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Castelos de Letras

Em torno das minhas leituras!

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#266 DINIS, Júlio, As Pupilas do Senhor Reitor

Opinião: As Pupilas do Senhor Reitor é, talvez, o livro mais famoso e mais readaptado do escritor portuense Júlio Dinis. Publicado em folhetins em 1866, esta história passada numa aldeia portuguesa inominada foi ilustrada pelo artista Roque Gameiro em 1904 e 1905. Segundo Roque Gameiro, que percorreu o norte do país para procurar a paisagem adequada ao enredo, a ação teria lugar em Santo Tirso. Deixo algumas das esmeradas ilustrações de Gameiro, que sem dúvida me ajudaram a visualizar este romance soberbo.

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Tratando-se do terceiro livro de Júlio Dinis que leio este ano, começo a sentir algum cansaço face a um certo estilo de narrativa e a certo conteúdo temático (uma espécie de puerilidade que percorre todo o enredo). No entanto, se a primeira metade do livro considerei algo enfadonha, a segunda recordou-me do porquê de apreciar tanto as tramas do autor.

Este romance conta a história de duas meias-irmãs, Margarida e Clara. Quando ficam órfãs, o reitor da aldeia toma-as sob sua proteção. Ainda que financeiramente independentes, são as meninas dos olhos do reitor, e com ele realizam projetos de caridade, ensinam crianças a ler, levam conforto aos moribundos e etc. Gozam, portanto, da alta estima do povo da aldeia, malgrado sejam as duas muito diferentes.

Clara é alegre, espontânea e imprudente. O seu coração leve impede-a de se proteger de possíveis maldades alheias, e acaba metida numa grande confusão quando, já noiva, acaba por se colocar em situações comprometedoras com outro rapaz da aldeia. Quanto a Margarida, sinto ter já experienciado este espírito feminino noutras obras do autor. Tanto Jenny, de Uma Família Inglesa, como Berta, de Os Fidalgos da Casa Mourisca apresentam as mesmas qualidades. Próxima da canonização, Margarida é abnegada, perdoa facilmente e vive uma vida de recato. Pratica caridade, é adorada por crianças, velhos e moribundos, e é uma espécie de santa da aldeia, sendo inclusivamente assim apelidada por outras personagens em vários trechos. Esta santa, que se sacrifica para limpar a honra da irmã estouvada, é um tipo de mulher que Júlio Dinis parecia muito admirar, e que me suscita algumas reflexões. Primeiro, antevejo um laivo de romantismo nesta figura idealizada: ninguém é tão perfeito, tão doce, tão ponderado, tão apto a deixar-se sofrer e prejudicar, como as Jennys, as Bertas e as Margaridas desta literatura. Por outro lado, agrada-me a ideia, também exposta noutros romances do autor, de que os nossos protagonistas – por muito que amadureçam, por muito que se regenerem, nunca chegam realmente a “merecer” este tipo de mulher. E de facto há uma aura de etéreo em torno destas jovens, penso que talvez por Júlio Dinis ter perdido a mãe muito cedo, e por isso as mulheres terem sido para ele, quem sabe, uma entidade mística de superioridade moral, a salvo da inconstância masculina.

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Gosto sobretudo do retrato de Portugal que, apesar de sitiado nos anos 60 do século XIX, me parece ainda muito recente. Nesta aldeia as mulheres e crianças passam necessidades enquanto os maridos desperdiçam a pouca renda na taberna. O padre é uma entidade espiritual, mas também moral, e há sempre quem o siga de olhos vendados: é ele quem manda os homens para casa, entregarem os parcos soldos à prole. Como as aparições de Lourdes tinham tido lugar em 1858, causando com certeza grande impressão na sociedade portuguesa, havia mulheres que buscavam essa santidade pelo caminho da sacristia e da beatice. Aqui o autor deixa uma mensagem clara: a bondade, a santidade, são coisas distintas da devoção religiosa, o que me sugere que observava com ceticismo os costumes da época.

O que não apreciei neste livro foi, uma vez mais, a volatilidade dos sentimentos da personagem principal masculina, a leviandade com que professam o amor. Em Uma Família Inglesa, Charles é um estouvado até conhecer a jovem mascarada, e a partir daí redime-se sem mais. Em Os Fidalgos da Casa Mourisca é Maurício, uma personagem secundária, quem morre de amores pela nossa protagonista, e de repente esquece-a sem hesitar. Por fim, neste romance, é Daniel quem, depois de escrever versos a outras raparigas da aldeia, e de cercar Clara por não conseguir esquecer-lhe os modos alegres e os olhos negros, descobre que afinal o seu coração pertence a Margarida, à Margarida a quem nunca dedicou uma palavra em três quartos do livro. Resumindo: fiquei emocionada quando ele lhe retribuiu o seu amor de juventude, foi por isso que terminei o livro de um ápice. Porém, não pude deixar de concordar quando ela própria declara que em breve a afeição dele esvoaça para outra moça, os sentimentos deste médico da cidade não são de fiar, e isso desgosta-me neste tipo de romance, porque recai mais no romantismo de décadas anteriores do que no realismo que o autor se propôs a adentrar. O amor tudo redime, e o casamento é final feliz garantido.

