Sinopse: Todos os anos, a 16 de agosto, Ana Magdalena Bach apanha o ferry que a leva até à ilha onde a mãe está enterrada, para visitar o seu túmulo. Estas viagens acabam por ser um convite irresistível para se tornar uma pessoa diferente durante uma noite por ano.
Ana é casada e feliz há vinte e sete anos e não tem motivos para abandonar a vida que construiu com o marido e os dois filhos. No entanto, sozinha na ilha, Ana Magdalena Bach contempla os homens no bar do hotel, e todos os anos arranja um novo amante. Através das sensuais noites caribenhas repletas de salsa e boleros, homens sedutores e vigaristas, a cada agosto que passa Ana viaja mais longe para o interior do seu desejo e do medo escondido no seu coração.
Escrito no estilo inconfundível e fascinante de García Márquez, Vemo-nos em Agosto é um hino à vida, à resistência do prazer apesar da passagem do tempo e ao desejo feminino. Um presente inesperado de um dos melhores escritores que o mundo já conheceu. A tradução é de J. Teixeira de Aguilar.
Não tenho lido em papel, apenas no kobo, mas quis este objeto de arte na minha casa e, ainda antes de ponderar adquiri-lo também no kobo para poder lê-lo com maior conforto, dei por mim recostada nas almofadas e a folheá-lo. Menos de duas horas depois, estava lido.
Nesta última viagem pela mente e a pena de Gabo - segundo os filhos, já debilitado -, o autor coloca Ana Magdalena Bach no centro da ação. É incrível a sensibilidade com que este Nobel colombiano veste a pele de uma mulher e a torna tão real, tão humana, tão palpável. A somar à personagem principal cativante - nos seus desejos, inquietações e defeitos -, temos o retrato de uma família com tudo para ser feliz, mas acima de tudo de uma ilha que se transforma anualmente no refúgio de uma mulher prestes a entrar na menopausa.
A ilha das Caraíbas que o autor nunca nomeia serve também de marcador de tempo, desde os veículos que dela partem e nela aportam, até aos hotéis e respetivas comodidades. Em todos os refúgios anuais de Ana Magdalena há música, noites tropicais, álcool, calor e um homem diferente.
É uma obra muito simples mas, apesar disso, está muito bem escrita e cria um ambiente tão nítido que sinto que estive nas Caraíbas ontem à noite, com um saco de ráfia ao ombro e o bafo peganhento do verão tropical na nuca. Dancei ritmos latinos e dormi com um homem que cheirava a lavanda. É Gabriel García Márquez, por isso não tinha outra opção se não adorar.
Sinopse:Uma jovem de 23 anos, estudante universitária brilhante, descobre que está grávida. Tomada pela vergonha, consciente de que aquela gravidez representará um falhanço social para si e para a sua família, sabe que não poderá ter aquela criança. Mas, na França de 1963, o aborto é ilegal e não existe ninguém a quem possa acorrer. Quarenta anos mais tarde, as memórias daquele acontecimento continuam presentes, num trauma impossível de ultrapassar e cujas sombras se estendem para além da história individual. Escrito com uma clareza acutilante, sem artifícios, este é um romance poderoso sobre sofrimento, justiça e a condição feminina. Escrito por Annie Ernaux em 1999, foi adaptado ao cinema em 2021 por Audrey Diwan, num filme vencedor do Leão de Ouro em Veneza.
Opinião:
"Sendo a primeira a realizar estudos superiores numa família de comerciantes, tinha escapado à fábrica e ao balcão. Mas nem o liceu nem a licenciatura em letras haviam conseguido contornar a fatalidade da transmissão de uma pobreza da qual a rapariga grávida, tal como o alcoólico, eram símbolos. Tinha sido apanhada na curva, e aquilo que crescia em mim era, de certo modo, o fracasso social."
Foi a minha estreia com Annie Ernaux, e compreendi o elogio de como a sua obra conta a história de um século através de relatos com travo a autobiografia. Ao longo da leitura, senti várias vezes que estava a ouvir a confissão da própria autora. É a sensação que tive ao ler, mesmo porque a personagem está a contar "o acontecimento" a partir de 1999, volvidos 35 anos sobre o seu aborto ilegal, e o tipo de detalhes que recorda parecem fruto de uma imaginação sensível e progidiosa, ou de uma experiência traumática pessoal.
