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Castelos de Letras

Em torno das minhas leituras!

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Em torno das minhas leituras!

#307 KEEGAN, Claire, Acolher

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Opinião: Há algo de muito terno e genuíno nos livros desta autora. À semelhança de “Pequenas Coisas como Estas” a autora tece uma obra pequena, apenas com as personagens e os momentos necessários, sem se perder em divagações. Depois, traça a sua rotina, geralmente numa Irlanda pobre onde o povo labuta arduamente por alimento enquanto é fortemente influenciado pela igreja e está sujeito à intempérie.

Neste «Acolher», nunca chegamos a saber o nome da personagem principal (ou passou-me completamente ao lado), é uma criança, e isso é tudo o que importa saber. Uma criança que, durante as curtas 65 páginas do livro vai conhecer uma rotina diferente da sua, vai ver o mar, vai comer com abundância, vai andar limpa e bem vestida e, acima de tudo, vai experimentar afeto. É comovente essa estranheza da criança carente e negligenciada para com o afeto. A autora até nisso foi sublime, porque é difícil não chorarmos na cena final.

Podia escrever um ensaio de 300 páginas sobre estas 65 da autora, mas basta-me pedir-vos que lhe deem uma, duas horas, e que me digam se este equilíbrio entre rudeza e ternura não é perfeito.

 

Sinopse: Uma menina vai viver com pais adotivos numa quinta na zona rural da Irlanda sem saber quando regressará. Numa casa desconhecida, de gente estranha, encontra um calor e uma afeição que não sabia existirem e começa lentamente a florescer. Até que a revelação de um segredo a faz compreender a fragilidade da sua vida.

#304 FERREIRA, Valentina Silva, Vertigens

Sinopse: Em finais dos anos 70, no Caniço, uma cidade costeira na ilha da Madeira, todos conhecem Ana Clara, a estranha rapariga que não fala e que passa os dias à janela.

Quando Anita Fontoura a vê, também ela presa na sua janela de solidão imposta pelo marido, desenvolve-se entre as duas vizinhas uma amizade inesperada.

Décadas mais tarde, de regresso à ilha para enterrar Anita, a sua filha Oti reencontra-se com Ana Clara, sua madrinha, para tentar compreender a história da família, das mulheres Fontoura, da fuga das duas para Lisboa e daquela mãe que foi tão difícil amar.

Este é um romance sobre liberdade e coragem, sobre forjarmos nosso próprio caminho, sobre gritos no silêncio. Duas mulheres enclausuradas que o destino uniu e que, juntas, encontraram uma forma de voar.

 

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Opinião: EmVertigens, a Valentina Silva Ferreira dá-nos a conhecer um leque de mulheres inesquecíveis. Ainda que as protagonistas sejam, indiscutivelmente, Ana Clara e Anita Fontoura, senti por várias vezes que o verdadeiro protagonista é o sagrado feminino - o ser mulher, as ligações entre as mulheres, a doçura, a força, a resiliência das mulheres e o seu estatuto, à época, de cidadão de segunda.


A minha maior surpresa foi para com a voz narrativa desta jovem autora madeirense. Nunca tinha lido nada da Valentina e, ao abrir o seu livro, senti-me perante um talento colossal. Uma voz poderosa mas que não se esforça, não se afeta. Uma voz acessível mas muito, muito lírica, que polvilha a historia de misticismo. Não conheço muitos livros assim de autores portugueses e, tendo de o aproximar de um estrangeiro, diria que há um quê de Gabriel Garcia Márquez no modo como as vidas das mulheres Fontoura são contadas. Embora sem cair no realismo mágico, há ali uma série de apontamentos memoráveis, de sentido de continuidade, que me remeteu para o universo das goiabas e dos trópicos.


MasVertigensé ainda mais do que isso. É um livro primorosamente escrito que nos traz a Madeira, os madeirenses, a clausura da ilha lado a lado com a sua beleza fatalista. É um livro excepcionalmente envolvente, que merece a distinção como semifinalista do Prémio Oceanos, e que promete um futuro pleno de luz à sua autora.

#299 FERRANTE, Elena, História de Quem Vai e de Quem Fica

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Opinião: A grande protagonista da tetralogia de Elena Ferrante é Nápoles. Nápoles e a sua microsociedade, o intrincado das suas ruas, os jogos de poder entre as personagens. A par de Nápoles, a história do século XX, aqui representada numa Itália que se debate entre os saudosistas do fascismo e a novidade do comunismo de rua, ativo e revindicativo, é o outro grande protagonista desta saga.