De qualquer modo, recomendo vivamente, mesmo pelas gargalhadas que certas cenas me provocaram. Romance incontornável na literatura lusófona.

Deixo link para as ilustrações completas de Roque Gameiro numa edição antiga do romance, bem como estudos para as mesmas. Lindíssimo!

Classificação: 4****/*

 

Sinopse: Romance de Júlio Dinis publicado, em 1866, sob o formato de folhetins no Jornal do Porto, e em volume no ano seguinte. Segundo o próprio autor, numa referência das «Notas», a obra teria principiado a ser escrita em 1863, durante a permanência de Júlio Dinis em Ovar. O título refere-se às personagens femininas do romance, duas meias-irmãs órfãs, Margarida e Clara, de personalidades opostas, adotadas pelo Reitor. A intriga centra-se, contudo, em Daniel, segundo filho do lavrador José das Dornas. Depois de, em rapazinho, ter renunciado à carreira eclesiástica por amor a Margarida, Daniel regressa à aldeia, já médico e completamente esquecido do seu idílio de infância. Para além do Reitor, a obra apresenta uma interessante galeria de tipos rústicos, onde se destacam as figuras de José das Dornas, João Semana, o bondoso médico rural, João da Esquina, o dono da loja, e a sua esposa interesseira, a ti'Zefa, a beata linguaruda, entre outras. Em suma, As Pupilas do Senhor Reitor traduz a vida rural portuguesa da época.

#190 Velho, Susana Amaro, As Últimas Linhas Destas Mãos

Sinopse: Depois da morte de Alice, a sua filha Teresa recebe uma herança que a deixa intrigada: um monte de cartas, algumas com tantos anos quanto ela, que contam uma história de amor que não sabe se é ou não real. Não conhece os lugares. Não reconhece as personagens. Não sabe, sequer, quem é a própria mãe e onde se encaixa naquele enredo.


Este amor em linhas vivido por Alice, de tão intenso, tão mordaz, tão vivo e tão presente vai abrindo espaços, alimen
tando dúvidas, resgatando culpas antigas e memórias apagadas.

Mas será ele suficiente para que Teresa possa, finalmente, perceber e perdoar a mãe? Poderão as últimas linhas de Alice ser mais fortes e enlaçar o que ela em vida não conseguiu prender?


Opinião: As Últimas Linhas Destas Mãos é o primeiro romance de Susana Amaro Velho, e conquistou-me desde as primeiras linhas. Apenas o baixei por causa da oferta da Coolbooks na semana passada, em que poderíamos baixar um e-book de modo gratuito. Não sendo fã do formato, ainda assim aproveitei para explorar um pouco o que anda a ser escrito em Portugal de momento, para além das intrigas políticas (e o Vaticano) e dos romances históricos que parecem em ebulição. Não posso negar, também, que o livro me recordou, de modo muito íntimo, o meu próprio O Funeral da Nossa Mãe. A premissa parece-me semelhante, e no entanto a abordagem é diferente. Limpa, clara, plena de vocabulário que enternece e embala. Contudo, a dor está lá: a de uma mulher e a de uma mãe ausente, que sofre, que ama, que segue morta em vida, apesar de constantemente reclamada pela maternidade que desertou.

Para mim, ler este livro foi regressar às páginas que escrevi há sete, oito anos. Ao sentimento de agonia constante que andava comigo pela rua. À atenta absorção de Big My Secret, da banda sonora de O Piano. Um amor enorme, que mata. E acrescentam-se aqui outros pormenores que me parecem quase íntimos, quase meus. A mãe que se retira do seu papel, e a irmã que o assume com mais ou menos dificuldade, por ex.

”Tentei que a vida seguisse normal sem ti, mas o abismo sugou-me primeiro as pernas, depois os braços, depois as mãos e até os dedos.”

O amor é uma coisa terrível. O amor que corrói porque não é correspondido, ou não floresce, ou não cura, é como um cancro.

