíblia as maiores bênçãos chegavam para os humildes, para os que se arrependiam, para os que nada pediam (tantas vezes nem sequer perdão, pois que Maria Madalena está perdoada antes sequer de abrir a boca).
Neste ponto esclareço que, para mim, Jesus é quando muito uma figura política, alguém cuja visão permitiu compreender as injustiças sofridas pelo povo Judeu às mãos dos seus opressores (no momento histórico em que viveu, referia-se aos romanos).
Siddhartha é um pequeno romance (ou "poema indiano") de aproximadamente 140 páginas, ao longo das quais acompanhamos o curso da vida de um filho de brâmane, portanto um sacerdote de bom estatuto na organização social hindu. Este jovem brâmane, de nome Siddhartha, decide não se cingir a uma doutrina, nem sequer à que o seu pai pratica, e ir pela Índia em busca de si mesmo. Juntando-se aos samanas, peregrinos no limiar da pobreza, que vivem de meditação e esmolas, aprende a jejuar, a pensar e a esperar, e com outras entidades aprenderá outras tantas lições importantes sobre si mesmo e o universo.
"Ninguém conseguirá a libertação através de doutrinas! Com ninguém, ó Venerável, conseguirás partilhar e dizer o que te aconteceu na hora da tua iluminação! (...) Esta é a razão pela qual prossigo a minha peregrinação (...) para abandonar todas as doutrinas e todos os mestres, para alcançar sozinho o meu objetivo ou para morrer."
O que me parece mais valioso nesta odisseia do jovem Siddhartha é a ideia, tantas vezes controversa, de que a espiritualidade é algo de profundamente pessoal, e que ninguém tem como viver essa viagem pelo outro. Em suma: de nada adianta sentar e escutar aquilo que um Homem esclarecido tenha concluído da sua própria busca espiritual, porque qualquer explicação será oca se não a vivenciarmos. De nada adianta idolatrar alguém só porque reconhecemos nessa pessoa alguma santidade, ou um espírito esclarecido, e vivermos à sombra dos seus ensinamentos. Por muito que a sua doutrina seja verdadeira, continua a ser a verdade daquela tal pessoa, e os significados profundos só fazem sentido para o indivíduo quando é ele a descodificá-los, ao seu ritmo e à luz dos seus próprios sacrifícios e experiências.
Eu sempre senti que a ideia de Deus, de sacralidade, de certo e de errado, vem de dentro de nós. Nunca consegui seguir uma doutrina, acenar em concordância com a leitura de textos ditos sagrados, ou seguir as restrições que tantas religiões impõem. Tantas vezes essas restrições às liberdades individuais são inclusive fruto do preconceito do Homem que interpreta "as escrituras", e não a génese daquilo que está escrito. Creio que, ao entregar-se a uma religião, ao admitir castrar a própria liberdade, o próprio pensamento, a própria capacidade de contemplação, por direccionamento de outrem - que julga ter um conhecimento superior sobre o mundo e o além - o transformamos na nossa consciência. A nossa consciência deve partir de reflexões profundas e de lições apenas por nós vividas.
O livro é muito prolífero neste tipo de reflexão, creio que não ofende nenhum credo - apenas direcciona, com naturalidade, o Homem a descobrir-se a si mesmo e às verdades que o satisfazem espiritualmente.
Sinopse:«Hamsun é o mais notável escritor norueguês desde Ibsen.» (Times Literary Supplement)
«Victoria», livro de rara beleza narrativa, é uma das obras mais representativas de Knut Hamsun. O enredo marca o regresso do autor de «Pan» – escrito quatro anos antes – ao tema do trágico desencontro amoroso, que tem na descrição da beleza taciturna e melancólica da natureza nórdica o seu espelho.
