Sinopse: Neste novo romance, o vencedor do prêmio Nobel José Saramago reconta episódios bíblicos do Velho Testamento sob o ponto de vista de Caim, que, depois de assassinar seu irmão, trava um incomum acordo com deus e parte numa jornada que o levará do jardim do Éden aos mais recônditos confins da criação.
Se, em O Evangelho segundo Jesus Cristo, José Saramago nos deu sua visão do Novo Testamento, neste Caim ele se volta aos primeiros livros da Bíblia, do Éden ao dilúvio, imprimindo ao Antigo Testamento a música e o humor refinado que marcam sua obra. Num itinerário heterodoxo, Saramago percorre cidades decadentes e estábulos, palácios de tiranos e campos de batalha, conforme o leitor acompanha uma guerra secular, e de certo modo involuntária, entre criador e criatura. No trajeto, o leitor revisitará episódios bíblicos conhecidos, mas sob uma perspectiva inteiramente diferente.
Para atravessar esse caminho árido, um deus às turras com a própria administração colocará Caim, assassino do irmão Abel e primogênito de Adão e Eva, num altivo jegue, e caberá à dupla encontrar o rumo entre as armadilhas do tempo que insistem em atraí-los. A Caim, que leva a marca do senhor na testa e portanto está protegido das iniquidades do homem, resta aceitar o destino amargo e compactuar com o criador, a quem não reserva o melhor dos julgamentos. Tal como o diabo de O Evangelho, o deus que o leitor encontra aqui não é o habitual dos sermões: ao reinventar o Antigo Testamento, Saramago recria também seus principais protagonistas, dando a eles uma roupagem ao mesmo tempo complexa e irônica, cujo tom de farsa da narrativa só faz por acentuar.
Opinião: Salvo erro, Caimé o último romance escrito e publicado em vida por José Saramago (2009). Lê-se em várias fontes que esta revisitação do Velho Testamento pelo primeiro assassino da humanidade – Caim – é mordaz, provocadora, e que portanto irritou bastante os católicos. Diria, tendo em conta que o Velho Testamento é praticamente a Torá, que deve ter irritado igualmente os judeus. Já o vi acusado de antissemita aqui e ali. Pela minha experiência, uma crítica à religião/cultura judaica/feitos do estado Israelita resulta sempre, para os judeus, como antissemitismo. Talvez antissemitismo para o judeu signifique “ato de criticar um pormenor da cultura judaica”, depois extrapolado para “ódio aos judeus em geral”.
Saramago era um homem clarividente quanto a deus, e um idealista político. Podemos, ou não, discordar das suas crenças, mas não há como não admitir que dispunha delas de modo coerente. Era um bom argumentador, via o mundo do seu jeito simples e por essas ideias se regia. Não há como não admirar um homem que é fiel às suas crenças, sobretudo quando estas se alinham do lado da humanidade e contra a barbárie – neste caso, contra as fábulas grotescas do Velho Testamento.
Adorei o livro. Adorei-o por ser agnóstica, adorei-o por compartilhar destes mesmos princípios e deste mesmo horror para com a vileza e a brutalidade. Ri-me, mas, acima de tudo, adorei a viagem. Adorei as imagens, o ângulo que Saramago me emprestou, a partir do qual pude analisar tudo com certa fanfarronice.
Em “Caim”, Saramago visita o Génesis, introduz-nos a um deus caprichoso e incongruente, ciumento e invejoso, e não se coíbe de assim o denominar. A partir da expulsão de Adão e Eva do paraíso, o autor leva-nos aos seus três filhos, Abel, Caim e Set, e à responsabilidade do todo-poderoso no assassinato de Abel. Marcado na testa e condenado a vaguear pela Terra recém-criada, Caim atravessa os muitos contrassensos do Velho Testamento, e Saramago dá voz a um fratricida, para que este julgue as ações de um ser dito inquestionável. Pasme-se o leitor a cada vez que Caim, que tão friamente assassinou o irmão com uma queixada de jumento, se horroriza com os desmandos do senhor. Montado num jumento, viaja de tempo em tempo, de cidade bíblica em cidade bíblica. É assim que vamos às terras de Nod, à Torre de Babel, e é também assim que assistimos à destruição de Jericó, à desgraça de Job e ao dilúvio que extermina a primeira humanidade.
O Deus do Velho Testamento é cruel, mimado e parece-me terrivelmente enfadado com a sua própria criação. Saramago, valendo-se da sua genialidade, ousadia, e de um humor irónico delicioso, atreve-se a mostrar-nos isso mesmo em “Caim”. Não há como negar essa malvadez que o autor se limita a realçar e a comentar.