Neste romance de estreia, a autora pegou nas perspectivas de várias personagens para elaborar um quadro familiar. Teresa destaca-se um pouco das restantes, porque parece ter sido, de todos os que têm voz, a que se recorda da outra face da mãe. A não-deprimida, a não-morta em vida. E porque a mãe parecia confiar nela, mais do que em qualquer outra pessoa, para confessar os motivos da sua amargura. Além de Teresa há o irmão mais novo, Henrique, o pai Sebastião, a tia Cristina e a solitária Alzira. Cada um com a sua personalidade marcada, o seu grau de conhecimento dos factos, o seu papel na história.

Alice, sempre ausente, excepto pelo seu próprio punho, é um vulto nítido, outrora luz, vivacidade, criatividade. De súbito caída em desgraça. A sua lucidez tem tanto de angustiante quanto de admirável, e a única conclusão possível é, de facto, a de que demasiado amor mata.

A narrativa é poética, multiplicam-se os substantivos; tinha saudades de um livro mais sobre o substantivo do que sobre o adjectivo. Reflectindo sobre isso, há pouquíssimos adjectivos no livro, o que só por si me transporta de quadro em quadro, de imagem em imagem, dando-me a oportunidade de catalogar cada borrão como bem entender. 

"Estava sentada no terraço a ler um livro e, de repente, todos os romances eram sobre ti. Todas as músicas do mundo eram sobre ti. Todas as histórias de amor o seriam. (...) Era viva, aí. Sumo de laranja natural. Torrada com mel. Livros. Fotografia. Jornalismo. Casa de campo. Mãe viúva. Guerra. Ultramar. Animais. Música. Pouco tempo. Muita vida (...)"

Um livro multidimensional, onde as personagens são palpáveis, os seus sentimentos extrapolam as páginas, os sentidos são estimulados pela mãe que cheira a arroz doce e a tia que cheira a cigarro, e o grande amor, que tem sinais nas costas, e Alice, que tem sardas no nariz. Magnificamente bem conseguido na simplicidade e coesão com que nos traz esta aflição, e com que retrata os tempos de luz e de esperança. Uma dicotomia cruel. Um retrato de família belo e inquietante, que transborda de emoção e que, sem dificuldades, nos leva à essência de cada personagem e de nós mesmos. Sobre a queda e sobre a superação. Uma escrita poética, que apetece sublinhar, tirar apontamentos. Dei por mim a repetir a mesma frase na cabeça, e a cada vez parecia-me mais bela, mais verdadeira. De uma modéstia desarmante. Isto sim, é a literatura a exacerbar a beleza de uma língua, com uns modos despretensiosos que lhe cai muito bem.

É um amor perpétuo, como a prisão. É como um crime passional, condenada que estou a viver com ele para sempre. Às vezes, o meu amor é hipocondríaco. Age como um doente terminal. Tem neuras, tem birras. Tem dores de barriga, de peito, de coração. É um amor tão grande que vive aqui dentro que, nos dias em que o diagrama me sobe ao pescoço, sinto um pânico de entrar em pânico. Fico na dualidade do que é gerir o amor e este tropel. Quanto mais mergulhamos no caos, mais amamos. Quanto mais intensos são os dias e as emoções, mais corremos o risco de nos estatelarmos de tão bambas que estão as pernas. O meu amor é assim. Confuso e perfeito aos meus olhos. Caminha em bicos de pés, por vezes. Noutras, corta-se em estilhaços de vidro.” 

Se procuram uma nova autora portuguesa com um talento ímpar, estejam atentos a esta.

Classificação: 5/5*****

#103 OLIVEIRA, Carlos de, Uma Abelha na Chuva

Sinopse: Uma Abelha na Chuva conta-nos as peripécias de Álvaro Rodrigues Silvestre, sujeito às “instigações” de sua esposa, D. Maria dos Prazeres Pessoa de Alva Sancho Silvestre. O livro começa com uma confissão de Álvaro e com a sua vontade de a tornar pública na primeira página da Comarca — uma redenção consigo próprio. 
Esta história leva-nos à aldeia de Montouro num Outono chuvoso, onde conhecemos as personagens que rodeiam este casal e constituem a aldeia e pelos quais ficamos a conhecer o Portugal provinciano de meados do século XX.Como afirma o autor, “Por onde a solidão a fazia resvalar. E o quarto tão frio. Talvez os ventos, os granizos do norte, as grandes chuvas. Talvez D. Violante. Mas sobretudo a velha casa de Alva, quando a miséria não chegara ainda e, atrás dela, os Silvestres. Agora é o marido labrego e doentio, as bebedeiras, o desencanto, isto. Quer melhores nortadas, D. Violante?”.O escritor ironiza a sabedoria popular, o largo da aldeia quando acolhe um ajuntamento popular, ancestral, onde tudo se discute, onde tudo se decide num julgamento popular e, tantas vezes, tacanho. E a morte, que persegue Álvaro numa bebedeira de brandy, a morte que tolhe Jacinto e Clara, à chuva, persiste em vingar neste livro.