O fio condutor continua a ser a amizade de Raffaela e Elena, a primeira ficou no bairro, a segunda bateu as asas, experimentou um breve instante de reconhecimento pelos muitos anos de estudo e pelo livro publicado, e vive em Florença. A primeira separada, a segunda casada. A primeira com um filho crescido, a segunda a experimentar a maternidade. Como se a vida corresse mais depressa, mais intensa e impiedosa, para quem fica para trás. Como se Lila, de alguma forma, abrisse sempre o caminho, estivesse sempre mais adiante, soubesse mais da vida, e Elena simplesmente a seguisse, procurando, a todo o instante, validar a sua própria experiência à sombra da que foi de Lila.

As duas são cativantes mas, para mim, o romance ganha fôlego sempre que temos um vislumbre da vida e da mente de Lila. Para mim, a anti-heroína mais fascinante da literatura recente. É admirável que a autora tenha cimentado a inteligência e as capacidades destas duas mulheres para as conduzir por um século conturbado, com grandes mudanças, em que a mulher pela primeira vez pode usar a própria voz para fazer valer os seus direitos.

Profundamente feminista - o feminismo que considero genuíno, porque saído do suor de adversidades reais, por vezes de aspeto intransponível -, mas também realista, a história que continua a ser-nos contada chama cosntantemente o leitor a identificar-se com estas pessoas - não apenas com as mulheres principais, mas com as outras gerações também, com as suas falhas e conquistas. E, em simultâneo, não nos pede nada. Não tem pretensões de ser nada. Avançamos pelas páginas movidos pela curiosidade de saber o que é feito de fulano e beltrano, e acabamos a sentir que a nossa vida se assemelha bastante à deles e que, ao mesmo tempo, não tem nada em comum com a deles. Mas sentimos igual, ou sentiríamos igual.

Vou avançar para o quarto e último volume enquanto tenho estas personagens frescas na ideia. São muitas e todas me parecem relevantes. Não convém esquecê-las.

Sinopse: Elena e Lila, as duas amigas que os leitores já conhecem de A Amiga Genial e História do Novo Nome, tornaram-se mulheres. E isso aconteceu muito depressa. 

Navegam agora ao ritmo agitado a que Elena Ferrante nos habituou, no mar alto dos anos 70, num cenário de esperança e incerteza, tensões e desafios até então impensáveis, unidas sempre com um vínculo fortíssimo, ambivalente, umas vezes subterrâneo, outras visível, com episódios violentos e reencontros que abrem perspetivas inesperadas.

Classificação: 5/5*****

#291 DOSTOIEVSKI, Fiódor, Noites Brancas

Sinopse: As noites brancas são as do início do verão que se observam em latitudes como as de São Petersburgo e em que quase não escurece. São noites que não se distinguem dos dias, uma espécie de sonhos a imitar a vida.

Foi por isso que Dostoievski usou como subtítulo desta sua obra «Recordações de Um Sonhador». Talvez não tivesse sido possível a Dostoievski imaginar um narrador como o de Noites Brancas se não tivesse lido as obras de Dickens, Balzac e Eugène Sue. É uma narrativa na linha de outras obras do autor como Crime e Castigo, O Adolescente e Humilhados e Ofendidos.

O sonhador de Noites Brancas acaba por se perder da vida real, por se afastar do que interessa aos outros, mergulhando na tragédia solitária, como sucede a outras personagens de Dostoievski.

Opinião: As noites brancas são as do início do verão que se observam em latitudes como as de São Petersburgo e em que quase não escurece. São noites que não se distinguem dos dias, uma espécie de sonhos a imitar a vida.

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Foi por isso que Dostoievski usou como subtítulo desta sua obra «Recordações de Um Sonhador». Talvez não tivesse sido possível a Dostoievski imaginar um narrador como o de Noites Brancas se não tivesse lido as obras de Dickens, Balzac e Eugène Sue. É uma narrativa na linha de outras obras do autor como Crime e Castigo, O Adolescente e Humilhados e Ofendidos.

O sonhador de Noites Brancas acaba por se perder da vida real, por se afastar do que interessa aos outros, mergulhando na tragédia solitária, como sucede a outras personagens de Dostoievski.

