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Castelos de Letras

Em torno das minhas leituras!

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Em torno das minhas leituras!

#49 MAUGHAM, Somerset - O Véu Pintado


Sinopse: «Kitty sente-se prisioneira de um casamentoinfeliz e de um estilo de vida que está longe de ser aquele que sonhou para si.Sem que tivesse obtido a notoriedade social que desejava e afastada do seu paíse da família devido à profissão do marido – bacteriologista destacado para HongKong –, a jovem acaba por encontrar algum consolo numa relação extra conjugal.Mas a traição acaba por ser descoberta pelo marido, que leva a cabo umaestranha e terrível vingança… Através do despertar espiritual daadorável e fútil Kitty, Somerset Maugham pinta um retrato vívido da presençabritânica na China e apresenta-nos uma galeria de personagens inesquecíveis.»

Opinião:"O Véu Pintado", adaptação com Edward Norton e Naomi Watts, é dosmeus filmes favoritos. A banda sonora é simplesmente sublime! Li trechos dolivro a ouvi-la, amplamente comovida pela beleza e a nostalgia que transmite.Já ouvi quem dissesse que estava muito aquém do livro, mas hoje, e terminada aleitura, considero até que o filme - tendo em conta a altura a que um filme sepode erguer perante um livro, é tão bom quanto o dito cujo, neste caso. Vouexplicar que matemáticas básicas me levam a este resultado: o filme romanceouum pouco a história, fazendo com que a Kitty se redimisse devido ao amor e àadmiração que acaba por nutrir pelo marido. Julguei que fosse um romance assim,sobre redenção. Sobre o facto de ela ser jovem e viver de centelhas de brilhopara, em seguida, se dar conta do verdadeiro valor intrínseco à naturezahumana. Em contrapartida o livro exibe o talento nato do autor para explorar ofuncionamento da mente e das emoções humanas.
O livro é sobreerros. Sobre arrependimento e sobre recaídas, sobre desprezo, compreensão eincompreensão, e sobre o quão inalcançáveis algumas pessoas nos parecem, talfechado é o seu modo de ser. Houve uma parte em que a Kitty teve um relance dacomplexidade do marido e descreve esse momento como olhar para uma florestafrondosa e escura à noite, vê-la alumiada momentaneamente por um relâmpago,julgar ter lá visto algo e, então, regressar às trevas. O Walter Fane é umpuzzle fascinante e comovente. É ternamente apaixonado pela Kitty (não digoloucamente porque é demasiado tímido e contido, mas a dimensão do seu afecto éobviamente desmesurada) e fica feito em cacos quando ela o trai. Provavelmentepara se perdoar a si próprio - por ter amado uma criatura como ela, umaadúltera mimada e caprichosa - e para atenuar a sensação de desprezo por simesmo (pelos mesmos motivos), obriga-se a fazer um sacrifício maior. Umsacrifício que porá em risco tanto a sua vida quanto a da sua esposa infiel:como bacteriologista, refugia-se em Mei-tan-fu, um recanto na China onde aspessoas perecem como moscas devido à Cólera.E é nesse cenárioexótico e de choque de culturas que a Kitty "cresce". Nos poucosmeses (dois ou três) que passa em contacto com a doença, com as freiras doorfanato, com o seu vizinho inglês que vive com uma mulher manchu, a sua menteexpande-se e ela começa a reflectir sobre a vida, o amor, a felicidade, siprópria, a religiosidade, e a tentar decifrar o modo como a sua traiçãomodificou o marido - outrora tão dedicado - e a condenou à infelicidade e acaminhar lado-a-lado com a morte. As suas prioridades rearranjam-se e elacomeça a vencer os próprios preconceitos e a desejar ser uma pessoa melhor.A Kitty Fanetornou-se, rapidamente, uma das minhas personagens favoritas da literatura. ANaomi Watts é bonita e tem aquele ar doce meio espevitado, mas