Opinião: Uma Abelha na Chuva, publicado em 1953, é o retrato físico de uma mulher bonita, robusta, casada por dever com um homem que a ama, e que ela despreza. Um homem fraco, bondoso, bonacheirão. É um ensaio poderoso, que consiste na submersão por inteiro num mundo rural claustrofóbico, e também no pensamento de alguns estratos sociais aqui bem representados. 

Este livro veio ter comigo através do programa Grandes Livros da RTP 2, podem aceder-lhe aqui. Enquanto o esmiuçavam, passavam imagens a preto e branco do filme homónimo de 1971, e a prestação da Laura Soveral como D. Maria dos Prazeres captou-me a atenção. Uma mulher de aspecto tão firme, e, no entanto, quebrada por dentro. Esvaziada de doçura, de calor, de suavidade. O cabelo perfeitamente arranjado, e ainda assim um torvelinho na alma, evidente sob a superfície serena. Reconheci o tipo de força sustido por aquele rosto quase passivo que, de olhar baço, se insinuava no ecrã, arrebatando-o, cena após cena. As páginas deste romance, como um mergulho no quotidiano destas pessoas e das suas relações estéreis, expõem o casamento disfuncional de Álvaro Silvestre, pequeno proprietário rural, dono de uma mercearia, quem sabe outrora lavrador, e de D. Maria dos Prazeres, oriunda de uma família nobre em declínio. Apegada aos objectos que um dia coloriram o estatuto da família, esta personagem é de uma nitidez intimidante, mas, nem por isso está melhor composta do que as restantes. Todos os rostos ali criados por Carlos de Oliveira são dotados de uma admirável multidimensionalidade: é palpável uma certa hipocrisia no cura, uma ambição desmesurada no proletariado, uma asfixia da nobreza e a decadência moral de uma burguesia de vícios e fraquezas.

D. Maria dos Prazeres é apegada à tradição, ao passado, e é também uma vítima de ambos. Foi conduzida ao altar por um pai à beira da falência, e viu-se condenada a uma vida de infelicidade ao lado de um homem que considera fraco. É ela quem dá ordens e é obedecida, nos seus domínios, é ela que se vale do padre para espiar o marido. Contudo, nem tudo está dentro dos limites rígidos do seu controlo; não manda no próprio coração nem numa coisa que tem vida própria e que pulsa a cada vez que põe os olhos no cocheiro da casa; o desejo. Deseja o cocheiro rude, risonho, despreocupado, um pouco tosco que a segue para onde ela o mandar. Talvez porque ele seja uma antítese gritante do seu marido patético. Mas o cocheiro personifica um devaneio fora do seu alcance, e ela não dá um passo para inverter essa situação, quiçá porque essa atracção a vexe, ou porque, mal-grado o chamamento da carne, o considere indigno da sua pessoa. Enquanto isso o marido, também miserável, bebe. A acção decorre num espaço circunspecto, em que o mundo rural vem descrito de forma sublime – cheira-se, toca-se, sente-se, ouve-se. 

Tudo se precipita quando Álvaro ouve o cocheiro mencionar os indesejados olhares cobiçosos que a patroa lhe deita.

Uma obra, a meu ver, incontornável para quem procura compreender melhor o panorama do micro "neorrealismo" literário português. A passinhos de bebé, cá me vou aventurando na nossa literatura lusa. E tem valido muito a pena...

Classificação: 4****/*

#94 ALCOFORADO, Mariana, Cartas Portuguesas


Na realidade já as tinha lido anteriormente, mas não sei se tinha lido todas e com o espírito com que as li agora. Estava em Beja, com as minhas duas irmãs, e senti necessidade de as ligar àquela cidade tanto quanto lhe sou ligada. Aproveitei as tecnologias para baixá-las da internet e ler-lhas, visto que no dia seguinte iríamos ao Convento da Conceição ver a janela que, afinal, não está no local original. Apenas os ferros são os mesmos.