Uma leitura rápida, apesar do estilo à la Saramago. Pareceu-me que, por fim, já falo a sua língua sem dificuldade. Outra viagem prazerosa e que apela a excelentes reflexões, pelo punho do único Nobel de literatura português. Aconselho vivamente!
”O leitor leu bem, o senhor ordenou a abraão que lhe sacrificasse o próprio filho, com a maior simplicidade o fez, como quem pede um copo de água quando tem sede (…). O lógico, o natural, o simplesmente humano seria que abraão tivesse mandado o senhor à merda, mas não foi assim.”
Sinopse: «No dia seguinte ninguém morreu.» Assim começa este romance de José Saramago. Colocada a hipótese, o autor desenvolve-a em todas as suas consequências, e o leitor é conduzido com mão de mestre numa ampla divagação sobre a vida, a morte, o amor, e o sentido, ou a falta dele, da nossa existência.
Opinião: Oque se espera desta obra é, além da escrita signatária do nosso Nobel daLiteratura (1998), um retrato duma sociedade a quem a morte (ela exige que nãose use maiúscula) virou as costas. Um ensaio sobre o fim magistralmente conduzido...
Saramago expõem-nos um conto(posso dirigir-me a esta obra nestes termos?) reflexivo, do interesse dequalquer ser vivo temente à morte - mais do que a deus.
Na primeira metade do livro (por vezes um pouco exaustiva, devido a tantas hierarquias e pontos de vista acerca deste fenómeno de não-morte, assistimos à reacção de um país às inesperadas "férias" desta entidade. Se a morte deixasse dematar, que faríamos com a dor e o sofrimento? Que seria dos corredores doshospitais? Que seria das monarquias com os seus reis convalescentes em eternaagonia? Como realça o narrador, sempreé diferente de eternamente. Que fariaa humanidade se fosse eterna? Se não houvesse passagem para o outro lado?
Além de desesperar, faria ospossíveis para aceder a esse outro lado, sugere Saramago. Pagaria para morrer, sugere Saramago. A Igreja veria a base dos seus alicerces deitada por terra, a sua utilidade real desfeita. O Governo debater-se-ia com a moral, uma crise económica e demográfica, de braço estendido a quem seoferecesse para resolver os problemas - clandestinamente - por eles. Os funerários,trabalhadores de morgues, floristas, carpideiros, etc., lamentariam a falta dematéria-prima para a prática do seu ofício. As famílias, hospitais, lares,lutariam, embaraçados, por livrar os seus espaços e as suas camas dos moribundos.Filósofos sair-se-iam com teorias sobre diferentes tipos de morte, o herdeiro nestaMonarquia Constitucional receia ainda que a mãe nunca lhe dê lugar, visto recusar-sea passar para o outro lado. Fatalidade incontornável, fim da viagem, última etapa, inquietação constante, a morte afigura-se, neste livro, com uma voz, um rosto (descarnado) e curiosidade para com os mortais. Afigura-se também como alívio supremo, a seu tempo tão desejado.
A cerca de 60%da leitura, surge a perspectiva da morte. Da morte que dá mostras de cansaço,de entorpecimento de ossos, de até algum desgaste mental e solidão, pois que fala com a suagadanha, quando intrigada, aguardando por uma explicação. Em certas ocasiões a gadanha até responde. O ritmo do livro corre muito mais fluido, envolvendo o leitor e impedindo-o de deixar as suas páginas... Parece, contudo, que demos duas partes muito distintas no livro, com um estilo narrativo e ritmos diferentes. Primeiro a perspectiva das vítimas da ausência da morte, num ritmo que pula de prisma em prisma, que corre rápido, prático, por vezes um pouco moroso mas sem se perder em detalhes. Tudo é política, religião, máphia, estratégia. Depois a perspectiva da morte, num ritmo bem mais rápido (a narrativa acompanha-se com mais facilidade, mas as acções não se atropelam), mais emotivo, mais intimista, mais musical, literalmente.
O discurso de José Saramago,quando nos embrenhamos na sua escrita, é assertivo, emblemático, sarcástico eperspicaz. É um gosto sentir que o acompanho. Fiquei muito surpreendida pelofacto de que esta obra de inegável lucidez ter sido publicada em 2005, quando oautor tinha já 83 anos. Aqui está a prova irrevogável de que Saramago é,realmente, uma mente de excelência no panorama da literatura mundial.
Que magnífica perspectiva sobre a vida e a (sua necessidade da) morte!