a personagem emtrês dimensões do livro tem pensamentos preciosos que espelham a mesquinhez queocupa tão frequentemente a mente dos humanos. Ela enoja-se, de início, por terde conviver com crianças chinesas - amarelas e de nariz achatado e olhosinexpressivos, segundo ela própria. Ela sente repulsa de uma criança que temuma doença que implica um tamanho de cabeça desproporcional em relação ao corpoe que se baba, e que para mais a segue e está obcecada por conseguir o seuafecto. Ela pensa nela própria antes de pensar nos outros - e com o seudesenvolvimento ao longo do livro começa a importar-se cada vez menos consigo emais com o bem estar geral, de um modo sincero que acaba por espelhar umcrescimento gradual e maduro. Faz amizades genuídas que a ajudam a entreabriros véus que envolvem os grandes mistérios da personalidade e das razões humanas.O filme, tendoforjado uma reconciliação entre o Dr. Fane e ela, satisfez o meu sensoromântico, porque achei que havia ali muito pano por onde debater. O orgulhoferido dele e o amor que, vencendo o primeiro, prevalece. O vencer do asco queparece ter ao marido - por ele não ser bem-parecido nem popular e por ceder comfacilidade aos seus desígnios - por parte da Kitty. Mas *spoiler alert!* aKitty do livro acaba por admirar e respeitar o marido, mas a reconciliaçãonunca se dá. Inclusive, ao morrer, ela implora-lhe por perdão. E ele responde:o cão foi que morreu.Adorei a viagem aointerior da Kitty e à sua percepção de quem a rodeava. Adorei as paisagenschinesas e a sua cultura (é o segundo livro, no espaço de um mês, que leio eque revolve em torno da China). Adorei as reviravoltas da mente do autor, queme pôs a reflectir seriamente e, inclusive, me comoveu uma ou outra vez. Fiqueifascinada pelo Walter, que pertence exactamente ao tipo de homem que só se amaquando se tem um elevado grau de maturidade. E sobretudo adorei o absurdo davida: qual é o caminho a seguir? A Kitty não sabe. Algum dia virá a perdoar-sea si própria? A Kitty não sabe. O marido chegou a perdoá-la? A Kitty também nãosabe. É um romance desconcertante, lido num sopro que durou dois dias, que mecomoveu e me encheu de melancolia e de pequenas tristezas. As das despedidaspara sempre. As das grandes viagens para não mais regressar. As da tragédiahumana e social. Apesar demagistralmente bem escrito, arquitectado e conduzido, não consigo dar-lhecinco. Atribuo-lhe um quatro e setenta e cinco sólido. Apenas não posso darcinco porque o li à procura desse descer à terra da Kitty, mas os seus erros,de tão térreos, acabam por ser exasperantes. O autor foi tão realista que nãosobrou umas lascazinhas de romance para esta romântica se agarrar. A relação daKitty e do Walter tem tantas potencialidades a partir do momento em que ela seapercebe do valor dele! Como é que o autor não a desenvolveu? Oh Somerset, eusei que na vida real as pessoas têm tendência a prosseguir pela estrada maisfácil, pelo caminho dos erros aonde se insinua, lá ao fundo, a pirite, qualouro dos tolos... mas não poderias ter levado a Kitty a um porto seguro? Nãopodias tê-la conduzido até ao ouro genuíno? Não poderia ela ser daquelas raraspessoas que a literatura descreve como tendo-o achado, enquanto a pirite é paraos que se ficam pela vida real...? Até isso louvo na tua obra...! Que coragempara não dares aos leitores o que eles querem.Contudo, foi dasleituras mais prazerosas dos últimos tempos. Certamente que um dia voltarei alê-lo... quem saiba esteja eu própria mais consciente da falta de nexo daexistência.

«But soon a wonder came to light,
That showed therogues they lied;

The man recoveredof the bite,
The dog it was thatdied.»




Oliver Goldwin
Classificação: 4,75****/*