Classificação: 5/5*****

#288 NÉMIROSVKY, Irène, O Baile

Opinião: Há, na natureza humana, uma espécie de competição passiva entre mãe e filha, em certos núcleos. Muito se tem falado de crianças criadas por mães narcisistas, creio que Irene Nemirovsky, inspirada na sua própria relação com a mãe, nos ofereça um conto sublime em torno do assunto. É simples, curto, contém apenas o essencial. Ainda assim é intenso, com personagens cheias de nuances e de motivações. Antoinette tem 14 anos e é quase uma mulher. Os pais, um judeu convertido e uma ex funcionária de banco, são novos ricos graças a uma jogada na bolsa. Desesperados por impressionar a classe a que tanto desejaram pertencer, negligenciam a filha única. Vivem de aparências, e procuram moldar Antoinette a um estilo de vida em que, acima de tudo, importa impressionar.

Antoinette vinga-se dos pais da melhor forma, em especial da mãe que lhe é abertamente hostil. Lembrou-me, com melancolia, a intensidade das novelas de Stefan Zweig. Gostei muito.

Sinopse: Os Kampf, acabados de transpor o limiar da opulência devido a uma miraculosa jogada de Bolsa, decidem dar um baile para se lançarem na sociedade. Antoinette Kampf tem catorze anos e sonha estar presente na grande ocasião, mesmo que por breves instantes. No entanto, Mme. Kampf toma a irrevogável decisão de não permitir a presença da filha, já suficientemente crescida para atrair sobre si olhares de eventuais admiradores.
Antoinette, revoltada e em desespero, vai vingar-se com naturalidade e sem premeditação.
Os temores trágico-cómicos de arrivistas que recebem pela primeira vez pessoas que desprezam e que nutrem por eles o mesmo tipo de sentimento, a rivalidade mãe-filha que finalmente se manifesta a pretexto de uma frivolidade, a amarga solidão de uma criança que já deixou de o ser, tudo isto nos é oferecido por este livro fascinante e perturbador.
O Baile foi adaptado ao cinema, com Danielle Darrieux no principal papel.

#286 NÉMIROVSKY, Irène, Suite Francesa

Sinopse: Escrito em plena tormenta da História, Suite Francesa descreve quase em directo o Êxodo de Junho de 1940, que reuniu numa desordem trágica famílias francesas de todos os quadrantes, das mais abastadas às mais modestas. Com grande audácia, Irène Némirovsky persegue as inúmeras pequenas cobardias e os fracos gestos de solidariedade de uma população à deriva.
Cocottes abandonadas pelos amantes, grandes burgueses enojados com a populaça e feridos abandonados em quintas entopem as estradas de França bombardeadas ao acaso... Pouco a pouco, o inimigo toma posse de um país inerte e amedrontrado. Como tantas outras, a aldeia de Bussy é então obrigada a acolher o exército ocupante. Exarcebadas pela sua presença, as tensões sociais e as frustrações dos habitantes despertam...

Suite Francesa é, ao mesmo tempo, um brilhante romance sobre a guerra e um documento histórico extraordinário. Uma evocação inigualável do êxodo de Paris após a invasão alemã de 1940 e da vida sob a ocupação nazi, escrito pela ilustre romancista francesa Irène Némirovsky ao mesmo tempo que os acontecimentos se desenrolavam à sua volta.
Embora tenha concebido o livro como uma obra em cinco partes (com base na estrutura da Quinta Sinfonia de Beethoven), Irène Némirovsky só conseguiu escrever as duas primeiras partes, Tempestade em Junho e Dolce, antes de ser presa, em Julho de 1942. Morreu em Auschwitz no mês seguinte. O manuscrito foi salvo pela sua filha Denise; foi apenas décadas depois que Denise descobriu que o que tinha imaginado ser o diário da mãe era na verdade uma inestimável obra de arte, que viria a ser aclamada pelos críticos europeus como um Guerra e Paz da Segunda Guerra Mundial.


Romance assombroso, intimista, implacável, desvelando com uma lucidez extraordinária a alma de cada francês durante a Ocupação (enriquecido e completado pelas notas e pela correspondência de Irène Némirovsky), Suite Francesa ressuscita, numa escrita brilhante e intuitiva, um momento decisivo e marcante da nossa memória colectiva.