Os franceses reinvindicam a autoria destas cartas, originalmente publicadas em 1669 em França e, posteriormente, na Alemanha. Não acredito que a profundidade deste retrato psicológico feminino pertença a um qualquer "escritor". Creio realmente que estes queixumes partem da mão da pessoa que sofreu, na pele, as agruras dum amor enganado, não correspondido.
Nas duas primeiras cartas, Mariana transparece o sopro nefasto da esperança, do desengano. Está apaixonada e crê que o Marquês de Chamilly sente igualmente a sua falta. Com o avançar das cartas, um ano depois, menciona o engano de que foi vítima. Lamenta ter-se-lhe entregado (é assim que entendo as alusões a prazeres e entrega), praticamente o acusa de ter sido oportunista e de a ter escolhido para desgraçar. O tom lamurioso torna-se aborrecido, como uma amiga que sofre por amor e nos enche os ouvidos. Já fui essa pessoa. A dada altura só nos apetece dizer: esquece-o, anda para a frente, já viste que ele não volta, que não vale a pena. Contudo a sua angústia é justificada e dói na alma.
Mariana referencia a D. Brites, madre do convento, a janela de Mértola, a cidade de Beja, os cavaleiros franceses. Isto sem o pretensiosismo dum escrito e com a veracidade de uma situação real.

Mariana nasceu em 1640, ingressou no Convento da Conceição aos 11 anos e lá morreu, em 1723. Não faço ideia se terá sido algum dia confrontada com algum leitor curioso a respeito das suas supostas cartas de amor.

Li também, há muitos anos, o Mariana da Katherine Vaz, que me deu a conhecer este episódio delicioso da nossa história.

#90 ROSA, Carina, O Intruso




Opinião: Foi a minha estreia com a Carina Rosa. Tal como muitos outros leitores, também tenho sempre um certo “pé atrás” com os livros portugueses. Isto porque já li alguns mesmo muito maus, como sejam o de um beta-reading que fiz há pouco e que me deitou por terra. Não me ocorria um único motivo lógico pelo qual alguém quereria escrever tal livro e, pior ainda, porque o consideraria digno de ser lido por outrem.

Mas isto não é sobre essa experiência infeliz, é sobre o livro da Carina Rosa. Eu não sou muito ligada ao sobrenatural, tem que ser muito credível para me convencer. Por exemplo, eu não duvido nada que a Terra Média e Westeros existam - já lá estive! Mas não achei o enredo muito credível. Achei as personagens demasiado fáceis a dar-se (não é a dar um primeiro beijo ou um primeiro gesto de afecto). É a “dar-se”. Puff e estão apaixonados. E não sei se as suposições acerca de onde se conheceriam foram muito convincentes. O assunto das vidas passadas ficou um pouco subexplorado. Houve ali algumas reminiscências de romances do Nicholas Sparks que podem bem agradar alguns leitores. A autora é terna e tem classe ao expressar desejo e afecto. Palmas para ela, porque tenho lido coisas medonhas nesse campo.

Eu acho que a autora tem grande margem para crescimento. Tem sentimento e é expressiva, sem ser lamechas. Basta-lhe limar algumas arestas, cortar algumas expressões (e algumas vírgulas a mais) e está bem encaminhada. É mais do que se pode esperar de muito bons nomes a publicar por aí.
Fico a aguardar o próximo, porque não tenho dúvida de que esta autora vai crescer de trabalho em trabalho.
Sinopse: Sara é uma mulher deprimida e atormentada por um passado trágico. A casa que outrora pensara ser um refúgio contra as lembranças de uma vida que desejava esquecer, é agora um antro de sombras que a perseguem.
O reencontro com Martim, um rosto que lhe é de alguma forma familiar, de um passado longínquo, provoca-lhe uma avalanche de sentimentos que poderão mudar a sua vida para sempre. Mas o passado nunca poderá ser apagado e Sara vê-se obrigada a tomar decisões que podem fazer a derradeira diferença ente a vida e a morte.
Poderá Martim salvá-la de uma realidade que foge ao seu alcance? Ou poderá afundá-la ainda mais naquele poço sem fundo, em que não há saída possível, senão a morte?

Classificação: 3/5***



#86 BESSA-LUÍS, Agustina, A Sibila

Sinopse: A Sibila é um romance de Agustina Bessa-Luís. Sibila, que remete para a figura clássica da Sibila de Delfos, significa adivinha e refere-se à personagem Joaquina Teixeira, a Quina. O livro não se atreve a narrar a história do nascimento à morte da protagonista, mas contou a vida de duas gerações anteriores da família Teixeira e duma posterior e ainda de outras famílias e amigos próximos desta. Narra conspirações, corrupções e intrigas de parentes, criados, amigos e inimigos. De passagem ocorrem críticas à burguesia rural, mas no romance avulta sobretudo uma reflexão sobre a dimensão metafísica do ser humano. Quina não tinha poderes sobrenaturais, era apenas atilada e prática conselheira; ninguém da sua igualha a tratava por sibila. Morreu velha e doente, mas orgulhosa da casa que salvara da falência e da fortuna que amealhara. A história começa e termina com Germa, sua sobrinha, filha do irmão Abel, que representa uma geração já urbana, desenraizada dum espaço a que Quina sempre se sentira presa.

