Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Castelos de Letras

Em torno das minhas leituras!

Castelos de Letras

Em torno das minhas leituras!

#246 DOSTOIEVSKI, Fiódor, Os Irmãos Karamazov

WhatsApp Image 2020-04-10 at 15.19.37.jpeg

 

"Só Dante pôs os vários mundos assim em coexistência", diz-nos ainda Bakhtine, "mas em Dante eles não interagiam."


Artigo do Público, aqui

Há imenso para dizer sobre os Os Irmãos Karamazov, seria uma dissertação interminável, que se multiplicaria várias vezes face ao volume real do romance, posto que cada parte, cada capítulo, cada diálogo e cada personagem daria origem a rios de tinta a seu respeito. Posto isto, talvez deva dizer que o que fica, no leitor, desta obra colossal publicada entre 1880 e 1881, isto é, terminada a dois meses da morte do autor, é uma necessidade premente de reflexão. Reflexão sobre todo e cada tema que nos é apresentado ao longo desta narrativa, em que o narrador se assume presente e inclusive condiciona a opinião do leitor. Mas, mais surpreendente do que esta familiaridade que o narrador estabelece com o leitor, é o facto de cada diálogo, de beleza incontornável, oferecer não raramente perspetivas opostas sobre um mesmo assunto, e a argumentação e contra-argumentação serem tão bem articuladas que parece impossível que tenham sido produzidas pela mesma cabeça.

Este é um romance de 768 páginas (na minha edição da Saída de Emergência, que aconselho por ser maleável e muito agradável a nível estético), que explora – de maneira até autobiográfica, segundo defendem alguns autores e críticos – a vida dos Irmãos Karamazóv. São eles Dmitri (Mitya), Ivan, Alexey (Aliocha) e Smerdyakov, este último ilegítimo. Cada um destes irmãos oferece um ângulo da Rússia czarista, empobrecida e raiada de contrastes. Dmitri é impulsivo, apaixonado, violento e movido por um profundo sentimento de injustiça para com o pai Karamazóv. Ivan é um intelectual introspetivo, que busca a solidão para desenvolver ideias revolucionárias e que rejeita a ideia dde Deus. Segundo Ivan, sem Deus tudo seria permitido. É a ele que se atribui o capítulo intitulado O Grande Inquisidor. Freud, que estudou esta obra a fundo para melhor compreender a psique do seu autor e as riquíssimas reflexões psicológicas nela contidas, considera esse trecho o que de melhor se produziu em literatura, e este romance em particular a maior obra da História. Nesse capítulo, Ivan expõe um seu poema em que opõe Jesus Cristo retornado para junto dos homens ao Grande Inquisidor, na Sevilha do século XVI. As reflexões que resultam dessa colisão – um livre pensador e um guardião da igreja – são atuais e pertinentes, e com toda a certeza escandalosas para a época.

"Eu sustento que basta destruir a ideia de Deus no homem, é por aí que deve começar. Oh, raça de cegos que nada compreendem! Quando todos os homens tiverem negado Deus… e eu creio que a época do ateísmo universal chegará (…) o velho conceito do universo desmoronar-se-á por si mesmo, sem canibalismo, desaparecerá a velha moral e tudo começará de novo. Os homens unir-se-ão para arrancar da vida tudo o que ela tiver para dar, mas só para o gozo e a felicidade da terra; enaltecer-se-ão nas asas do seu espírito, animado por um orgulho titânico, e aparecerá o homem-Deus. De dia para dia, ampliando indefinidamente as suas conquistas sobre a natureza através da ciência e da vontade, experimentando um tão íntimo prazer nisso mesmo que se compensarão com juros das suas antigas esperanças de gozos eternos. Todos saberão que são mortais e enfrentarão a morte com orgulho e serenidade de deuses.”


A história desenvolve-se de encontro em encontro, de monólogo em monólogo. É favorecido o encontro privado, onde as pessoas se revelam na sua essência, mas também se dão cenas de ajuntamentos, em que o autor teceu com mestria as nuances dos sentimentos e das ideias de cada interveniente, e ainda bordou com esmero os ímpetos da alma coletiva. Destaco a cena no Mosteiro, ao qual se havia juntado Aliocha (o anjo Aliocha), o presbítero (entidade moral máxima naquela comunidade), Dmitri, com as suas acusações e declarado rancor ao pai, Ivan, observador e racional, e um familiar afastado que se exaspera e choca com as ofensas trocadas entre pai e filho. A cena chega a ser cómica, mas o travo a tragédia eminente está sempre presente.