Opinião: A fascinante Irene Némirovsky, de origem judia e nascida em Kiev, tinha planos para escrever um Guerra e Paz que narrasse a ocupação de França pelos nazis. Tinha-se naturalizado francesa havia muito, era casada e tinha filhas francesas. No entanto, sentia-se vulnerável devido às suas origens, e retirou-se para o campo com a família. Ali, enquanto esperava que o inimigo a encontrasse, acalentava a esperança de que isso nunca acontecesse. Escrevinhou um esquema geral para o romance colossal que pretendia criar, apontou as suas dúvidas, fez pesquisa, tirou notas acerca das personagens e suas vivências.

Suite Francesa é a minha estreia com a autora. Comecei por ler sobre a sua vida, e comovi-me profundamente. É costume dizer que não se deve confundir o autor com a obra, nem ler a obra influenciado pela figura do autor. Neste caso, a narrativa está tão entrelaçada com a voz da autora que a absorvi sempre ciente de quem a escrevia.

A autora criou um mosaico de diversas personagens na França de 1940. Temos os Michaud, uma família que trabalha num banco e aguarda o regresso do filho da frente, após a derrota francesa, os Péricand, da alta burguesia, ricos e, ainda assim, conscientes dos sacrifícios inerentes à época, os Corte, um coleccionador de loiça de Limoges que escapa à evacuação de Paris para depois ser tolhido pelo blackout (não podiam acender luzes em Paris durante a noite, nem sequer de automóveis, devido aos bombardeamentos dos aliados), etc.

A meio da narrativa surgem Lucille e a sogra, a senhora Angellier, bem como o oficial alemão que estas são obrigadas a alojar em casa. Toda a leitura demonstra uma humanidade profunda e espontânea. A autora não odeia o indivíduo alemão, tal como não enaltece o indivíduo francês. Retrata o primeiro com a sua sensibilidade para a arte, o seu sentido de dever e o seu saudosismo para com a Alemanha natal. Retrata o segundo com o seu snobismo de classe, o seu vício da cuscovilhice e da bebida, a sua mesquinhez ocasional. Em suma: permite-nos compreender que os homens são todos iguais, são os governos que diferem e os lançam uns contra os outros.

A narrativa foi interrompida pela deportação da autora para Auchwitz. O marido, sem fazer ideia do que significava esse lugar, bateu-se durante meses com as entidades alemãs para tentar obter notícias da mulher e trazê-la de volta a casa. Os alemães acabaram por se aborrecer com este católico tão aficcionado de uma judia, e acabaram por o executar nos mesmos moldes.

As filhas do casal fugiram com ajuda de amigos da família, estavam expostas e podiam ser consideradas judias por via da mãe. Dos objetos da casa, levaram apenas uma mala com os escritos da mãe. Décadas depois tiveram coragem de abrir o manuscrito, que julgavam ser um diário íntimo da mãe, e compreenderam que é na realidade uma obra de ficção que poderia ser disponibilizada ao público em geral.

Delicado, por vezes irónico, mas sempre pleno daquela compreensão da humanidade que só quem sofre possui, é uma leitura que vale muito a pena
.

Classificação: 5/5*****

#283 FERRANTE, Elena, História do Novo Nome

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Sinopse: Este romance continua a história de Lila e Elena, tendo como pano de fundo a cidade de Nápoles e a Itália do século XX.
Lila, filha de um sapateiro, escolhe o caminho de ascensão social no próprio bairro e, no final de A Amiga Genial, vemo-la casada com um comerciante. Elena, pelo contrário, dedica-se aos estudos.
Ambas têm agora 17 anos e sentem-se num beco sem saída. Ao assumir o nome do marido, Lila tem a sensação de ter perdido a identidade. Elena, estudante modelo, descobre que não se sente bem nem no bairro nem fora dele.
No início, vemos Elena a abrir um caderno de notas onde Lila fala sobre a vida com o seu marido e as complicadas relações com a Mafia e os grupos neofascistas, que invadem os bairros com as suas proclamações.
Lila e Elena hesitam entre a tendência para a conformidade e a obstinação em tomar nas suas mãos o seu destino, numa relação conflitual, inseparável mistura de dependência e vontade de autoafirmação, em que o amor é um sentimento «molesto» que se alimenta do desequilíbrio até nos momentos mais felizes.