Johannes, filho de um modesto moleiro, que em jovem sonha trabalhar numa fábrica de fósforos para ter os dedos sempre sujos de enxofre e assim não ter de apertar a mão a ninguém, ama Victoria, jovem de família aristocrata mas com poucos meios financeiros. Contudo, o deles será um amor impossível, pois Victoria vê-se obrigada a casar com o rival Otto para salvar a família da bancarrota.
Em adulto, Johannes tornar-se-á num poeta, que se orgulha de conhecer os nomes das árvores e dos pássaros. Continuará a jurar amor eterno a Victoria, mas o sentimento que nutre por ela é fruto da obsessão, do orgulho e da distância, precipitando um trágico final quando chamado a cumprir-se.
Opinião:
"Alguém pergunta o que é o amor. Diremos: «O amor é um vento que murmura nas roseiras e depois abranda. Mas por vezes é também um selo inviolável, que dura toda a vida. Deus criou diversas espécies de amor: as que duram e as que perecem.»"
A vida de Knut Hamsun, que escreveu este Victoria em 1898, parece-me ter o cunho da existência dos grandes artistas. Uma solidão, um isolamento que começaram cedo e que nem a convivência com familiares ou casamentos (invariavelmente falhados) conseguem mitigar. Parece-me fascinante ler sobre este norueguês que passou por tantas paragens, que operou tantos ofícios, e que abominava o meio urbano. Também notável a seu respeito, é o facto de ter publicado um livro com 90 anos, com tal eloquência que deitou por terra o parecer psiquiátrico a que havia sido submetido, e que o declarava senil.
A proximidade à natureza - que nos concede recantos para reflexão, simplicidade e alimento, está muito patente nesta sua obra. Por toda a narrativa vêm denominadas flores, árvores, cursos de água, e são parte da história. Engraçado como a memória se imprime em locais específicos, ou em objectos. E como o amor surge destruidor, quando contrariado. Corrói o interior das personagens, afasta-as de si mesmas e dos seus valores iniciais, bem como da sua própria natureza.
Como a sinopse indica, trata-se de uma história de desencontro amoroso. O moleiro e Victoria, filha do castelão, impedidos de viver o seu amor juvenil um pelo outro, vão andar pela vida sob o peso dessa amargura. As suas vivências e escolhas acabam por ter sempre impacto no outro, pois que não conseguem existir dissociados. Talvez seja essa a faceta nefasta do amor: por muito que a pessoa deva viver a sua vida, e até se alegre que a outra também esteja a viver a sua, tantas vezes as alegrias de um são a morte de espírito do outro.
Achei uma obra de uma simplicidade desconcertante: Bela, angustiante, melancólica. Jamais associaria o seu autor a alguém que conduziu elétricos em Chicago ou que defendia o intelecto e os intentos de Hitler. Tempos complexos, essas décadas do século XX. Classificação: 4****/*
Sinopse: Desgraça é muito mais do que um relato social: é um relato de sobrevivência pessoal numa sociedade decadente. Passado na África do Sul pós-apartheid, este romance sincero e despudorado centra-se em David Lurie, professor universitário na Cidade do Cabo, de meia-idade, divorciado, que divide o seu tempo entre o desânimo das aulas e as satisfações momentâneas que encontra numa prostituta. Quando esta o deixa de atender, David desvia as atenções para uma jovem aluna, começando uma aventura sexual que, quando tornada pública, o leva ao despedimento e à humilhação.
Opinião:
"Está bem, eu vou. Mas só se não tiver de me tornar numa pessoa melhor. Não estou preparado para me regenerar. Quero continuar a ser eu mesmo."
Galardoado com o prémio Nobel da Literatura em 2003, J.M. Coetzee é um Sul-africano naturalizado australiano. Este é o primeiro romance que li da sua autoria, e já acrescentei à lista, para ler, À Espera dos Bárbaros.
Interessa-me muito ler sobre África e as suas complexidades, e durante a leitura veio-me à ideia a trilogia das irmãs Keating sobre o Quénia. Mas o Quénia das irmãs Keating é um Quénia pós-domínio britânico, e a África do Sul de Coetzee é dos anos 90. Dói bastante o facto de ser tão contemporânea, mesmo porque há um senso doloroso de potencial desperdiçado.