A relevância do livro é tanto social quanto política. É um ensaio relativamente simples - e, no entanto, de uma complexidade angustiante - sobre o significado de uma gravidez indesejada. Neste caso, o regresso à pobreza, hesito em dizer "estatuto", mas "estatuto" não significa apenas privilégio, tantas vezes significa segurança económica, aceitação social, respeito, reconhecimento. Também nos recorda das trevas que as mulheres tiveram de desbravar - ainda há 50 anos - para poderem interromper voluntariamente uma gravidez em segurança. A brutalidade dos métodos, a clandestinidade, a dor e o trauma que inflingiam a uma mulher, de resto, saudável. O risco, a sujeição. O julgamento social, a crítica direta, o crime.
Por outro lado, o pai da criança, e o facto de lavar completamente as mãos do assunto. De não estar obrigado a prestar nenhum apoio àquela mulher, de não fazer nenhum esforço para a ajudar num momento de desespero, porque não é nada com ele. Um retrato nítido do que significa o machismo e a sociedade patriarcal. O homem isento de culpa e responsabilidade, a mulher atormentada pelo julgamento moral e a pôr a própria vida em risco para manter o que conquistou e as perspetivas de futuro.
Ainda bem que o mundo evoluiu, desde aí. Era necessário. Uma pequena obra com muito pano para reflexão. Fiquei com vontade de ler mais livros da autora.
Opinião: E sei que identificarmo-nos com uma história não é requisito para que ela nos toque. Mas foi o identificar-me tanto com a Anne e com as pessoas ao seu redor que me vez adorar este livro, e metê-lo na minha prateleira de favoritos.
Tenho muita resistência a ver séries, mas vi Anne with an E e terminei a desejar que houvesse mais. Três temporadas é pouco para uma história tão bonita e cheia de princípios. De início, Anne é uma menina muito irritante, faladora e com grande tendência a meter-se em problemas. Aos poucos, vai-nos conquistando.
É muito simples. Em 1908 Lucy Maud Montgomery publicou o primeiro de vários livros centrados na personagem de Anne Shirley, uma órfã com uma imaginação prodigiosa que está sempre no centro de algum sarilho. Os valores que o livro aborda são nobres e intemporais: família, amigos, estudos, pobreza, velhice, religião, lealdade. De todas as pessoas que Anne conquista, Marilla é a que me conquistou. Lembra-me muito a minha avó e aquela rabugice de pessoa que se preocupa connosco, mas que ao mesmo tempo receia mostrar-nos demasiado afeto por medo de nos "estragar". Há muito humor na sua rezinguice:
"– Anne, falaste durante dez minutos exatos – disse Marilla. – Agora, só por curiosidade, vejamos se consegues ficar calada a mesma quantidade de tempo.
Há momentos de grande ligação com a natureza, de grande espiritualidade. As imaginações mirabolantes de Anne são hilariantes, as questões que ela vai colocando ao mundo que a rodeia são pertinentes, e o modo como a autora descreveu o seu coming of age é ternurento. Diria que é dos - se não o melhor livro - que aborda este tema do crescimento. E o da família. E o do envelhecimento. E, em grande medida, da hipocrisia social. Green Gables torna-se a casa de todos nós durante estas páginas, torna-se um sítio idílico e palpável. Apaixonei-me por este universo e não duvido que tem capacidade de conquistar milhares de outros leitores. Não fosse este o livro de literatura canadiana mais traduzido no mundo.
Lido em inglês na edição de 1905, traduzido por mim do original
Sinopse: A Amiga Genial é a história de um encontro entre duas crianças de um bairro popular nos arredores de Nápoles e da sua amizade adolescente. Elena conhece a sua amiga na primeira classe. Provêm ambas de famílias remediadas. O pai de Elena trabalha como porteiro na câmara municipal, o de Lila Cerullo é sapateiro. Lila é bravia, sagaz, corajosa nas palavras e nas acções. Tem resposta pronta para tudo e age com uma determinação que a pacata e estudiosa Elena inveja. Quando a desajeitada Lila se transforma numa adolescente que fascina os rapazes do bairro, Elena continua a procurar nela a sua inspiração. O percurso de ambas separa-se quando, ao contrário de Lila, Elena continua os estudos liceais e Lila tem de lutar por si e pela sua família no bairro onde vive. Mas a sua amizade prossegue. A Amiga Genial tem o andamento de uma grande narrativa popular, densa, veloz e desconcertante, ligeira e profunda, mostrando os conflitos familiares e amorosos numa sucessão de episódios que os leitores desejariam que nunca acabasse.