Opinião: Nunca pensei que este segundo volume da tetralogia superasse o primeiro, mas a verdade é que o senti pelo menos tão intenso quanto “A amiga genial”. Senti o livro igualmente profundo, igualmente pertinente. A cada página, Ferrante recorda-nos daquilo que foi o século XX na Europa do Sul, a ascensão de uma pobreza abjeta, de uma miséria obscura, das classes mais vulneráveis para a classe média. O papel dos estudos, do capitalismo, da imagem, no desenvolvimento social e na emancipação das mulheres. Parece-me que a Lila causa aversão a muitos leitores, porém permanece a minha personagem favorita. Ela permite-se ser feliz, permite-se arriscar e não tem medo de nada. Mas a vida, as amarras em torno do seu género, a prisão do bairro e a sua pertença, primeiro ao pai, depois a um marido, impedem-na de exercer o seu direito à liberdade.
Termina com uma reviravolta agradável que me levou aos meus tempos de estudante, à época em que sabia que sem um diploma nunca seria nada, nunca teria nada. E à publicação do meu primeiro livro, e ao sentimento de que, daí, viriam coisas maravilhosas.
Uma obra contemporânea com todos os contornos de um clássico e que conserva o sabor a contemporaneidade. Ferrante recorda-nos da longa estrada até sermos senhoras da nossa voz.
Venceu-se o preconceito de mulheres na escola, de mulheres a tomarem decisões sobre a sua sexualidade. Venceu-se o patriarcado, a ideia de que a mulher pertence aos filhos e à casa. Venceu-se tanto, e tanto há ainda a vencer…

#278 TOLSTOI, Leo, Anna Karenina

Opinião: Anna Karenina é um gigante da literatura internacional publicado na íntegra em 1877. Trata-se de uma obra cujo título original era “Dois Casamentos”, e talvez esse título se aplicasse melhor a esta história.image-1_15785c4d-bbcf-4e2c-aaa7-9b8768603637_1024x

Foi a primeira vez que organizei uma leitura conjunta e fez todo o sentido estrear-me nessas andanças com este livro. Tinha medo de me embrenhar nele sozinha, medo de me sentir isolada, sem poder comentá-lo e sem encontrar motivação para continuar. O meu livro saiu da estante, onde ganhava pó desde 2012, e com ele saíram outros 30 e tais exemplares deste clássico. Fechámos o grupo com 36 leitores, e dividimos a leitura em 8 estações de comboio (o livro está dividido em 8 partes pelo próprio autor). A média resultou em 20 e poucas páginas por dia, durante dois meses (20 de Fev. a 20 de Abril). Muitos terminaram antes, mesmo tendo começado depois. Outros prosseguem a viagem pelas paisagens russas, e chegarão ao fim quando assim entenderem.

Quis deixar esta introdução para que fique claro que a minha opinião se baseia não só na obra, mas também na experiência de leitura conjunta, e do consequente debate que daí partiu.
Anna Karenina divide-se em dois núcleos principais: por um lado aquele imortalizado pelo imaginário popular e pelo cinema – a história de amor conturbada (e adúltera) de Anna e o Conde Vronski –, por outro, os dilemas existenciais e o alheamento social que experimenta Lévin, cuja vida se desenrola no campo e cuja visão da cidade e das suas gentes oferece o contraste perfeito.

”Mas quanto mais se esforçava por pensar, mais claro se lhe tornava que era indubitavelmente assim, que realmente se tinha esquecido, tinha deixado escapar na vida uma pequena circunstância – que chegaria a morte e que tudo acabaria, que não valia a pena começar nada e que nada podia ser feito quanto a isso.”


Simplificando o enredo: esta é a história de uma Rússia em tempo de progresso, a Rússia de Alexandre II onde proliferam os caminhos-de-ferro, concedeu-se a liberdade aos camponeses, espia-se o exterior e tenta trazer-se o melhor de França, de Inglaterra e da Alemanha para a Rússia. Observamos estes russos a partir da alta sociedade, na qual se enquadram Anna, esposa de um funcionário de Estado, Vronski, conde com uma considerável fortuna, e Lévin, um jovem abastado que circula nessa sociedade sem, no entanto, se sentir alheio às suas maneiras. Tolstoi conta-nos que na altura sociedade russa todos fingem – há affairs, há dívidas intermináveis, há o vício do jogo, do álcool, das mulheres, e há alguma corrupção associada à distribuição de cargos importantes: os contactos regem as influências de cada um.