Sinopse:Em meados do século XVI o rei D. João III oferece a seu primo, o arquiduque Maximiliano da Áustria, genro do imperador Carlos V, um elefante indiano que há dois anos se encontra em Belém, vindo da Índia. Do facto histórico que foi essa oferta não abundam os testemunhos. Mas há alguns. Com base nesses escassos elementos, e sobretudo com uma poderosa imaginação de ficcionista que já nos deu obras-primas como Memorial do Convento ou O Ano da Morte de Ricardo Reis, José Saramago coloca agora nas mãos dos leitores esta obra excepcional que é A Viagem do Elefante. Neste livro, escrito em condições de saúde muito precárias não sabemos o que mais admirar - o estilo pessoal do autor exercido ao nível das suas melhores obras; uma combinação de personagens reais e inventadas que nos faz viver simultaneamente na realidade e na ficção; um olhar sobre a humanidade em que a ironia e o sarcasmo, marcas da lucidez implacável do autor, se combinam com a compaixão solidária com que o autor observa as fraquezas humanas. Escrita dez anos após a atribuição do Prémio Nobel, A Viagem do Elefante mostra-nos um Saramago em todo o seu esplendor literário.
Opinião: O que esperar de uma obra de um escritor premiado com um Nobel? Já tive algumas experiências com vencedores/indiciados para Pulitzers, Nobels, Booker Prizes, e nem sempre foram agradáveis. Abomino o surrealismo de Murakami. Derrapei no caos de Gabriel García Marquez e ganhei asco à “A Valsa Esquecida” da Anne Enright - uma vez mais, porquê “A Valsa Esquecida” e não, como dizem os franceses do Jeunet, “Yupi-tralala”? Mas o Saramago é diferente, não por ser português, não por ser um velhinho de aspecto afectuoso, mas porque o considero um génio. Um génio com uma escrita tão complicada que eu, que gosto de pensar em mim como dispondo de alguma inteligência, dificilmente acompanho. Já analisaram o surrealismo das suas reflexões? Cegueira branca. A Península Ibérica à deriva da Europa. A Morte de férias. E depois temos esta Viagem do Elefante.
Do Saramago li as entrelinhas da Jangada de Pedra, desistindo a meio e admirando o génio que arquitectou as ideias. Li pouco mais de um terço do Ensaio Sobre a Cegueira e desisti, porque tanta excelência e tanto conteúdo cansam. Fiquei a 30 páginas do final do Memorial do Convento, porque foi como correr a meia-maratona chegar ali. E decidi pegar n’A Viagem do Elefante e fazer dele a primeira obra que leio, de fio a pavio, do Nobel português.
É preciso explicar que esta minha predilecção por esta obra, entre tantas que prometem qualidade, se deve ao delicioso documentário - José y Pilar. No documentário, Saramago corre o mundo a promover os seus livros, com a maravilhosa - e arguta - Pilar del Rio ao lado. E está a escrever A Viagem do Elefante. Sofre um enfarte (?) e é internado. Lamenta, receia, não ser capaz de terminar a Viagem do Elefante. Mas, como ele próprio escolheu para citação de partida, Sempre chegamos ao sítio aonde nos esperam. E o elefante Salomão ou, a dado momento, Solimão, lá vai atravessando a Europa com as suas quatro toneladas. O segundo motivo que me sintonizou para este livro foi a citação: o elefante caga, pois caga. E gravou-se-me de tal modo que a oiço sempre na voz hesitante de Saramago.
A leitura é difícil. É-me sempre difícil ler Saramago, como se o autor atirasse pedras para o caminho do leitor, a fim de aferir quanto queremos lê-lo, quanto estamos dispostos a dar de nós para fazer essa viagem que há, regra geral, num livro qualquer. Mas eu consegui ler os Maias à segunda investida, e o Saramago, desta, não me venceria.
Como ponto alto elejo a amizade cornaca-elefante. O elefante parece compreendê-lo conforme lhe sussurra ao ouvido por muito que Saramago nos recorde, aqui e ali, que o mesmo não passa de um animal. É ternurenta esta relação assim como a de simpatias e antipatias que o elefante vai revelando. Surgem padres e diálogo religioso, como já é habitual, e surge também a história de um Portugal grandioso, ainda a colher os frutos da Expansão Marítima. Estamos regidos por D. João III, veio a inquisição e na Europa prepara-se a contra-reforma em Trento. Tudo isto é mencionado pela voz de um padre Genovês que roga um milagre ao cornaca Subhro, apelando ao muito que a Igreja Católica beneficiaria dum. Por entre interesseiros, milagres de encomenda, insensibilidades para com o elefante e o tratador, discriminação para com um indiano que acredita em deuses-elefante, um jogo hierárquico complexo e uma fogueira de vaidades, Salomão agita as estradas passo a passo, ao caminhar, gravando a ferros a sua passagem pela literatura portuguesa. Inesquecível, daqui por diante, a existência de um elefante de nome Salomão.
A frase "O elefante caga, pois caga", nunca surge no livro.
Houve partes que me pareceram por demais familiares, como se esta obra de Saramago existisse em todas as coisas.