Opinião: Nápoles é um mundo à parte que tive o privilégio de conhecer a partir do seio de uma família napolitana. De uma família napolitana que vive nas encostas do Vesúvio e que me dizem que preferem pagar uma fortuna para morar ali do que pagar menos para viver melhor noutro lado. Esta família napolitana levou-me a ver o Cristo Velato e a ver os presépios da San Gregorio Armeno e a espreitar para a cidade a partir do cume do vulcão. Pelo caminho, perguntavam-me se queria uma sfogliatella com um café, e diziam-me para ter cuidado com a mala porque Nápoles está entregue à ladroagem e à máfia. Passeámos de noite e vimos a baía iluminada, não me foi difícil imaginar os fogos de artifício no fim de ano. Comi gnocchi alla sorrentina e pratiquei muito italiano (sem dizer que quando se punham todos a falar dialeto eu não pescava grande coisa).
De todas as histórias que me contaram, guardei uma que me comoveu, porque me chegou de três rostos simples, trabalhadores, que vivem muito bem mas que não escondem uma vírgula das suas origens. O patriarca contou-me que nasceu na Sicília e que era tão pobre que ele e os pais se mudaram para Nápoles nos anos 70. Também em Nápoles a miséria era tanta que só tinham uma cadeira na casa, cadeira essa que era ocupada pelo pai ao serão. Por fazer calor, abriam a porta. Os vizinhos (novos, desconfiados - porque cada recanto de Itália é um mundo diferente), viam o filho e a mãe sentados nos degraus da porta, enquanto o pai se sentava na única cadeira. De lágrimas nos olhos, contou-me que ao fim de uma semana tinham uma movimentação constante de vizinhos que apareciam a dispensar-lhes cadeiras. Foi assim que se tornou napolitano, e que aprendeu o dialeto e a profissão de mecânico de camiões. Agora, a entrar nos seus 60, continua a trabalhar como um rapazinho e passa os dias de fato-de-macaco e mãos sujas de óleo, enquanto a mulher se assume como a melhor condutora da família e o filho estuda engenharia aeroespacial. Como fui lá em Dezembro, a árvore de Natal ia do chão de mármore ao tecto e estava pejada de bolinhas de vidro colorido, cada uma trazida de um dos destinos para onde viajaram durante aquele longo (e feliz) casamento. Nova Iorque, Veneza e Fátima têm, para eles, o mesmo valor.
Terminada a minha aventura napolitana, concluo o seguinte: A Amiga Genial não é um livro original, nem imprevisível, nem formidável. É apenas muito representativo daquilo que é a Itália, sem grandes floreados. A linguagem é simples, as mensagens chegam-nos com facilidade. E é isso que mais me interessa na literatura: que a mensagem me chegue. Lamento apenas que a comida não tenha um papel muito importante na narrativa (disseram-me que acharam o livro um perpetuador dos estereótipos associados aos italianos). No entanto, pouco se falou de máfia, pouco se falou de comida, pouco se falou de futebol e de cantoria em coro. Eu, por minha vez, entendo porque é que as personagens deste primeiro volume da tetralogia de Elena Ferrante ainda não falam de comida, nem cantam a Sole Mio de olhos marejados de lágrimas, como me cantou a família Di Costanzo. Também o café napolitano e a água de Nápoles (precisamente aquilo que sabia que os napolitanos valorizam, assim como a pizza) não são elevadas. Tudo ocupa o seu lugar insignificante na vida destas crianças - e depois adolescentes - num ambiente altamente pobre e hostil. Tudo é violência neste subúrbio napolitano: as relações pais/filhos, as relações de amizade são pontuadas por episódios de pancadaria, o amor leva a traições, que levam à loucura e ao sangue, a miséria é embaraçosa e molda os caracteres destes jovens napolitanos. Ainda não chegaram à idade de valorizar a beleza visceral de um país que tenho como o mais belo do planeta, e nem de admirar a resignação e a dignidade do povo a que pertencem. Em suma: neste volume ainda não lhes veio a malinconia.
Acompanhamos Lenù (a narradora) e Raffaella (Lila) até aos seus dezasseis anos, e as duas são igualmente preciosas no seu modo de percecionar o mundo ao redor, de se movimentarem nele e de sonharem com grandezas inalcançáveis. O livro evidencia o espírito de sacrifício do povo italiano (um povo essencialmente de emigrantes), mesmo quando fica e busca conforto na bell'Italia. E, de toda essa pobreza, de toda essa violência de uma Itália selvagem - bela e arredia - emerge algo como única passagem para longe das adversidades: a educação. Belíssimo!
Opinião: Li o primeiro de quatro volumes do incontornável, assustador, megalómano, “Guerra e Paz” (1865-1869) em oito dias. Até a mim me surpreendi.