Aliocha é uma personagem de grande espiritualidade e comedimento, a voz que consola os dissabores das outras personagens e que, apesar de jovem, tem sempre um conselho sábio a prestar. Segundo Freud, deve o nome e parte da sua aura ao facto de que o próprio casal Dostoiesvki havia perdido um filho homónimo (Alexey) com a idade de três anos, pouco antes de dar início a esta empreitada.

É uma obra muito cerebral, mas também apaixonada. Cerebral porque o autor foi abrindo questões cujas respostas iam surgindo oportunamente ao longo da sua extensão. Por outro lado é uma obra de grande emotividade, porque são as paixões que movem os ódios e os amores dos Karamazóv, tantas vezes apontados como “uma família à parte” pelas personagens que com eles se cruzam, mas que, com toda a certeza, são um espelho fidedigno da Rússia do século XIX.

Sabemos que Dostoievski, tendo falecido com apenas 59 anos, viveu uma vida de grandes sobressaltos. O pai seria um tirano, o jovem sofreria de epilepsia, foi submetido a trabalhos forçados na Sibéria, desprezava o czar e a Rússia Imperial, e professava um ténue socialismo, bem como outras crenças que haveria de consolidar ao longo da sua vida.

Os Irmãos Karamazov é um romance de grande espiritualidade e senso filosófico, em que o autor não deixa de se questionar acerca da família, de Deus, da natureza humana e seus consequentes atos e impulsos. Uma obra maior que, um dia, espero encontrar alento para reler. Estou convencida de que, nas suas entrelinhas, virei ainda a deslindar muitas outras conclusões.

 

Classificação: 5/5******

Ler os Clássicos, Prós e Contras

A minha página no Goodreads permite-me consultar os livros que tenho lido desde que criei a conta, corria o ano do Senhor de 2011. Consultei os desafios literários de anos anteriores numa ótica de compreender se tenho lido mais ou menos volumes com os anos, mas foi outra conclusão que saltou à vista: leio diferente. Leio muito diferente, e isso tem evidentes prós e contras.

Em 2011, li 3 livros. 3 livros!!!... tentei ler "As Vinhas da Ira", achei aborrecido de morte. Tentei ler "A Filha da Minha Melhor Amiga", não consegui. O ano ficou marcado por um único livro, daqueles que ficam para sempre e que por isso chamo de clássico: "Carta da Uma Desconhecida", do incontornável Stefan Zweig.

Em 2012 li 58 livros. Bem, fantástico! Porém, li uma série de romances eróticos ditos de época, de autores como Madeleine Hunter, Lisa Kleypas, Julia Quinn, li ainda uma série de best-sellers do momento que não ficaram, como "A Valsa Esquecida" da vencedora do Orange Prize. O que me ficou desses 59 livros? Jane Eyre. Os Maias. Frankenstein, O Monte dos Vendavais.

E porque ficaram, quando os outros foram esquecidos ou não são lembrados pelos melhores motivos? Porque são livros que levaram a que fosse ler mais. Ler mais sobre a época, sobre o autor, sobre os significados ocultos e as inúmeras interpretações e adaptações do seu enredo. São livros que inspiraram outros livros igualmente grandiosos e intrigantes, e referências culturais que atravessaram os séculos e continuam atuais.

classicos.png

Resumindo, desde 2018 que os clássicos vêm a crescer na minha prateleira, e viraram tudo do avesso.

---> PROS

São livros que ficam, realmente. Livros que marcam o ano literário, que me tornam mais exigente como leitora e mais informada sobre o mundo como pessoa. Como bónus, os próprios autores dos ditos clássicos têm vidas fascinantes, filosofias próprias, inspiraram a arte em todas as suas vertentes, inquietaram a sua época, a que se lhe seguiu e as vindouras. Imortalizaram personagens, momentos, nações. Em Portugal já identifiquei a Relógio d'Água e a Cavalo de Ferro, bem como a Livros do Brasil, a Saída de Emergência e a Editorial Presença como boas editoras de clássicos. São, regra geral, edições primorosas e obras de arte per se. Outro pro é que andam por toda a parte: olx, feirinhas de rua, livrarias apaixonantes e cheias de poeira, e até na Feira da Ladra! Resultado: conseguimos adquirir alguns por uma pechincha.