A nossa personagem principal, o Professor David Lurie, é produto dessa complexidade cultural. Começa o romance com uma posição relativamente privilegiada, numa Universidade, e é destituído do cargo devido aos impulsos incontroláveis da sua sexualidade decadente. Como homem de meia-idade, horroriza-o a falência da masculinidade, do intelecto, do vigor dos membros para realizar tarefas manuais. Junto da filha, uma mulher corajosa que nunca cheguei a compreender por completo, terá oportunidade de reflectir um pouco sobre si mesmo, as suas acções, a sua personalidade e o que, em si e na África profunda, lhe parece imutável.
O David Lurie de Coetzee não é heróico, nem um idealista, nem se propõe a mudar coisa alguma. É apenas um homem já não muito novo, já não muito forte, perante uma sociedade estratificada e dura que não perdoa um deslize, mas que, ainda assim, é prolífera em favoritismos, em tirania subtil e em crueldade humana.
Terminei o romance com um travo a angústia e a frustração. África é sempre mágica, e também é sempre implacável. Este romance mostra-o com grande competência.
"Now is the winter of our discontent;Made glorious summer by this sun of York"
Se considerar O Inverno do Nosso Descontentamento avulso, atribuir-lhe-ia um 5. À luz de outros trabalhos de Steinbeck, seria um 4 - falta-lhe a pujança e a pertinência de um As Vinhas da Ira, ou a espiritualidade de um A Um Deus Desconhecido, ou mesmo a nota de desconcerto final que nos deixa um Ratos e homens. Na minha percepção, este é um romance mais contido, mais reflexivo e até mais pessoal. A sociedade está presente, as suas injustiças, hierarquias, vícios e manias. E, uma vez mais, estamos perante a narrativa de um homem honesto, de bom fundo, perante as vilezas que o rodeiam. Não é uma história de sobrevivência, como outras do autor, mas sim de ganância, de status social, e também de idoneidade. Declínio e ascensão na sociedade é o que molda e o que move Ethan Allen Hawley e a sua pequena família, no seio de uma cidade fictícia que o autor inventou para urdir o seu enredo. Acompanhamos, ao longo das cerca de 300 páginas, a decadência moral que tem lugar por detrás das fachadas de New Baytown, que mina a política e a autoridade local. E Steinbeck presenteia-nos com uma personagem principal complexa, multidimensional, cujas ações nos surpreendem e nos chocam, sem que nunca deixem de nos importar. Mais um romance de excelência daquele que se tem consagrado como o meu autor favorito, a par com o grandioso Somerset Maugham.
Sinopse: O Inverno do Nosso Descontentamento, o último romance que Steinbeck publicou, em 1961, é dominado pelos temas sociais, que conferiram à obra do autor uma unânime ressonância internacional. O núcleo do romance é o dinheiro, a hipocrisia e os falsos valores, a crítica serena mas implacável às engrenagens de uma sociedade que mutila o homem no que ele tem de mais autêntico. Na ponta final da sua carreira literária, John Steinbeck reencontra o fulgor de As Vinhas da Ira, o seu romance mais famoso, galardoado em 1940 com o Prémio Pulitzer
"- Não tens a impressão de ser um criminoso, pois não?- Não - disse eu. - Quando estou contigo não tenho.- Tu és um rapaz sem juízo - disse ela -, mas hei de olhar por ti. Não é esplêndido, querido, que eu nem sequer sinta náuseas pela manhã?- Estupendo!- Tu não sabes apreciar a esplêndida esposa que tens. Mas não me importo. Hei de arranjar um lugar onde não te possam prender, e então seremos muito felizes. - Vamos já para lá!- Sim, querido. Irei para onde quiseres e quando quiseres.- Não pensemos em nada.- Está bem."