A pedra que vem sacudir a organização inquestionável deste país, que à época respirava progresso, é o facto de uma mulher respeitável, casada há vários anos, mãe e mulher de sociedade inimputável, se apaixonar à primeira vista por um jovem oficial de cavalaria. De início, Anna procura combater essa paixão, e é nesse sentido que isto não é um livro de amor: o encontro dos dois, bem como o seu entendimento, ocupa uma breve fração do livro. O miolo da obra são as consequências que algo natural, como apaixonarmo-nos, pode trazer a um cidadão que se atreva a parar de fingir em sociedade por um instante.

Procurando não estragar a obra para quem ainda a não leu: muitos dos meus companheiros de leitura apaixonaram-se pelo núcleo da história que pertence ao jovem Lévin, um homem que vive de acordo com as suas crenças, a sua vontade, e em relativa simplicidade – isto fica claro numa cena em que Lévin vai almoçar com o seu velho amigo Stepan, e este último saboreia uma série de iguarias estrangeiras num restaurante de luxo, enquanto Lévin procura algo mais “russo”, mais fiel à sua natureza, e acaba por comer umas papas e uma sopa. Lévin terá sido escrito à imagem do próprio Tolstoi que, oriundo da aristocracia, passou a vida à procura de algo de útil para fazer pela Rússia, e questionou todas as fundações da cultura e da sociedade russas – desde a ausência de escolas para camponeses, à educação que impõe doutrinas aos alunos, à própria religião cristã, nas suas vertentes tanto católica quanto ortodoxa. Posto isto, entende-se que seja a personagem que oferece uma maior profundidade, e também é a que protagoniza a verdadeira história de amor do romance – um amor construído e cadenciado, com os vícios dos tempos e da natureza humana, que vai conquistando confiança aos poucos.

Lévin é também a personagem que verbaliza os males que assomam a Rússia no “crepúsculo” do Império, e também na aurora do socialismo:

”Esse mal, a aquisição de enormes fortunas sem trabalho, como acontecia no tempo das arrematações, apenas mudou de forma. (…) Mal acabaram as arrematações de rendas [possivelmente pela abolição da servidão] logo apareceram os caminhos-de-ferro e os bancos: a mesma acumulação sem trabalho.”


Mas regressemos a Anna Karenina, a mulher casada que se vê entre a espada e a parede – isto é, entre o dever e o seu coração. O amor, recém-descoberto, até então abafado pelas convenções sociais, ou uma vida de estatuto, de comodismo social, em círculos respeitáveis, na companhia do filho e do marido que descobre não só não amar, como também desprezar? Uma vez os olhos abertos para algo natural como o amor, como pode tanta gente julgar Anna pelas decisões que ela acabou por tomar, e pelo turbilhão emotivo que daí partiu?

Eu compreendo uma mulher que ama, e que é amada. Como poderia ela virar as costas a esse amor, anular-se e ao objeto da sua afeição, para continuar tudo como estava? Inclusive ela tenta, mas não consegue. Não consegue apartar-se do homem que ama. E, ingénua, julga que a sociedade lhe permitirá dois direitos pelos quais a mulher ainda haveria de se bater bastante: o de se divorciar, e o de manter algum tipo de direito sobre o filho.

Não tenho nenhuma palavra de censura para com a personagem Anna Karenina : para mim, as partes dela foram as que mais esmiuçaram o coração humano, as que mais me causaram assombro e angústia. De facto, a dor, a insegurança e até a paranoia desta mulher ostracizada por tudo e por todos torna-se irritante, mas como seríamos nós se nos víssemos privados de tudo o que nos é caro? Se tivéssemos de viver com a dúvida e a culpa pela nossa escolha, mesmo sabendo que não poderíamos ter feito outra?

”Naturalmente – pensava – a sociedade da corte não a receberá, mas as pessoas próximas podem e devem compreender isso devidamente.”


