#261 Ferrante, Elena, A Amiga Genial
Sinopse: A Amiga Genial é a história de um encontro entre duas crianças de um bairro popular nos arredores de Nápoles e da sua amizade adolescente. Elena conhece a sua amiga na primeira classe. Provêm ambas de famílias remediadas. O pai de Elena trabalha como porteiro na câmara municipal, o de Lila Cerullo é sapateiro. Lila é bravia, sagaz, corajosa nas palavras e nas acções. Tem resposta pronta para tudo e age com uma determinação que a pacata e estudiosa Elena inveja. Quando a desajeitada Lila se transforma numa adolescente que fascina os rapazes do bairro, Elena continua a procurar nela a sua inspiração. O percurso de ambas separa-se quando, ao contrário de Lila, Elena continua os estudos liceais e Lila tem de lutar por si e pela sua família no bairro onde vive. Mas a sua amizade prossegue. A Amiga Genial tem o andamento de uma grande narrativa popular, densa, veloz e desconcertante, ligeira e profunda, mostrando os conflitos familiares e amorosos numa sucessão de episódios que os leitores desejariam que nunca acabasse.
Opinião: Nápoles é um mundo à parte que tive o privilégio de conhecer a partir do seio de uma família napolitana. De uma família napolitana que vive nas encostas do Vesúvio e que me dizem que preferem pagar uma fortuna para morar ali do que pagar menos para viver melhor noutro lado. Esta família napolitana levou-me a ver o Cristo Velato e a ver os presépios da San Gregorio Armeno e a espreitar para a cidade a partir do cume do vulcão. Pelo caminho, perguntavam-me se queria uma sfogliatella com um café, e diziam-me para ter cuidado com a mala porque Nápoles está entregue à ladroagem e à máfia. Passeámos de noite e vimos a baía iluminada, não me foi difícil imaginar os fogos de artifício no fim de ano. Comi gnocchi alla sorrentina e pratiquei muito italiano (sem dizer que quando se punham todos a falar dialeto eu não pescava grande coisa).
De todas as histórias que me contaram, guardei uma que me comoveu, porque me chegou de três rostos simples, trabalhadores, que vivem muito bem mas que não escondem uma vírgula das suas origens. O patriarca contou-me que nasceu na Sicília e que era tão pobre que ele e os pais se mudaram para Nápoles nos anos 70. Também em Nápoles a miséria era tanta que só tinham uma cadeira na casa, cadeira essa que era ocupada pelo pai ao serão. Por fazer calor, abriam a porta. Os vizinhos (novos, desconfiados - porque cada recanto de Itália é um mundo diferente), viam o filho e a mãe sentados nos degraus da porta, enquanto o pai se sentava na única cadeira. De lágrimas nos olhos, contou-me que ao fim de uma semana tinham uma movimentação constante de vizinhos que apareciam a dispensar-lhes cadeiras. Foi assim que se tornou napolitano, e que aprendeu o dialeto e a profissão de mecânico de camiões. Agora, a entrar nos seus 60, continua a trabalhar como um rapazinho e passa os dias de fato-de-macaco e mãos sujas de óleo, enquanto a mulher se assume como a melhor condutora da família e o filho estuda engenharia aeroespacial. Como fui lá em Dezembro, a árvore de Natal ia do chão de mármore ao tecto e estava pejada de bolinhas de vidro colorido, cada uma trazida de um dos destinos para onde viajaram durante aquele longo (e feliz) casamento. Nova Iorque, Veneza e Fátima têm, para eles, o mesmo valor.
Terminada a minha aventura napolitana, concluo o seguinte: A Amiga Genial não é um livro original, nem imprevisível, nem formidável. É apenas muito representativo daquilo que é a Itália, sem grandes floreados. A linguagem é simples, as mensagens chegam-nos com facilidade. E é isso que mais me interessa na literatura: que a mensagem me chegue. Lamento apenas que a comida não tenha um papel muito importante na narrativa (disseram-me que acharam o livro um perpetuador dos estereótipos associados aos italianos). No entanto, pouco se falou de máfia, pouco se falou de comida, pouco se falou de futebol e de cantoria em coro. Eu, por minha vez, entendo porque é que as personagens deste primeiro volume da tetralogia de Elena Ferrante ainda não falam de comida, nem cantam a Sole Mio de olhos marejados de lágrimas, como me cantou a família Di Costanzo. Também o café napolitano e a água de Nápoles (precisamente aquilo que sabia que os napolitanos valorizam, assim como a pizza) não são elevadas. Tudo ocupa o seu lugar insignificante na vida destas crianças - e depois adolescentes - num ambiente altamente pobre e hostil. Tudo é violência neste subúrbio napolitano: as relações pais/filhos, as relações de amizade são pontuadas por episódios de pancadaria, o amor leva a traições, que levam à loucura e ao sangue, a miséria é embaraçosa e molda os caracteres destes jovens napolitanos. Ainda não chegaram à idade de valorizar a beleza visceral de um país que tenho como o mais belo do planeta, e nem de admirar a resignação e a dignidade do povo a que pertencem. Em suma: neste volume ainda não lhes veio a malinconia.
Acompanhamos Lenù (a narradora) e Raffaella (Lila) até aos seus dezasseis anos, e as duas são igualmente preciosas no seu modo de percecionar o mundo ao redor, de se movimentarem nele e de sonharem com grandezas inalcançáveis. O livro evidencia o espírito de sacrifício do povo italiano (um povo essencialmente de emigrantes), mesmo quando fica e busca conforto na bell'Italia. E, de toda essa pobreza, de toda essa violência de uma Itália selvagem - bela e arredia - emerge algo como única passagem para longe das adversidades: a educação. Belíssimo!
Classificação: 5/5*****