Opinião: Ernest Hemingway nasceu em Julho de 1899, perto de Chicago. Com apenas 19 anos, conseguiu que o exército italiano o aceitasse nas suas fileiras, no contexto da I Guerra Mundial, ocasião em que foi condutor de ambulâncias para a Cruz Vermelha. Por essa altura, terá vivido um amor - possivelmente o seu primeiro amor -, com a enfermeira Agnes von Kurowsky. Tudo isto parece ser a matéria-prima de O Adeus às Armas, volvidos dez anos. Tal como o próprio autor, a sua personagem principal, Frederic Henry, é condutor de ambulâncias no exército italiano, pelo que Hemingway pôde pôr a uso o seu conhecimento da realidade, cultura e particularidades dos italianos (creio ter lido algures que Hemingway dizia apenas escrever sobre aquilo que conhecia bem.). A senhorita Von Kurowsky, que terá abandonado o nosso jovem autor por outro homem, será a provável inspiração para a enfermeira escocesa Catherine Barkley, com quem Henry se envolve com a guerra como pano de fundo. Também este detalhe tem um fundamento na vida do autor, e ajuda a conferir realismo à narrativa: O Adeus às Armasnão tem nada de heróico ou de épico, é apenas o conto de um punhado de humanos enleados na complexa - e incompreensível - teia da guerra e nas provações práticas da mesma (longe das politiquices).
A primeira obra que li de Hemingway foi Na outra Margem, entre as Árvores, publicado em 1950, quando Hemingway tinha 51 anos e, portanto, uma perspectiva diferente (apurada) da guerra, do amor, das mulheres. Considerei-o machista, misógino, aborrecido. Detestei-lhe os diálogos - por um lado povoados daquela pouca coesão caraterística da comunicação oral, por outro lado desconexos ao ponto de me exasperarem. Neste último, conheci um Hemingway com 30 anos, menos cínico, menos áspero, com um toquezinho subtil de humor, mas já com a mesma carga pesada, lúgubre, que parece ser o seu cunho em cada obra.
Neste livro, compreendi-o melhor. Compreendi que um rapaz de 18, 19 anos, partiu voluntariamente para o horror de um conflito Europeu, a um oceano e a um mundo de distância, onde sofreu um ferimento que lhe cravou mais de 200 estilhaços no joelho. Não consigo imaginar o susto, a alienação. Tão longe de casa, rodeado de estranhos, cheio da energia da juventude e, no entanto, metido numa cama de hospital. Surge a enfermeira bonita, estrangeira. É tudo muito exótico, ainda para mais o rapaz sobreviveu, está apaixonado e ela retribui. Deve sentir-se invencível, imortal. De repente ela foge com outro. Ele é devolvido ao teatro de guerra. Uma vez terminado o horror, volta a casa com os seus fantasmas, e encontra a América prestes a atirar-se aos loucos anos 20. Tem a cabeça cheia de obuses, de disparos, de baionetas e de granadas, da lama das trincheiras e dos clarões de artilharia, mas ao seu redor estão todos a dançar o foxtrot.
Resultado? O capitalismo é nojento. As mulheres umas levianas desmioladas. A guerra é tudo o que conhece, e nela há-de debruçar-se uma vez e outra, e ainda assim a guerra nunca faz sentido, em livro algum que escreva. Tudo o que Hemingway sabe é que entra-se na guerra com tudo o que se é e com tudo o que se tem, e que se sai dela despojado de si mesmo. A guerra engole tudo. Engoliu-o, mastigou-o e devolveu-o a um mundo que lhe era estranho e no qual ele se sentia um alienado. Moldou-o para sempre. Não será por acaso que se suicida em 1961, depois de uma vida de controvérsia, suposto abuso de álcool e alguns escândalos. Gostava de gatos - não me posso esquecer que Hemingway gostava dos místicos felinos, que têm tão pouco de bélico.