Eu penso até que Tolstoi descreveu a depressão pós-parto numa altura em que tal termo nem existiria, mas em que inúmeras mulheres já padeceriam desse mal:

”Tudo naquela menina era adorável, mas por qualquer motivo tudo isso não lhe enchia o coração. Para o primeiro filho, embora fosse de um homem que ela não amava, tinham ido todas as forças de um amor que não fora satisfeito; a menina, nascida nas condições mais difíceis, não recebia nem a centésima parte das preocupações que iam para o primeiro”


Aqui questiono-me: em que medida pode uma mãe apartada de um filho – a sua responsabilidade não importa, porque a mulher deve poder cumprir-se como mãe mas também como mulher, sem ter de escolher entre um amor e outro -, entregar-se de coração aberto ao segundo, sobretudo quando sofre e quando vem sofrendo desde a descoberta dessa segunda gravidez?

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Concluindo; foram dois meses de uma leitura desafiante. Este livro é um tratado minucioso sobre a Rússia do séc. XIX, que só tem par em Guerra e Paz – Livro IV , do mesmo autor. Só hesito em atribuir-lhe as 5 estrelas porque tem algumas partes em que me apeteceu pegar no lápis azul e cortar – refiro-me às partes de caçadas intermináveis, encontros políticos, eleições, e mais caçadas.
Fora isso, é daqueles livros que abrem espaço no nosso coração, e que se instalam para sempre.

A Editorial Presença cedeu um exemplar de O Jogador de Dostoievski, para ser sorteado e incentivar a leitura de clássicos russos aos membros desta leitura conjunta.

Classificação: 4,5/5*****

#276 DOYLE, Arthur Conan, As Aventuras de Sherlock Holmes

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Opinião: Esta edição compila sete aventuras de Sherlock Holmes e do seu companheiro de aventuras - e médico - Dr. Watson. É a minha estreia com Arthur Conan Doyle, e adorei.

Apesar de um toque pueril nalgumas histórias - isto é, a certeza de que as coisas acabam por correr sempre bem para o lado do nosso amigo Holmes - há reflexões muito interessantes e momentos de génio que, para uma aficionada de crime como eu, permanecem atuais e intrigantes. O autor tinha uma voz narrativa forte, e percebe-se que escolheu este género de escrita mas que teria vingado em qualquer outro.

Como minha aventura favorita, destaco "A Aventura da Casa Vazia", pois que Watson - aliás o narrador de todas estas aventuras, nas quais transparece a sua admiração por Holmes - lamenta a morte do amigo, mas o decorrer dos acontecimentos traz-lhe a surpresa de não terem ainda terminado os mistérios a resolver na companhia do inspetor mais famoso - e eficaz! - de Londres.

Adorei!!

Sinopse: Aventuras de Sherlock Holmes é uma colectânea de 12 contos de aventuras publicada em 1892. Os contos foram originalmente publicados na revista Strand Magazine, nos anos de 1891 e 1892

#275 BRAVO, Iris, A Nova Índia

Sinopse:  Sofia assinou um acordo de divórcio e partiu para Moçambique. Disposta a viver aventuras e sem saber que continuava casada, envolveu-se com Alex, que lhe revelou os seus segredos e por que não queria ter filhos.

Foi por isso que quando ela descobriu que estava grávida, regressou a Portugal sem lhe contar. Assim que aterra em Lisboa, o seu marido Ricardo espera-a, arrependido de a ter magoado e decidido a tudo para a reconquistar.

Quando os seus olhos a fitaram, o seu coração parou. «E agora?» Dividida entre quem acreditava ser o homem da sua vida e um grande amor, a Terceira Índia terá de criar o seu futuro e enfrentar novas ameaças, que irão testar a sua coragem e levá-la aos seus limites."

 

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Opinião: Curiosamente, demorei mais tempo a articular a opinião do que a ler o livro!

Li A Terceira Índia no verão passado, e fiquei rendida à história. Não tenho lido muitos portugueses contemporâneos, o que é uma pena porque os há, e bons.

Porquê que os livros da Íris Bravo me conquistaram?