Opinião: De vez em quando acontece-me ler um livroonde perco o pé. Em relação à “Sibila”, da Agustina Bessa-Luís, julguei-me naeminência de me afogar. A cerca de setenta páginas do fim (é um livro pequeno,de 248 páginas) recuperei esse pé, e tornou-se um gosto nadar por estas águas.Perguntei-me, inclusive, o que se terá passado nas restantes páginas para quelhes tivesse tamanho alheamento. Já próximo do fim identifiquei o factor emfalta n. 1 - a convergência, a eminência de uma revelação, uma história com a estrutura“habitual” (facilitada, vá), do género 1. problema 2. tentativa de resolução3. solução! Neste livro estende-se sim a narração da vida de uma família doMinho - penso que seja o Minho, devido a alguns elementos culturais queidentifiquei - vinho verde e filigrana entre os mais óbvios. Mas sem umproblema, um mistério, um segredo por desenvolver. É um simples (not sosimple, though) relato de algumas gerações cujas vivências se deram sob omesmo tecto. É esse o principal fio da meada, no livro - a casa da Vessada,como nenhum outro. Dando por mim a apreciar finalmente o livro - logo quandoestava prestes a findar-se, identifiquei o factor em falta n. 2, o que meimpediu de segui-lo com sofreguidão desde o início: não é uma história de amor,não há, tãopouco, amor em lado algum. Não há, nesta obra, qualquer vestígio deamor romântico. É um relato um pouco cru dos afectos, como se estes estivessemsempre suspensos da utilidade que nos possam ter, do quanto estamos dispostos adarmos de nós, do que somos e do que queremos que os outros pensem que somos.Há amor, sim, mas um amor conturbado, ora devoto, ora despeitoso, oraamargurado por ser amor, ora orgulhoso de não ser outra coisa qualquer.Deixem-me tentar explicar-me melhor, num discurso bem mais básico do que o damestria fluida da Agustina:

O livro tem dois marcos temporais - que eutenha identificado - o ano de recuperação da casa da Vessada, 1870, e aImplantação da República, porque desaparecem dos carros (a tracção animal) osbrasões. Fora isto, o tempo é algo demolidor, transversal, algo que mesclatodos e que não discrimina ninguém. A história não tem um elo de ligação muitoacentuado. A passagem temporal é algo ténue, é contada como que algopercepcionável. Isto é, ora a pessoa se sente nova - e todos ao seu redor sãojovens, ora a pessoa ainda se sente nova e enérgica, mas todos ao seu redor jásão velhos, ora a pessoa já está velha e acabada e os restantes lhe parecemmais fortes. A casa sofre algumas fases que acompanham o vigor de Quina, apersonagem principal. Primeiro é totalmente destruída por um fogo, gravando-seem seguida o ano de 1870 na varanda. Em seguida Quina nasce, a propriedadecomeça a recuperar-se e a prosperar discretamente. Quina atinge a juventude commais vitalidade que a mãe e, tendo o pai falecido, assume naturalmente o rumoda propriedade; impõem-se-lhe. É nesta época que, pressupostamente, se encontramais aguçada a sua capacidade de “sibila”, de vidente, de mulher do oculto, dasintuições das entrelinhas da vida. Mas confesso que de vidente não lhe vimuito. Se calhar procurei literalmente esse dom quando, na realidade, se tratade mexeriquice de vizinhos, de cegos perante um elemento que vê. Penso que oseu condão de bruxa é apenas a sua inteligência límpida por entre tolos, o seuconhecimento do outro que a faz sobrepôr-se-lhe, conduzi-lo, extrair-lhe o quepretende. Na Quina denoto uma certa pretensão, um certo desejo preemente de serdiferente dos outros, mais sensitiva, procurada para conselhos e rumos, livrepara proferir desmandos. No fundo, ela quer ser mais do que um adereço, doisbraços, suor, num mundo de homens, e vale-se assim daquilo que é temido - emcertas épocas combatido, noutra tolerado com o respeito do receio - nasmulheres; o sexto sentido, a adivinhação, a sensibilidade para prever desfechos,a esperteza feminina equiparada a feitiçaria. Nunca a vi a fazer mais do queumas rezas aos vizinhos, mas estes próprios a apelidam de “sibila”, e ela gostadisso. Com o amadurecimento, contudo, passa da vaidade à quase apatia. Torna-semais humilde, passa a reconhecer valores - como a simplicidade forçada de quemvive bem mas não quer ostentar - que outrora lhe causavam espécie. Uma dasminhas personagens favoritas é o Custódio. Lembrou-me o Heathcliff do Monte dosVendavais. Aliás, muito deste livro me recordou o Monte dos Vendavais, masenquanto n’A Sibila a natureza humana se agita nos sobressaltos da vida, naobra-prima de Emily Brontë agita-se nas incongruências do amor.