Em primeiro lugar, devo dizer que tinha um chavão ao qual recorria em diversas ocasiões na minha vida. Quando me diziam “Não leste o livro de instruções?”, referente a produto tal, eu replicava “Se tivesse tempo, lia o Guerra e Paz”. O meu interesse por esta obra nunca foi grande – tinha-o na lista dos livros que queria muito ler mas não pelo enredo em si, nem sabia se algum dia haveria de lhe pegar. Queria lê-lo por ser um daqueles livros que devemos ler antes de morrer, só para saber o porquê de tanto burburinho ao seu redor. O desejo de vencê-lo intensificou-se o ano passado, quando comecei a dedicar-me à literatura russa. Já tinha lido A Sonata de Kreutzer, que me pareceu um tanto difícil de digerir – são os nomes, a história, os diminutivos, os lugares, o modo de estar, o afrancesamento da aristocracia russa, tudo tão difícil e exótico para quem neles se inicia (por vezes até artificial, o que creio que, em Tolstoi, funciona como crítica social). Depois li Turguenev, Fumo, e pensei “embora não me fascinem, estes russos até não são tão inacessíveis quanto isso”. De Turguenev saltei para Dostoievski, porque tanta gente me afirmou, desde sempre, que Crime e Castigo é o seu romance favorito de sempre. E li-o: um desafio, sem dúvida, mas também um sem fim de emoções, desde a angústia ao riso. Regressada a Tolstoi, leio A Morte de Ivan Iliitch, que se transformou automaticamente numa das minhas novelas favroitas, e de uma simplicidade desconcertante. Atiro-me então aos Os Irmãos Karamázov, uma obra que receava ler por vários motivos: sendo o tamanho e o facto de se tratar de uma história de homens num mundo de homens alguns dos principais. Apaixonei-me por aqueles irmãos, dificilmente esquecerei o Dmitri, o Ivan e o Aliocha. Estou convencida que é outro dos livros que me vai ficar par a vida.
Tendo viajado por todas estas obras, e vendo-me em casa devido ao confinamento, comecei a estudar russo básico, o que me esclareceu mais alguns pontos sobre a cultura russa. Aportei num documentário do Youtube em oito episódios, sobre os 300 anos da Dinastia Romanov, e agora entendo que a contextualização dos reinados de Catarina, A Grande (ep. 5) e de Pavel I (ep. 6), bem como de Aleksandr I (ep. 7) me ajudaram a compreender a situação das várias camadas sociais na Rússia Imperial, bem como um pouco das suas relações com o estrangeiro.
Voltando a Guerra e Paz, Volume I, e a importância de o ter lido em 8 dias… É que este primeiro volume introduz uma miríade de personagens, lugares, ligações, interesses e estratégia militar. Também contextualiza o momento histórico, as alianças militares e algumas batalhas históricas como Austerlitz, em que o próprio Napoleão conduziu as suas tropas contra a aliança russo-austríaca. Por tudo isto, creio que será, dos quatro volumes que compõem este colosso, o mais desafiante. Quase na viragem das 200 páginas, estive prestes a desistir. De repente saía dos salões de S. Petersburgo, onde tudo era etiqueta, e da nobreza despreocupada de Moscovo, para a tomada de uma ponte algures numa Europa que sofreu inúmeras alterações geográficas desde esse distante ano de 1805. Estava no meio de ajudantes-de-campo, generais, hussardos e cossacos, com os seus sabres, baionetas, espadas e penachos. Perguntei-me se seria capaz. Mas o obstáculo não durou mais de dois capítulos, e de repente a guerra já me acelerava o pulso; começava a conhecer as personagens que vou acompanhar ao longo destas cerca de 1200 páginas em situações de vida ou morte, e a deslindar os corajosos dos cobardes, os valorosos dos mesquinhos. Comecei a preocupar-me com os seus destinos, a desejar que a Rússia triunfasse sobre o inimigo imbatível, e, terminado este primeiro volume, lancei-me ao segundo, ansiosa por acompanhar estas personagens no rescaldo dessa batalha sangrenta.
Diria que as personagens principais são as seguintes: Nikolai Rostov, Andrei Bolkônski, Pierre (Conde Bezukhov) e Natacha Rostova. Parece-me que a acção irá sempre decorrer em torno dos destinos destas personagens, auxiliadas por dezenas – se não centenas – de personagens secundárias (li algures que o romance conta com 550 personagens), o que torna esta obra tão rica e tão complexa. Muitas dessas personagens e dos eventos aqui descritos são históricos: os generais, como Kutúzov e Napoleão, o Imperador Aleksandr I que faz as suas aparições em batalha, e recepções como a organizada em honra do príncipe Bragation, felicitando-o pelo seu brio militar em Moscovo, existiram de facto.