---> CONTRAS

Causam muito transtorno. Tiram o sono. São mais do que as mães. Tenho medo de morrer sem ler uns quantos que me tentam continuamente. Fizeram com que os livros do momento deixem de ter qualquer sabor, obrigaram-me a vender livros cujo valor me apercebi ser nulo, e remodelar as minhas prateleiras à sua medida. Para o escritor atual, são uma desgraça... Significa que as newsletters de "novidades" e "pré-vendas" me dizem pouco ou nada. Que praticamente não sigo nenhum autor contemporâneo. Fiquei esquisitinha, mal-habituada a este caviar e filet mignon, de tal modo que me custa cada fez mais engolir fast food. Por outro lado, sendo eu própria uma escritora contemporânea (e nem que quisesse conseguiria ser uma escritora "clássica", porque o clássico só se consolida no teste do tempo), significa que se todos os leitores fossem como eu, ninguém conseguiria fazer vida na escrita hoje em dia. Em suma, seria uma alegria para o desenvolvimento pessoal, mas um cataclismo para a indústria. Outro contra é que o autor está, geralmente, morto. É chato porque dava tudo para escrever ao Steinbeck ou ao Maugham, quase tanto quanto gostaria de ir a um concerto de Queen... se não mais. O último contra é que corro o risco de me tornar uma snob de primeira, porque estou sozinha com o meu Voltaire e o meu Dostoievski nos transportes públicos, num mar de YAs, de Afters, de vampirada e de thrillers nórdicos nos transportes. Também corro o risco de levar com aquela resposta da praxe: "são gostos". Pois é... depende sobretudo se lemos para nos entretermos ou para nos inquietarmos. Entreter-me já não me basta.

A minha wishlist transformou-se nos últimos tempos. Dou mais valor a livros de não-ficção (algo a que os clássicos também conduziram, porque nos fazem querer saber mais, entender melhor), e a tudo o que tiver sido escrito há mais de 50 anos. Ando mais inquieta, pois, mas também maravilhada por toda a beleza que estes livros me têm trazido, e por todos os sobressaltos e banhos de humanidade. 

Deixo-vos com o meu livro favorito de cada ano no Goodreads o que se traduz, por outras palavras, no "clássico de cada ano".

Boas leituras!

SE CLICAREM NO LIVRO/FOTO ACEDEM À MINHA REVIEW

2011:

Carta de Uma Desconhecida

2012:

O-Monte-dos-Vendavais.jpg

2013:

Servidão Humana

2014:

Ora cá estamos... Sem um favorito.

2015:

O Amor nos Tempos de Cólera

2016:

Sem Título.png

2017:

Não tenho realmente um livro favorito, tudo o que li foi meh (consultar gráfico acima para entender porquê)

2018:

Num ano em que se leu "As Vinhas da Ira", "Mataram a Cotovia" e "O Som e a Fúria", não é fácil escolher um, mas cá vai:

250x.jpg

2019:

O-Fio-da-Navalha.jpg

 

 

#229 DOSTOIEVSKI, Fiódor, Crime e Castigo

fiodor-dostoiewski.jpg.jpg

"Vês, eu nesse tempo perguntava sempre a mim próprio: porque sou eu tão estúpido que, se os outros são estúpidos, e eu sei que são, não quero ser mais inteligente? Depois descobri, Sónia, que se ficamos à espera que os outros se tornem inteligentes, passará demasiado tempo… Depois descobri também que isso nunca acontecerá, que as pessoas não mudarão e ninguém as fará mudar e não vale a pena o esforço!”

“Crime e Castigo”, publicado inicialmente em 1866 por capítulos no “Mensageiro Russo”, tornou-se um clássico da literatura internacional. Confesso que a minha curiosidade quanto aos tão aclamados romances russos nunca foi muito intensa – li A Sonata de Kreutzer e Fumo sem encontrar nada de extraordinário excepto, talvez, algumas reflexões acerca da condição humana e uma dificuldade imensa em acompanhar aqueles caráteres impulsivos, auto-destrutivos e aqueles nomes que me soam tão exóticos. Procurei em “Crime e Castigo” traços do romantismo que, trinta anos anos, lavrava por toda a Europa – o da tuberculose, dos amores condenados, dos suicídios. Numa Rússia profundamente influenciada pelas culturas germânica e francesa, faria todo o sentido que as vozes literárias, de cunho nacionalista, se erguessem para imortalizar a essência de um povo tão sofredor, tão martirizado quanto o russo por essa altura, no entanto, com potencial para tanta grandeza… 
 