Quando se aproxima do fim – para mim,mera leitora – torna-se mais fácil de compreender, embora continue a primar pela complexidade. Que princípios moveram,afinal, esta personagem, esta Quina? O que, na vida, lhe foi mais importante?Apesar da luta por se impor, por ser diferente sem no entanto ofender, aque convenções é incapaz de fugir?
“A Sibila” é um romance complexo, difícilde digerir. Tive alguma ajuda ao adquiri-lo na edição da Guimarães editores emsegunda mão, porque todas as palavras difíceis (que são aí cinco por página)vinham sublinhadas e com a respectiva definição na margem, o que me permitiulê-lo em três semanas em vez de três meses. Arrastou-se sempre, contudo, aimpressão perturbadora de não compreender a totalidade do que estava perante osmeus olhos.
Penso que um dia o lerei de novo - com aatenção sobre-humana que dediquei às últimas dezenas de páginas -, porque é-mesempre precioso ver uma mulher erguer-se, com os seus defeitos e fraquezasinerentes, e vingar num meio de homens.
Voltarei, sim, a ler Agustina Bessa-Luís,quase certa de que encontrarei a mesma perspicácia, a mesma profundidadehumana, em qualquer outro dos seus romances.

Classificação: 4****/*

#78 SARAMAGO, José, As Intermitências da Morte

(acherontia atropos)

Classificação: 4,5****/*

Sinopse: «No dia seguinte ninguém morreu.» Assim começa este romance de José Saramago. Colocada a hipótese, o autor desenvolve-a em todas as suas consequências, e o leitor é conduzido com mão de mestre numa ampla divagação sobre a vida, a morte, o amor, e o sentido, ou a falta dele, da nossa existência.

Opinião: Oque se espera desta obra é, além da escrita signatária do nosso Nobel daLiteratura (1998), um retrato duma sociedade a quem a morte (ela exige que nãose use maiúscula) virou as costas. Um ensaio sobre o fim magistralmente conduzido...

Saramago expõem-nos um conto(posso dirigir-me a esta obra nestes termos?) reflexivo, do interesse dequalquer ser vivo temente à morte - mais do que a deus. 
Na primeira metade do livro (por vezes um pouco exaustiva, devido a tantas hierarquias e pontos de vista acerca deste fenómeno de não-morte, assistimos à reacção de um país às inesperadas "férias" desta entidade. Se a morte deixasse dematar, que faríamos com a dor e o sofrimento? Que seria dos corredores doshospitais? Que seria das monarquias com os seus reis convalescentes em eternaagonia? Como realça o narrador, sempreé diferente de eternamente. Que fariaa humanidade se fosse eterna? Se não houvesse passagem para o outro lado?
Além de desesperar, faria ospossíveis para aceder a esse outro lado, sugere Saramago. Pagaria para morrer, sugere Saramago. A Igreja veria a base dos seus alicerces deitada por terra, a sua utilidade real desfeita. O Governo debater-se-ia com a moral, uma crise económica e demográfica, de braço estendido a quem seoferecesse para resolver os problemas - clandestinamente - por eles. Os funerários,trabalhadores de morgues, floristas, carpideiros, etc., lamentariam a falta dematéria-prima para a prática do seu ofício. As famílias, hospitais, lares,lutariam, embaraçados, por livrar os seus espaços e as suas camas dos moribundos.Filósofos sair-se-iam com teorias sobre diferentes tipos de morte, o herdeiro nestaMonarquia Constitucional receia ainda que a mãe nunca lhe dê lugar, visto recusar-sea passar para o outro lado.