Gostei muito desta narrativa de guerra, e os diálogos (que ainda assim, por vezes, me parecem repetitivos e sem nexo) são ligeiros e ajudam a avançar nas páginas. Julgo que uma das principais críticas a este romance é que o amor entre Henry e Catherine parece supérfluo. Acabei por (julgar) entender que na guerra se está tão sozinho, mesmo quando rodeado dos "rapazes", que não é difícil apaixonarmo-nos. Fazer planos para os tempos de paz. Estar-se com alguém, na guerra, é como a ilusão de que talvez haja um pouco da nossa essência, do nosso lado emocional, que pode ficar salvaguardado dos horrores quotidianos.
O final tocou-me, validou o romance, principalmente porque o livro segue um mesmo tom, sem grandes altos e baixos mesmo nos momentos de suposto climax emocional. Creio que Hemingway dirigiu muito bem o tom nesses acontecimentos finais. No fim, a sensação com que se fica é que é a guerra. E não se pode fugir da guerra. Mal ele sabia que a guerra ainda havia de persegui-lo por mais 30 anos, até um tiro ir, por fim, alojar-se-lhe na têmpora.
Classificação: 4,5/5*****
Sinopse: "O Adeus às Armas", muito provavelmente o melhor romance americano resultante da experiência da Primeira Guerra Mundial, é a história inesquecível de Frederic Henry, um condutor de ambulâncias que presta serviço na frente italiana, e da sua trágica paixão por uma bela enfermeira inglesa. O retrato franco e sem falsos pudores que Hemingway esboça da ligação amorosa entre o Tenente Henry e Catherine Barkley, arrastados pelo inexorável turbilhão da guerra, brilha com uma intensidade sem paralelo na literatura moderna, e a sua descrição do ataque alemão ao Caporetto – com as intermináveis filas de homens a caminhar à chuva, esfomeados, exaustos e desmoralizados – é decerto um dos grandes momentos de sempre de toda a história literária. Romance de amor e sofrimento, de lealdade e deserção, O Adeus às Armas, escrito quando tinha apenas trinta anos, é uma das obras-primas de Ernest Hemingway.
Opinião: Gabriel Garcia Márquez publicou aquilo que só pode ser a obra-prima da literatura em língua castelhana em 1967, quando tinha apenas 40 anos. Calculou que lhe bastassem 6 meses a escrever todas as manhãs para o terminar, mas na verdade demorou 18 meses a completá-lo. Segundo o próprio, a inquietação mais premente da sua vida durante esse tempo foi a possibilidade de que lhe acabasse o papel para a máquina de escrever. A cada erro de grafia, destruía a folha e recomeçava de novo. Ao descer do autocarro com a versão final do manuscrito, a editora tropeçou e as folhas caíram numa poça e ficaram expostas à chuva. Foram posteriormente secas com ajuda de um ferro de engomar, e o autor só veio a sabê-lo muitos anos depois. Também conta o próprio que, ao enviá-lo para um editor na Argentina, só tinha fundos para pagar o envio de metade do manuscrito, pelo que o dividou. Ainda por cima, enganou-se e enviou apenas a segunda parte, no lugar da primeira. Acabou por ser o editor, provavelmente assombrado por esta jóia rara, que custeou o envio do início, para assim entender como começa a odisseia dos Buendía. Isto é apenas um pouco do misticismo em torno de Cem Anos de Solidão e do punho do génio das letras que lhe trouxe vida. Porque, ao terminar de ler esta maravilha – no sentido mais literal “de maravilha” –, só posso concluir que o autor era um génio.
Revisitei as poucas entrevistas na sua voz no Youtube, e é assim que descubro que o autor se sentou diante da máquina de escrever com uma única frase na ideia, e sem saber onde é que a mesma poderia levá-lo.
”Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o coronel Aureliano Buendía haveria de recordar aquela tarde remota em que o pai o levou a conhecer o gelo. ”
Esta frase levou a que o seu romance fosse traduzido em todas as línguas, e resultasse em mais de 50 milhões de cópias vendidas.