De algum modo, “Crime e Castigo” moldou-me, preparou-me para apreciar melhor a riqueza de emoções humanas desses grandes antropólogos russos, e creio que se voltar agora a ler um desses outros romances, ou se me aventurar num Anna Karénina tirarei muito mais proveito deles do que antes de o ter lido. De repente, vejo-me fascinada pela realidade russa. Há livros assim, que nos expandem a compreensão e nos oferecem um conhecimento maior do mundo ao nosso redor. Há livros que criam um inequívoco antes e depois no leitor…
 
Creio que é nesse contexto que surgem Dostoievski, Tolstoi, Turguenev e tantos outros seus contemporâneos. Acredito que um escritor é melhor quanto mais tiver sofrido, quanto mais se inquietar com os desconfortos de ser de carne e osso, de sentir, de perder, e a Rússia da segunda metade do século XIX era prolífera nestes desconsolos, pelo que brotaram dela várias vozes superiores nesta nobre arte que é o observar e imortalizar um tempo por via das letras.
 
Acompanhamos Ráskolnikov numa espiral de desencanto quanto ao seu futuro, às suas circunstâncias e às das pessoas que o rodeiam, em especial a mãe, a irmã, o melhor amigo. Ao cruzar-se com um núcleo sofredor composto por um ex-funcionário público, a sua esposa que decaiu de um estatuto de filha de “quase” governador para infeliz e tísica mulher de um bêbedo (aliás, a personagem que mais me cativou, Katerina Ivánovna), e as muitas e miseráveis crianças desta malfadada união, começa a envolver-se nas misérias de outros, e acaba por ir pondo de lado, em ocasiões, os seus próprios delírios. Destaca-se ainda Sónia, que se ocupa do bem-estar de todos, “aceitando o sofrimento” para apaziguar um pouco as angústias de quem a rodeia, e que personifica uma espécie de Maria Madalena, abnegada e crente, benevolente e sacrificial.
 
Para mim, a cena de um certo banquete fúnebre é o momento inesquecível deste romance em seis partes, um humor tão apurado, tão delicioso, que não queria sair nunca daquela mesa e daquela companhia:

 

"- Essa cuca é que tem a culpa de tudo. Compreende de quem estou a falar. Dela, dela! - e Katerina Ivánovna indicava-lhe a senhoria. - Olhe para ela: arregala os olhos, sente que estamos a falar dela, mas não percebe. A coruja! Ah-ah-ah!... E o que quer ela mostrar com aquela touquinha? Gha-gha-gha! Já reparou que ela quer fazer crer a toda a gente que me ajuda e que me honra com a sua presença? Pedi-lhe, como a uma pessoa decente, que convidasse pessoas de qualidade, e concretamente os conhecidos do falecido, e olhe o que ela me trouxe: uns palhaços! Uns porcalhões! Olhe aquele, com a cara cheia de sinais: parece uma ranhoca com duas pernas. E estes polacos...ah-ah-ah! Gha-gha-gha! Ninguém, nunca ninguém os viu por aqui: e porque vieram cá, pergunto eu? Sentadinhos lado a lado, todos cerimoniosos. (...) Não faz mal, que comam. Ao menos não fazem barulho, mas... mas, na verdade, receio pelas colheres de prata da senhoria!... Amália Ivánovna - disse, dirigindo-se à senhoria, quase em voz alta -, se por acaso roubarem as suas colheres, eu não me responsabilizo por elas, aviso-a já! Ah-ah-ah! - e desatou a rir, dirigindo-se outra vez a Ráskolnikov, indicando-lhe de novo a senhoria com a cabeça e alegrando-se com a sua pilhéria. - Não percebeu, não percebeu outra vez. Olhe para ela, ali de boca aberta: uma autêntica coruja com fitas novas, ah-ah-ah!”