Fiz um esquema das personagens na primeira página do primeiro volume, coisa que me ajudou a reconhecer quem é quem, quem se dá com quem e, principalmente, a associar os nomes, diminutivos, famílias e títulos a cada personagem. Foi assim que entendi que Hélène é Elena, e também Liólia. Anna também é Annette, Piotr também é Pétia, e Petrushka, Mária também é Marie, e Macha, Vassili também é Vássia, e Vasska, e por aí fora. Conforme a personagem que toma a palavra, refere-se ao outro de um modo ou de outro. É de pôr a cabeça a andar à roda, mas sinto que toda essa confusão está arrumada no segundo volume. A partir daqui já sabemos distinguir as inúmeras personagens (desisti de acompanhar os cargos militares). Importamo-nos realmente com eles, apesar de tantos e de tão distintos, cada um com a sua responsabilidade no combate a Bonaparte e, em breve, na defesa da mãe Rússia. Esta tradução é muito boa, e sigo sempre as várias notas que ajudam a esclarecer o contexto dos diálogos e da narrativa.
Há trechos de enorme beleza narrativa ao longo deste primeiro volume, em que as personagens são pela primeira vez confrontadas pela brutalidade da guerra.
"Apesar de ainda não ter passado muito tempo desde que o príncipe Andrei deixara a Rússia, já mudara bastante. Na expressão do seu rosto, nos movimentos e no andar já não se lhe notava o antigo fingimento, o cansaço e a preguiça: o ar dele agora era o de uma pessoa que não tem tempo para pensar na impressão que pode causar aos outros () O seu rost exprimia mais concórdia () o sorriso e o olhar eram mais alegres ()"
Não consigo parar de ler, sou apenas vencida pelo cansaço, pela falta de posição e pela necessidade de repouso da vista. Por isso sinto que, se ler o segundo livro ao ritmo do primeiro (coisa que desconfio que hei de ler muito mais rápido, porque estou muito motivada), em duas semanas terei lido metade de Guerra e Paz. Em um mês terei lido o livro completo. E cumpre-se, assim, um sonho que cheguei a arrumar para o lado, por julgar impossível.
Sinopse: Lev Tolstói foi e continua a ser um dos nomes maiores da literatura, e as suas ideologias, a par dos seus escrito, influenciaram sobremaneira o panorama social, político, religioso e literário do século XIX, e daí em diante. Escritor, filósofo, pedagogo e até profeta, o escritor russo foi um defensor acérrimo das minorias e dos mais desfavorecidos, e um dos primeiros a insurgir-se contra a escravatura. Com um percurso de vida tumultuoso, e apesar das muitas perseguições a que foi sujeito, Tolstói encontrou na escrita um refúgio e é de forma sábia que abordou temas tão inquietantes quanto complexos. Embora não haja uma data precisa, sabe-se que foi entre 1865 e 1869 escreveu e publicou aquela que é talvez a sua obra-prima e uma das maiores criações literárias de sempre: Guerra e Paz. Tendo como pano de fundo um cenário de guerra, com a invasão da Rússia por parte das tropas Napoleónicas, esta novela épica apoia-se em episódios ficcionais e históricos sobre aquele país, num momento de profunda convulsão, e surge como uma reflexão sobre a vida humana e a sua frágil existência. Nesta obra grandiosa, as personagens amam, odeiam e lutam, mas acima de tudo anseiam por encontrar o sentido da vida. Tal como elas, também Tolstói se confrontou inúmeras vezes com a sua própria condição enquanto ser humano, refugiando-se a dado momento numa fé e religiosidade profundamente vincadas. Tolstói deixou-nos um valiosíssimo legado literário e o seu nome perfila ao lado de outros grandes vultos como Shakespeare ou Homero.
A presente obra – publicada em quatro volumes – inicia uma nova colecção, intitulada Obras-Primas da Literatura e foi traduzida directamente do russo por Nina Guerra e Filipe Guerra que, pela excepcional qualidade do seu trabalho, venceram o Grande Prémio de Tradução Literária APT/Pen Clube Português.
Sinopse: James Whitehouse é um bom pai, um marido dedicado e uma figura pública carismática e bem-sucedida. Um dia, é acusado de violação por uma colaboradora próxima. Sophie, a sua esposa, está convencida de que ele é inocente e procura desesperadamente proteger a sua família das mentiras que ameaçam arruinar-lhes a vida.
Será que é sempre interpretada da mesma forma? Kate Woodcroft é a advogada de acusação. Ela sabe que no tribunal vence quem apresentar os melhores argumentos, e não necessariamente quem é inocente. Ainda assim, está certa de que James é culpado e tudo fará para o condenar. De que lado estará a verdade? Será James vítima de um infeliz mal-entendido ou o autor de um sórdido crime? E estará a razão do lado de Sophie ou de Kate? Este escândalo — que irá forçar Sophie a reavaliar o seu casamento e Kate a enfrentar os seus demónios — deixará marcas na vida de todos eles.