Que posso acrescentar a respeito deste magnífico romance?
Cem Anos de Solidão distorce o tempo e transforma Macondo - a povoação fictícia onde tudo se passa - no eixo de um furacão onde tudo sucede em círculos, e onde os males de uma família parecem ser quase uma alegoria para a história de uma humanidade supersticiosa, espiritual, mágica, sem tempo e finita. O que mais me surpreendeu na narrativa não foi tanto o realismo mágico que já havia experimentado, embora em doses menores, em O Amor nos Tempos de Cólera e Crónica de uma Morte Anunciada, mas sim o fulgor e a vitalidade com que cada página é entregue ao leitor, como se tudo tivesse sido escrito a um mesmo ritmo, num mesmo fôlego. Chegar ao fim da leitura é como perder esse fôlego. Primeiro flutuei, depois pareceu que dava cambalhotas, que trazia ao meu redor as borboletas amarelas que acompanhavam Mauricio Babilonia, ou que tinha a casa infestada de formigas-vermelhas, e continuou a cheirar-me aos orégãos do quintal dos Buendía durante um bocado, e talvez todas essas impressões só me abandonem daqui a muito tempo. Qualquer página a que regresse tem o peso da narrativa e a solidez das emoções, e qualquer capítulo, ainda que despregado de tudo o resto, é dos melhores jamais escritos, pelo menos que pelos meus olhos tenha passado.
Considero este livro uma obra de lucidez maior e de talento quase sobrenatural. Um caso nítido em que o homem supera a sua própria condição de mero mortal e se eleva. Uma ode aos costumes caribeños, a uma latitude algo negligenciada, a tempos idos eternizados por estas páginas sem tempo, em que tudo vai acontecendo, mas depois parece retroceder. É sublime o modo como o autor mexeu com as ânsias e as emoções humanas, como que universalizando-as de modo transversal ao longo do globo e da História, ou como jogou com a memória humana e as suas partidas. E a imaginação que vai sobejando de geração para geração, ao longo de sete desafortunados desníveis de Buendías, é a verdadeira matéria-prima da obra.
Pergunto-me como é que um simples homem, em 18 meses, conseguiu engendrar tanta tropelia, tanto traço genuíno e distintivo, por entre os vícios e as semelhanças dos Aurelianos e dos Jose Arcadios, de modo a que a maravilha que acompanha toda a leitura renasça e nos surpreenda a cada nova geração. E o papel da Mulher, nesta obra de há 50 anos, é de uma perspicácia e de uma honestidade incríveis. É de uma sensibilidade magnífica o modo como um autor assume, sem melindres, que a Mulher, e em especial uma mulher – Úrsula – pode ser a mais clarividente das criaturas, e também a mais equilibrada naquela “casa de loucos”.
Sem dúvida, dos livros que ficam e que mudam a compreensão da literatura e da capacidade do Homem, sobretudo a do homem de 40 anos! - e que é possível que continue a ser lido e relido até ao final dos tempos.
Classificação: 5/5*****
Sinopse: Esta é a história da família Buendia, de Aurelianos e Josés Arcadios, geração após geração, de milagres e fantasias,de paixões e adultérios, descobertas e tragédias, de mortes e mortos, de histórias e histórias... e de muitas vidas, tantas quantas as línguas em que este romance já foi traduzido. O realismo mágico na pena de um dos maiores escritores do nosso tempo!
Sinopse: Meursault recebe um telegrama: a mãe morreu. De regresso a casa após o funeral, enceta amizade com um vizinho de práticas duvidosas, reencontra uma antiga colega de trabalho com quem se envolve, vai à praia - até que ocorre um homicídio. Romance estranho, desconcertante sob uma aparente singeleza estilística, em O Estrangeiro joga-se o destino de um homem perante o absurdo e questiona-se o sentido da existência. Publicado originalmente em 1942, este primeiro romance de Albert Camus foi traduzido em mais de quarenta línguas e adaptado para o cinema por Luchino Visconti em 1967, sendo indubitavelmente uma das obras-primas da literatura francesa do século XX.