 

 
“Crime e Castigo” está cheio de personagens complexas, absorventes, que causam pasmo e exasperação. De algum modo, este segundo núcleo proporciona uma redenção inesperada à nossa alma-penada, o assassino torturado que vagueia por S. Peterburgo, o jovem idealista caído da graça de um futuro promissor, mas gorado. O autor criou, neste seu magnus opus, um retrato nítido de uma Rússia desgastada e decadente, sem oportunidades, onde imperam os vícios e as vilanias, pontuados de muita depravação e de uma tendência quase natural para transgredir a lei e os limites da moralidade, para se embebedar, e também por um certo regozijo perante a própria desgraça. A filosofia, a muita dialética que povoa a riqueza destes diálogos vertigionosos, a loucura quase palpável destas personagens em situações extremas de contrariedade e insatisfação, as sementes para a Rússia socialista ali tão evidentes… 
 
A obra de um génio das letras e da arquitetura narrativa, que me chega tão atual, tão intemporal, cento e cinquenta anos depois do seu momento. Um daqueles livros que não conseguirei esquecer pelo tom lúgubre dos cenários, a dimensão da claustrofobia e do desespero na alma de Ráskolnikov e dos seus conterrâneos. Uma obra colossal alinhavada em torno de um jovem de 23 anos que abandonou os estudos de Direito por acreditar que as pessoas de dividem em “vulgares” e “invulgares”, e que o “invulgar” é raro e é por sua ação que o mundo progride, que a antiga ordem se desfaz para que nasça uma nova, revolucionária, e que lhe é vital ultrapassar os limites das convenções para provar a si mesmo que não é um mero “piolho”, mas sim uma “pessoa”, e por isso urge cometer um crime, livrar-se de uma criatura indesejada e até nociva para a sociedade. 

 

"Ou supões que eu fiz o que fiz como um tolo, sem pensar? Fi-lo como um homem inteligente e foi isso que me perdeu! Pensarás que eu não sabia, por exemplo, que se começava a interrogar-me sobre se tinha o direito ao poder, precisamente por isso não tinha o direito ao poder? Ou que, se me fizesse a pergunta: é um piolho ou uma pessoa?, por conseguinte a pessoa não era um piolho para mim, mas era piolho para aquele que vai em frente sem fazer essas perguntas…”
Palpita-me que é outro livro que me ficará para a vida, que me há-de ocorrer em inúmeras situações e que voltarei a ler, quando a hora de reler os livros da minha vida chegar.
 