Opinião:Sinto que este livro tinha imenso potencial, mas nunca chegou a arrancar. A abordagem da autora mata qualquer possível momento de clímax. O modo como as coisas são anunciadas, como a própria acção se desenvolve, em analepses nem sempre claras (sobretudo no início, em que ainda estamos confusos e começamos a saltar entre vários meses do mesmo ano, apenas para espreitar retratos familiares), acaba por roubar o entusiasmo que um livro com um mínimo de mistério teria a oferecer.
Anatomia de um escândaloera, em março, o #7 da Best-seller list doSunday Times, nada a que preste atenção, mas é indicativo do seu sucesso. Ao lê-lo, perguntei-me porquê. Os primeiros sinais de aviso vieram quando me senti entediada de morte com o detalhe do quotidiano das personagens, e a considera-los superficiais - um drama mais explicado do que sentido - perante uma situação tão séria. Dei por mim a pensar "já li isto", logo nas primeiras cem páginas. A sinopse é muito clara: há uma advogada de acusação chamada Kate, convencidíssima de que James Whitehouse é culpado da violação de que é acusado, e há a mulher perfeita, Sophie, que não pode acreditar que o seu marido fizesse aquilo a mulher alguma. Aos capítulos que alternam de personagem (A Kate, na primeira pessoa - porquê?, e a Sophie na terceira pessoa, junta-se uma Holly de 1993.
Achei a própria estrutura do romance atrapalhada. Vários capítulos de Kate na primeira pessoa, a procurar uma proximidade com o leitor, a interpela-lo, intercalada com uma Sophie distante, sobre a qual o narrador divaga, acaba por nos deixar num limbo estranho. Depois surge uma série de capítulos sobre Oxford, aí umas 50 páginas, que são mera palha. Além de palha, são a continuação dos estereótipos já iniciados com as personagens principais. Ora vejamos: James Whitehouse é lindo de morrer, as miúdas atiram-se-lhe aos pés desde a escola - já o sabíamos antes de subir a voz de Holly, porque Sophie não se cansa de expressar gratidão por ter sido a eleita de James -, Sophie é a esposa perfeita que abandonou a carreira para cuidar dos miúdos e que, apesar de vir do mesmo berço de ouro de James, surge crítica quanto às suas amigas da alta, como se houvesse algum motivo para ela ser diferente (o que não faz sentido até ao estalar do escândalo). As crianças são decorativas, servem apenas para ilustrar a família perfeita e para sugerir que James não arriscaria tanto num momento de imprudência. Kate, apesar de ser a personagem melhor retratada, é ridícula. A autora esforça-se para que assim seja. Estava a aceitar mais ou menos bem que a própria considerasse a peruca de juíza pouco atractiva, e ainda os sapatos de fivela, mas fartei-me da descrição do seu corpo. É que a autora quis que a advogada de acusação, Kate, fosse uma espécie de andrógena. O objectivo - e suponho que esteja errado a muitos níveis - é que, não tendo nada de atraente, também não se sentisse atraída. Sendo assim, Kate parece ser a única pessoa imune ao charme e carisma naturais de James. Mesmo aqui, e apesar de serem sugeridos fantasmas no passado de Kate, pois que se fala de uma "reinvenção" logo de início, gostaria que a abordagem fosse diferente. Porquê pintar a sua personagem mais forte com o modelo estereotipado da advogada workaholic, incapaz de ter um relacionamento, de se empenhar na sua vida pessoal, escanzelada devido ao desgaste da profissão e sem qualquer outro contexto na sua vida? Familiar que fosse, uma mãe, um pai? Para mim, o que é imperdoável neste livro é a construção do caso. O núcleo da história é baseado num momento ambíguo, à luz do movimento #metoo e da voz de várias mulheres que vieram apontar o dedo a homens por violação. Falar do assunto é sempre complicado. Um dos subtemas mais complexos é a questão de violação dentro de uma relação. Se um homem (ou uma mulher) insiste com o parceiro, com persuasão física - que dizer da verbal? - e acaba por levar a melhor, sem que o outro quisesse, em efectivo, relacionar-se… Quando pode isto ser considerado violação?