1. São um pequeno milagre no panorama nacional: como é que as nossas editoras, tão seletas, tão ciosas do seu "plano editorial", foram apostar numa autora desconhecida, em ficção contemporânea?
2. A Cultura Editora apostou, e a aposta venceu. Com sorte, abre a porta a outros novos autores com livros BONS para publicar.
(Porque venceu esta aposta? A capa era maravilhosa, o que captou de imediato o meu interesse. Depois, o BookGang, da Helena Magalhães, fez um trabalho excelente de divulgação e, quando se dá por ela, o livro já pertence a todos e está em toda a parte. Como é um livro BOM, dá-se o passa a palavra dos leitores, e o Bookstagram impulsionou-o. Curioso que esse livro e o Apneia da Tânia Ganho são dois livros de mulheres, sobre mulheres e problemas de mulheres, e tiveram tanto destaque num ano de pandemia, em que algumas vozes dizem que as pessoas só se querem "distrair", que a economia iria contrair-se - já era esperado - e que as vendas de livros caíram. Concluo que quando um livro parte de uma premissa interessante, e quando os leitores têm oportunidade de saber da sua existência, o livro vende-se.)
3. É um caso de sucesso em que se promove um livro, um tema, e não um autor.
(Eu sou da literatura pelos livros, e acho lamentável quando um autor estabelecido publica um livro fraco sobre crocs e a ideia é muito original, e vende dezenas de milhar de exemplares (porque está estabelecido), e um autor novo escreve um livro brilhante sobre os mesmos crocs e as editoras fecham-lhe a porta na cara porque o tema não dá com nada, não gera interesse, ninguém vai comprar. No nosso meio editorial, idolatram-se os criadores, não a obra. Isso rouba aos leitores a possibilidade de conhecer livros maravilhosos. Uma Elena Ferrante teria sido um sucesso aqui? Provavelmente teria passado despercebida, como em Itália - os próprios editores italianos o admitem, e o Strega negou-lhe o prémio em parte porque não saberiam como o entregar a um anónimo, diz-se - mas chegou aos Estados Unidos, o que importa é o produto, em avaliar a rentabilidade de um produto, e tornou-se o sucesso que é.)

Agora regressando a A Nova Índia, o livro que encerra a história da Sofia... Sabíamos que haveria um triângulo amoroso, sabíamos do milagre relacionado com a infertilidade da Sofia, sabíamos que é provável acabarmos a leitura em pranto.

Mas não sabia que um romance contemporâneo português, ainda para mais de uma estreante, podia ser tão inclusivo e tão representativo daquilo que é a nossa sociedade hoje. Eu gosto de ler autores portugueses sobre Portugal (rejeito muitos autores portugueses bem estabelecidos que levam a ação das suas obras para a Islândia, para lagos na Suíça, para a América e outras paragens, e que dão nomes estrangeiros às suas personagens) porque acho que existimos agora, temos capacidade e interesse em escrever, e se não imortalizarmos o Portugal de hoje, quem irá fazê-lo?

A Iris pega na infertilidade - tema que, à partida, diz tanto a tantas famílias - pega no ambientalismo, pega em problemas humanitários, pega na sociedade portuguesa, nas boas famílias, nas famílias trabalhadoras e nos portugueses que farão o amanhã, e alinhava esta história de um modo que envolve o leitor, nos faz importar-nos com as conquistas e os falhanços destas personagens falíveis e tão palpáveis. A Sofia é uma personagem excelente nas suas inconstâncias, sempre fiel à sua natureza. O Ricardo, seu ex., is a little bit of a stalker, e por isso detestei-o durante 75% da história, mas a Iris não o deixaria despedir-se dos leitores sem mostrar o seu lado bom. E há ainda o Alex, aquele tipo bem intencionado - por vezes irresistível - que queremos ter nas nossas vidas porque representa conforto e proteção.

Mais do que isto, há o Algarve, Lisboa, Beja, Almeirim, as tias de Cascais e os hippies da Margem Sul, há vislumbre da vida dos médicos em Portugal, mas também dos professores, dos arquitetos e dos agentes da judiciária. Há uma sugestão de corrupção, de cunha, de ilegalidades de que todos desconfiamos mas às quais fechamos os olhos porque é como é, estamos na periferia da Europa, tudo isto nos é endémico.

Estou convicta de que a Iris voltará com novos livros, com novas personagens, para brincar uma vez mais com o coração dos leitores, e para nos devolver o nosso país na palavra impressa, para que todos possamos identificar-nos e, ainda assim, estudá-lo de fora, estudarmo-nos de fora, com todos os nossos defeitos e virtudes.

Acabou, mas guardo estes dois volumes com carinho, e desconfio que um dia serão relidos com o mesmo entusiasmo!

Obrigada Iris, por não desistires de publicar estes livros apesar da muita resistência que o mercado oferece. E obrigada, Cultura, por se despirem de preconceitos e nos trazerem uma história onde qualquer leitor pode rever-se. É isto que queremos!

Classificação: 5/5*****