Fatalidade incontornável, fim da viagem, última etapa, inquietação constante, a morte afigura-se, neste livro, com uma voz, um rosto (descarnado) e curiosidade para com os mortais. Afigura-se também como alívio supremo, a seu tempo tão desejado.
A cerca de 60%da leitura, surge a perspectiva da morte. Da morte que dá mostras de cansaço,de entorpecimento de ossos, de até algum desgaste mental e solidão, pois que fala com a suagadanha, quando intrigada, aguardando por uma explicação. Em certas ocasiões a gadanha até responde. O ritmo do livro corre muito mais fluido, envolvendo o leitor e impedindo-o de deixar as suas páginas... 
Parece, contudo, que demos duas partes muito distintas no livro, com um estilo narrativo e ritmos diferentes. Primeiro a perspectiva das vítimas da ausência da morte, num ritmo que pula de prisma em prisma, que corre rápido, prático, por vezes um pouco moroso mas sem se perder em detalhes. Tudo é política, religião, máphia, estratégia. Depois a perspectiva da morte, num ritmo bem mais rápido (a narrativa acompanha-se com mais facilidade, mas as acções não se atropelam), mais emotivo, mais intimista, mais musical, literalmente. 

O discurso de José Saramago,quando nos embrenhamos na sua escrita, é assertivo, emblemático, sarcástico eperspicaz. É um gosto sentir que o acompanho. Fiquei muito surpreendida pelofacto de que esta obra de inegável lucidez ter sido publicada em 2005, quando oautor tinha já 83 anos. Aqui está a prova irrevogável de que Saramago é,realmente, uma mente de excelência no panorama da literatura mundial.


Que magnífica perspectiva sobre a vida e a (sua necessidade da) morte!

«No dia seguinte ninguém morreu»

Anjo de Cristal...

*contém spoilers*

Lendo o Anjode Cristal da Beatriz Lima (14 anos à época da sua publicação e mais jovemainda quando o escreveu), descobri que o meu palpite acertou em certos pontos eestiraçou-se no chão noutros. Ora bem… vejamos:

Para quem não sabe a Beatriz é jovem (nasceuem 1997!) e publicou este romance pela Alphabetum edições em 2012. Acedendo ao website da editora descobri inúmeros links onde podemos acompanhar o percursoda Beatriz desde a publicação do livro, bem como a reacção da imprensa. Houve,inclusive, um convite de Moçambique para uma iniciativa cultural. Após assistirtambém a uma entrevista num programa com o José Figueira e outro com aConceição Lino, considerei que tanto alarido deveria ter algum fundamento deverdade e abri o livro, lendo as primeiras cinquenta páginas em meia hora (esem pular linhas!).

Até à página cinquenta já foi uma história deamor, uma história de amizade, uma história de guerra, uma história decaridade, uma história de violência doméstica e uma história de acção, tudoseparadamente e com a mesma intensidade a cada instante. 


- O livro evidencia um défice que qualquer amante de História considerará grave no que diz respeito ao contexto político-histórico-temporal. Poderia ser passado noutro qualquer país e noutra qualquer época;

- Concordo que é difícil, sobretudo quando se é tão jovem, fazer-se uma boa pesquisa e background num romance mas, sem querer ser má - e talvez já o sendo - mas há que ser exigentes connosco próprios e, sobretudo, não tentarmos ir além dos nossos recursos. Um ponto onde teria sido fácil a autora pelo menos aproximar-nos um bocadinho de França teria sido adoptando nomes franceses. O que não é o caso.


- Todo o livro evidencia aquilo que eu própria sentia aos doze, treze anos, quando escrevia. Uma certa leveza de espírito, um certo sentido de que há coisas a fazer em que ninguém repara, a ânsia por liberdade, até o sentido maternal, o amor romântico, me parecem familiares. A autora é uma sonhadora, consigo dizê-lo e acho bonito e puro que assim seja. O livro transpira essa mesma ingenuidade e é por isso que se fala em príncipes, fadas, estrelas cadentes e as pessoas se chamam Lua, Sky ou Lírio. 


- A acção precipita-se, tudo acontece em cinco minutos e com a maior naturalidade e, mais, assegura-se genuíno. Amores, ódios, crimes. 


- Ora o narrador surge como presente, ora parece mero espectador no modo como refere as outras personagens;


- A Anne Marie é uma “mártir” com quem seriafácil simpatizar – a deixar uma criança de c. seis anos (segundo dá a entender)com um arranhão na perna dormir na sua casa duas horas depois de a conhecer,sem sequer lhe indagar o que seja a respeito dos seus pais;


- Considero as personagensestereotipadas, desadequadas do seu tempo, espaço e pressuposta cultura, comreacções exageradas e deslocadas, rotinas fúteis e eventos precipitados, pouco ponderados;

- Vírgulas separam o sujeito do verbo;

- Enredo irrealista e a puxar ao dramático sem que os acontecimentos isso justifiquem;

Review final por surgir.
Alterei a review porque o objectivo não era ferir as susceptibilidades de ninguém, nem ser "uma cabra". No entanto não posso deixar de partilhar a minha opinião.