É aqui que a história peca. É um assunto demasiado delicado. Não sei o que sentiram os outros leitores, mas eu senti, ao ler o livro, que o meu entendimento era muito diferente do que, tendenciosamente, me tentavam fazer engolir. E que a Kate, sendo uma advogada tão experiente, deveria ter entendido como o caso era patético. É aqui que reside o problema: a autora fez com que duas pessoas num caso amoroso soem patéticas quando uma diz que foi forçada a sexo tendo deixado claro que não queria ("não aqui"), e que a outra pessoa, com quem já se relacionara várias vezes, inclusive em circunstâncias semelhantes que atiram por terra o "não aqui", entende que tudo aquilo é parte do jogo habitual, da dinâmica da sua relação, "não fosses tão oferecida". Que há a dizer sobre isto? Será plausível que uma simples assistente abrisse a boca, tendo por base uma história tão ambígua que a pinta como adúltera e promíscua, para ver a sua vida sexual e o seu affair com um homem bem relacionado vasculhados, devido ao trauma do breve encontro? Não seria mais humano - não procuro o certo e o errado, mas a possível humanidade da teia deste romance - arrumar para o lado, considerar que foi a gota de água, porque causou desconforto (não diria trauma, pelo menos no caso central do romance), e pegar nisso para esquecer o homem que, de outro modo, já deveria ter deixado ir? Ou será que deitaria a sua carreira e o seu nome por terra para expor um homem quase intocável por causa de um encontro sexual que não correu conforme previra?
Não sei. É tudo demasiado confuso. Em geral, parece-me pouco plausível. A meio do livro já saltava parágrafos inteiros - já não conseguia ouvir nenhum dos intervenientes perguntar de novo quem rasgara as cuecas de renda preta da vítima - e, mesmo aqui, umas cuecas rasgadas significam violação? Que significa isto? Que quando não há roupa rasgada a mulher não foi violada? E como é que ninguém, jamais, no livro inteiro, sugere que a vítima as possa ter rasgado sozinha de propósito para o incriminar? Muito menos me interessava ler sobre a Kate circunspecta na sua sala de advogada, ou sobre a descrição de todos os corredores por onde passavam, ou sobre as suas noites solitárias e atormentadas, às quais se seguiam - para ela e para Sophie, salvo erro - sessões de exercício frenético. Pior: não queria saber de ninguém. Nem da esposa que por fim desenvolve dois dedos de testa, nem do bonito James, nem dos seus ombros largos, nem do seu sorriso auto-depreciativo e da sua amizade com o PM. Também pouco me interessava que a Kate ganhasse ou perdesse o caso.
Esperei um climax durante o livro inteiro. Entendi que era suposto que o climax fosse a revelação dos eventos da noite de 5 de Junho, quando o clube de arruaceiros privilegiados a que James pertencia levou as brincadeiras habituais além da conta. Quando a descrição veio, já estava mais do que desligada. Para mim o livro já tinha morrido há muito, e não havia suporte artificial que mantivesse a minha atenção ligada naquelas pessoas unidimensionais.
Como poderia isto ter funcionado?Mais capítulos sobre James, e menos sobre Sophie a fazer chá. Menos descrição. Menos dia-a-dia em Oxford: é palha. Menos estereótipos, mais atitude. Dar voz à vítima. Para chegar aos leitores, ao seu entendimento, acharia essencial ao menos alguns capítulos onde Olivia explicasse como tudo aconteceu, qual a sua versão dos factos fora da barra do tribunal. Faria mais sentido ainda se James fosse igualmente reflexivo do seu lado. Porque este romance é isso: um mal-entendido. Uma interpretação que diverge, o ténue conceito de consensual. É isto, mas com muita pretensão (gorada) de ser mais. Classificação: 2,5/5*****
Sinopse: A Grande Guerra assola a Europa do início do século XX. Um capitão do Corpo Expedicionário Português encontra-se num campo de prisioneiros alemão, sem documentos que atestem a sua patente de oficial, obrigado a partilhar a vida e o destino dos seus conterrâneos mais pobres. Tem fome, ouve detonações constantes, observa, sonha, procura um sentido para tudo aquilo que o rodeia, tenta terminar o relato de uma estranha história sobre cientistas alemães e gravações de voz, procura desesperadamente o silêncio e, acima de tudo, a paz das coisas simples.
Opinião:Inicialmente havia considerado um 3,5 arredondado para 4, mas conforme sou obrigada a reflectir sobre a narrativa, entendo que não me tocou. É uma pena, porque é um retrato nítido, um close-up aflitivo do que foram as agruras que os portugueses passaram na Frente.
É uma abordagem interessate, na medida em que não é político. A política é o que menos interessa para aqueles homens, cujos corpos e a sanidade são postos à prova durante mais tempo do que deveria ser suportável, e que, no instante em que o autor aponta o seu foco ao momento histórico, já o seu calvário se tornara ensandecedor. É quase um ensaio, um teste. Não procura ser épico, e isso, a nível nacional, parece-me novidade.
