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Castelos de Letras

Em torno das minhas leituras!

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#86 BESSA-LUÍS, Agustina, A Sibila

Sinopse: A Sibila é um romance de Agustina Bessa-Luís. Sibila, que remete para a figura clássica da Sibila de Delfos, significa adivinha e refere-se à personagem Joaquina Teixeira, a Quina. O livro não se atreve a narrar a história do nascimento à morte da protagonista, mas contou a vida de duas gerações anteriores da família Teixeira e duma posterior e ainda de outras famílias e amigos próximos desta. Narra conspirações, corrupções e intrigas de parentes, criados, amigos e inimigos. De passagem ocorrem críticas à burguesia rural, mas no romance avulta sobretudo uma reflexão sobre a dimensão metafísica do ser humano. Quina não tinha poderes sobrenaturais, era apenas atilada e prática conselheira; ninguém da sua igualha a tratava por sibila. Morreu velha e doente, mas orgulhosa da casa que salvara da falência e da fortuna que amealhara. A história começa e termina com Germa, sua sobrinha, filha do irmão Abel, que representa uma geração já urbana, desenraizada dum espaço a que Quina sempre se sentira presa.

Opinião: De vez em quando acontece-me ler um livroonde perco o pé. Em relação à “Sibila”, da Agustina Bessa-Luís, julguei-me naeminência de me afogar. A cerca de setenta páginas do fim (é um livro pequeno,de 248 páginas) recuperei esse pé, e tornou-se um gosto nadar por estas águas.Perguntei-me, inclusive, o que se terá passado nas restantes páginas para quelhes tivesse tamanho alheamento. Já próximo do fim identifiquei o factor emfalta n. 1 - a convergência, a eminência de uma revelação, uma história com a estrutura“habitual” (facilitada, vá), do género 1. problema 2. tentativa de resolução3. solução! Neste livro estende-se sim a narração da vida de uma família doMinho - penso que seja o Minho, devido a alguns elementos culturais queidentifiquei - vinho verde e filigrana entre os mais óbvios. Mas sem umproblema, um mistério, um segredo por desenvolver. É um simples (not sosimple, though) relato de algumas gerações cujas vivências se deram sob omesmo tecto. É esse o principal fio da meada, no livro - a casa da Vessada,como nenhum outro. Dando por mim a apreciar finalmente o livro - logo quandoestava prestes a findar-se, identifiquei o factor em falta n. 2, o que meimpediu de segui-lo com sofreguidão desde o início: não é uma história de amor,não há, tãopouco, amor em lado algum. Não há, nesta obra, qualquer vestígio deamor romântico. É um relato um pouco cru dos afectos, como se estes estivessemsempre suspensos da utilidade que nos possam ter, do quanto estamos dispostos adarmos de nós, do que somos e do que queremos que os outros pensem que somos.Há amor, sim, mas um amor conturbado, ora devoto, ora despeitoso, oraamargurado por ser amor, ora orgulhoso de não ser outra coisa qualquer.Deixem-me tentar explicar-me melhor, num discurso bem mais básico do que o damestria fluida da Agustina:

O livro tem dois marcos temporais - que eutenha identificado - o ano de recuperação da casa da Vessada, 1870, e aImplantação da República, porque desaparecem dos carros (a tracção animal) osbrasões. Fora isto, o tempo é algo demolidor, transversal, algo que mesclatodos e que não discrimina ninguém. A história não tem um elo de ligação muitoacentuado. A passagem temporal é algo ténue, é contada como que algopercepcionável. Isto é, ora a pessoa se sente nova - e todos ao seu redor sãojovens, ora a pessoa ainda se sente nova e enérgica, mas todos ao seu redor jásão velhos, ora a pessoa já está velha e acabada e os restantes lhe parecemmais fortes. A casa sofre algumas fases que acompanham o vigor de Quina, apersonagem principal. Primeiro é totalmente destruída por um fogo, gravando-seem seguida o ano de 1870 na varanda. Em seguida Quina nasce, a propriedadecomeça a recuperar-se e a prosperar discretamente. Quina atinge a juventude commais vitalidade que a mãe e, tendo o pai falecido, assume naturalmente o rumoda propriedade; impõem-se-lhe. É nesta época que, pressupostamente, se encontramais aguçada a sua capacidade de “sibila”, de vidente, de mulher do oculto, dasintuições das entrelinhas da vida. Mas confesso que de vidente não lhe vimuito. Se calhar procurei literalmente esse dom quando, na realidade, se tratade mexeriquice de vizinhos, de cegos perante um elemento que vê. Penso que oseu condão de bruxa é apenas a sua inteligência límpida por entre tolos, o seuconhecimento do outro que a faz sobrepôr-se-lhe, conduzi-lo, extrair-lhe o quepretende. Na Quina denoto uma certa pretensão, um certo desejo preemente de serdiferente dos outros, mais sensitiva, procurada para conselhos e rumos, livrepara proferir desmandos. No fundo, ela quer ser mais do que um adereço, doisbraços, suor, num mundo de homens, e vale-se assim daquilo que é temido - emcertas épocas combatido, noutra tolerado com o respeito do receio - nasmulheres; o sexto sentido, a adivinhação, a sensibilidade para prever desfechos,a esperteza feminina equiparada a feitiçaria. Nunca a vi a fazer mais do queumas rezas aos vizinhos, mas estes próprios a apelidam de “sibila”, e ela gostadisso. Com o amadurecimento, contudo, passa da vaidade à quase apatia. Torna-semais humilde, passa a reconhecer valores - como a simplicidade forçada de quemvive bem mas não quer ostentar - que outrora lhe causavam espécie. Uma dasminhas personagens favoritas é o Custódio. Lembrou-me o Heathcliff do Monte dosVendavais. Aliás, muito deste livro me recordou o Monte dos Vendavais, masenquanto n’A Sibila a natureza humana se agita nos sobressaltos da vida, naobra-prima de Emily Brontë agita-se nas incongruências do amor.


Quando se aproxima do fim – para mim,mera leitora – torna-se mais fácil de compreender, embora continue a primar pela complexidade. Que princípios moveram,afinal, esta personagem, esta Quina? O que, na vida, lhe foi mais importante?Apesar da luta por se impor, por ser diferente sem no entanto ofender, aque convenções é incapaz de fugir?
“A Sibila” é um romance complexo, difícilde digerir. Tive alguma ajuda ao adquiri-lo na edição da Guimarães editores emsegunda mão, porque todas as palavras difíceis (que são aí cinco por página)vinham sublinhadas e com a respectiva definição na margem, o que me permitiulê-lo em três semanas em vez de três meses. Arrastou-se sempre, contudo, aimpressão perturbadora de não compreender a totalidade do que estava perante osmeus olhos.
Penso que um dia o lerei de novo - com aatenção sobre-humana que dediquei às últimas dezenas de páginas -, porque é-mesempre precioso ver uma mulher erguer-se, com os seus defeitos e fraquezasinerentes, e vingar num meio de homens.
Voltarei, sim, a ler Agustina Bessa-Luís,quase certa de que encontrarei a mesma perspicácia, a mesma profundidadehumana, em qualquer outro dos seus romances.

Classificação: 4****/*