Classificação: 5/5*****

#170 GASKELL, Elizabeth, Norte e Sul


Opinião: Elizabeth Gaskell, amiga íntima de Charlotte Brontë (bem como de John Ruskin e de Florence Nightingale), viveu entre 1810 e 1865, e era filha de um jornalista. Depois de casada, acompanhou o marido em causas sociais, prestando educação e apoio a crianças desfavorecidas. É um pouco desta mulher que encontramos em “Norte e Sul”.
A primeira edição em Portugal dá-se cento e sessenta e dois anos depois da sua publicação em Inglaterra, e é a de Abril de 2016, sob a alçada da Relógio d’Água.
“Norte e Sul” é um romance sobre os contrastes da Inglaterra de meados do século XIX, na qual, como à imagem de todos os países da Europa, o Norte começa por se aventurar primeiro na maquinaria, com as consequências que daí advém. Margaret é filha de presbítero e da beldade do condado, Mary Hale (née Beresford), e cresceu em Helstone, no sul. Os pais ocupavam uma posição de destaque na modesta hierarquia social do burgo, sendo o seu pai o líder espiritual da comunidade. A mãe tratava das questões sociais, ajudando os pobres e aliviando o sofrimento dos enfermos com pequenos confortos. Ainda que a aristocracia esteja em franca decadência, as relações determinam a posição de uma família na sociedade, e por isso os Hale “dão-se ares”. A tia de Margaret, com quem esta passa o período que sucede a infância, fora esposa de um general e a filha, a irritante Edith, está prestes a desposar um capitão, irmão de um advogado. Vivem em Londres, e Margaret divide-se assim em três realidades: a simplicidade idílica de Helstone, a azáfama social de Londres, e mais tarde as convulsões grevistas de Milton. É no momento em que se mudam para Milton que a acção tem início, e louvo a autora pelo modo como conduziu a percepção das suas personagens a esta nova realidade.
O valor desta obra, publicada em 1854, é o de trazer à luz os primeiros confrontos sociais que se deram num país em mudança. Alguém aqui no GR descreveu “Norte e Sul” como “Orgulho e Preconceito para socialistas”, mas julgo que a autora não tomou uma posição tão vincada. Margaret fica profundamente tocada pelo novo retrato social que encontra. Enquanto em Helstone todos tinham o seu futuro definido, e ninguém se agitava ou ambicionava ser outra coisa, em Milton o ruído dos moinhos e dos teares anuncia prosperidade e riqueza, e todos desejam deitar a mão ao seu quinhão. A indústria não funciona sem operários, e Margaret cedo se torna próxima de alguns. Os Higgins exibem todas as marcas desse capitalismo pululante; a filha que trabalhou com algodão e que ficou de pulmões destruídos, o pai que pertence ao sindicato e que acredita que as suas exigências, por muito que também lhes causem dissabores, são a via para obter condições mais justas. Porém, aos operários falta a visão geral da realidade, a formação para compreender contratos, cálculos, e para gerir. Esse lado da moeda será exposto de modo soberbo por John Thornton, um dos industriais de Milton. Thornton cresceu por entre dificuldades, o seu orgulho não é tanto que o esconda, pelo contrário: regozija-se por ter chegado à posição prestigiada na qual se encontra. Isto choca os Hale, para quem o nascimento é tudo, e em simultâneo fascina-os, porque entendem a importância que homens como Thornton têm para as cidades do Norte. Como patrão, é visto como o anti-cristo pelos seus operários, e é no debate de circunstâncias que o livro ganha. Arrisco dizer que seria uma obra muito mais aclamada se tivesse sido escrita por um homem.
O discurso de Gaskell é humano, lúcido, ainda que as personagens, nos desaires da sua complexidade, sejam quase todas questionáveis. Margaret é altiva, resoluta, e retratada como uma vítima. Todos se apoiam nela, e ela suporta, como um bom cordeiro. A mãe é hipocondríaca e não faz um único comentário que se aproveite. Idem quanto à tia. Tanto pior quando chegamos à prima, Edith, ou à irmã de John Thornton, Fanny, que parecem um decalque uma da outra. Acredito que representem as jovens inglesas de 1850, que só conseguiam ocupar os pensamentos com o casamento, os vestidos e os bailes. Talvez a autora tenha captado de modo magistral a sua essência (exasperante). O pai de Margaret começa por ser um homem de princípios e fibra moral, capaz de tomar decisões, e vai-se tornando um mentecapto dependente do conselho de estranhos. Dixon, a criada da família, é outra criaturinha difícil de suportar. A sorte é que acabamos por ver as nossas impressões reflectidas no modo como estas pessoas afectam a protagonista.
A senhora Thornton, mãe do industrial, é um dos pilares do livro, ainda que seja uma mera personagem secundária. John Thornton é o eixo sólido, na minha opinião, porque todos os outros ao seu redor caem em incongruências e sofrem alterações de personalidade. É nele que reside a fibra e a firmeza de carácter que serve como espinha-dorsal a estas 450 páginas de dissabores.
Abundam lágrimas, contrariedades, perigos, eminência de morte, mortes em efectivo, amores desencontrados e mal-entendidos. Por isso não o considero um livro superior, fiquei com a impressão de que a autora poderia ter pegado nele e rasurado uma série de passagens. Mas o momento histórico está lá, os lados da trincheira também, e terminamos a leitura um conhecimento mais nivelado daquilo que é o percurso da nossa civilização. É também uma oportunidade para se entender as circunstâncias em que nasceu o socialismo, e testemunhar a inevitabilidade do seu florescer.
Esta é uma história de triunfos conquistados com enorme esforço, onde o pensamento racional é mais valorizado do que o preconceito, e o lado humano se sobrepõe ao respeito cego pela atividade económica.
Os leitores do século XXI irão sentir-se absorvidos, à medida que a trama deste romance vitoriano os transporta até às origens de problemas e possibilidades que ainda hoje, cento e cinquenta anos mais tarde, subsistem: a complexidade das relações, públicas ou privadas, entre homens e mulheres de diferentes classes sociais. 


Classificação: 4/5****

Sinopse: A ação de «Norte e Sul» decorre em meados do século XIX, narrando o percurso da protagonista desde o ambiente tranquilo mas decadente de uma Inglaterra sulista até um norte vigoroso mas turbulento. Neste romance, Elizabeth Gaskell fala-nos de um amor incomum, para mostrar o modo como a vida pessoal e pública se entrelaçavam numa sociedade recentemente industrializada.