Opinião:
Um artigo do Expresso, de 2013, anunciava que O Estrangeiro tinha vendido oito milhões de cópias, e que estava traduzido em 40 línguas.
Não me é frequente, na literatura, precisar do estímulo do contexto para melhor perceber um livro, mas foi o caso com este. Um livro que precisa desse tipo de auxílio nunca me chega tão a fundo quanto um livro que me consegue cativar sem qualquer nota de rodapé. Acabo por sentir alguma admiração pelos livros que necessitam de contextualização - quando bem conseguidos, como é o caso-, mas acompanhada de um distanciamento que não dá para ultrapassar.
Custou-me a sentir qualquer tipo de empatia pela personagem central do livro, este Meursault. Passei o livro todo à procura de uma lógica para estas páginas. Foi ao terminar a leitura, ao reflectir sobre o ano da sua publicação- 1942 -, e ao dedicar-me a alguma leitura a respeito do autor e da época que julgo, agora, ser capaz de entender L'Étranger um bocadinho melhor.
Assumindo que não há qualquer sentido, qualquer ideal em causa, ao longo destas 85 páginas, tudo me parece mais claro. Uma vez mais, cruzo-me com o conceito de niilismo, em que nunca me tinha detido até agora.
Neste romance, Camus narra uma série de acontecimentos, diria até que algo banais (daí que me tenha sentido aborrecida durante 75% da leitura), e imprime-os no dia-a-dia de um homem indiferente, que passa pela vida sem a analisar, sem lhe buscar um sentido, um propósito.
Meursault passa pela vida sem lhe extrair nenhum significado superior, vivendo de momentos que, tantas vezes, são forjados por terceiros. Não se permite qualquer reflexão profunda, não disserta a respeito da vida, da morte, do amor, etc. Parece mais próximo da natureza do que da sociedade, como se esta pouco o afectasse, como se andasse pela rua sem se deixar tocar pela vivência dos outros, e como se analisasse os episódios do seu quotidiano a uma luz desprovida de expectativas sociais. Quando questionado, responde de acordo com os seus sentimentos - também eles algo superficiais, porque despidos da análise que lhes dá complexidade -, arriscando-se a ser mal-entendido. Meursault acabou por me parecer um alienado, por vezes procurava-lhe uma patologia, convencida de que ele não sentia, mas, entretanto, dei-me conta de que, neste texto na primeira pessoa, ele chega a falar de felicidade, de satisfação, e entendi que Camus criou apenas uma personagem diferente, que não tem necessidade de se iludir ou de procurar um sentido para a existência por via da religião ou de outros misticismos tais. É o rosto daquilo que seríamos se o nosso lado espiritual - e acredito que nos é "biológico" tê-lo - não insistisse em nos fazer acreditar em algo maior.
Por último, tratando-se de um trabalho desenvolvido durante a II Guerra Mundial, entendo que o livro traduz também um pouco da psicologia da época, numa altura em que tantas vidas foram arrancadas ao seu "caminho natural", e em que me parece evidente que os intelectuais partilhavam uma noção generalizada de "absurdo". Como romântica assumida, continuo a preferir um romance que procure interpretar os porquês da existência, e trazer maior clareza à compreensão dos dilemas do Homem. Se possível, que me reconforte, ainda que alimentando a ilusão de haver uma consciência geral, ou um propósito para a nossa inteligência. Creio que o buscar-se sentido para as coisas é, precisamente, o que faz de nós humanos. A ter de abraçar uma "filosofia de absurdo", prefiro, no contexto da I Guerra Mundial, as mornas conclusões a que Somerset Maugham chegou em 1915, aquando da publicação de Servidão Humana.