A haver uma palavra que o resuma, esta seria fome. Sente-se a fome, como se sente a doença, como se sente o esquecimento, os percevejos, o frio, a lama, a devastação da paisagem, a influenza a aproximar-se. Salvo erro, a data específica em que a acção decorre, nunca é informada. Também não importa, trata-se de um encontro entre dois homens numa estação de comboio; e o incessante palavrear de um deles, que se dissera em tempos silencioso, revela que guarda ainda todos aqueles episódios em si, toda aquela angústia, todos aqueles recados de bons homens que iam perecendo ao seu redor. A narrativa é muito coesa, o livro é muito bem conseguido, um pouco como se o autor o tivesse escrito todo sob o mesmo ânimo, com o mesmo princípio metódico, com a mesma cadência na respiração. Isso é algo que nunca consegui fazer, por isso é uma característica que admiro instintivamente.
Posto isto, o que não gostei no livro?Repetição. Há uma tendência que encontro nalguns escritores nacionais em repetir uma ideia até à exaustão. Talvez neste livro haja razão de ser, e de facto acompanha a psique das personagens, a sua fraqueza física e desgaste emocional, a sua confusão geográfica, temporal, a incerteza. Quase se ouve o espírito a quebrar-se-lhes, mas a verdade é que já em 2007, quando li Cemitério de Pianos, troçava da minha melhor amiga por o ter como seu livro favorito. "A luz na janela, a luz na cortina, a luz no chão, a luz no espelho e a luz no teu olhar", parafraseando. No caso deste romance, é a fome. A fome, o "gravar a sua voz" e, a dada altura, "as margens do rio". Se lesse mais uma vez "Baden-Baden"... A dada altura o discurso tornou-se repetido até ao expoente da loucura, talvez para entendermos como a personagem principal está entediada, como tem a cabeça noutro lado (nos talos, nos nabos, nos piolhos e nos percevejos).
Pareceu-me estar de novo no centro do furacão daquilo que me parece uma tendência muito forte nos autores lusófonos. Achei o discurso corrido difícil de acompanhar às vezes, e devo ter precisado de talvez 2/3 do romance para me ambientar a ele, para começar a distinguir nomes, personagens, temporalidade, ritmo. Ainda assim, e acima de tudo, é um romance que envolve, que nos arrasta para a Frente. Que nos faz questionar o que nos mantém sãos, o que conseguiríamos suportar; as intempéries estão ali todas, a testar-nos a sensibilidade. Mais importante ainda: recorda-nos a heróica resistência dos portugueses em circunstâncias ignóbeis, numa guerra que nunca foi para ser nossa. Classificação: 2,5/5*****
Sinopse: O Terramoto de Lisboa de1531 foi um duro golpe no coração do Império português. E decidiu a história deMaria da Esperança e Rodrigo Montalvão, um amor intenso que desafiou as regrasda corte de D. João III. Numa manhã fria no início do século XVI, chega aPortugal um carregamento de escravos vindos do Congo. Os melhores negros sãoencaminhados para a corte de D. João III, para servir a rainha D. Catarina deÁustria. Entre eles segue Imani, baptizada como Maria da Esperança pelos fradesportugueses. Pela sua inteligência e natural elegância, destaca-se entre osescravos – é ensinada a ler e a aprender a religião católica. O seu mestre é ogramático Rodrigo Montalvão, um nobre de alta condição, que por ela seapaixona. Nasce, entre ambos, um amor intenso e proibido, que é posto à provano dia 26 de Janeiro, quando se dá o grande terramoto de 1531 que causou amorte de mais de 30 mil pessoas e a fuga de milhares de lisboetas, tornandoirreconhecível aquela que era a grande capital do Império, no auge dos Descobrimentos.
É a história de uma paixão controversa,vivida numa corte de riqueza e intriga, em que uma mulher e um homem testam ovalor do amor e da liberdade.
Opinião: Não sei bem o que diga a respeito desta primeira obra da AlexandraVidal. Aliás, tenho até demais a dizer. Por uma vez decidi ignorar os meusinstintos a respeito das obras portuguesas que retratam eventos históricos elê-lo sem ideias pré-concebidas. Começou bem, até, lá nas paisagens do Congo.Mas isso durou três ou quatro páginas.
O livro prometia um amor daqueles entre uma escrava e umnobre da corte, e ainda uma catástrofe natural a interpor-se entre eles. Quemfor lê-lo pelo terramoto – como esta tonta, desengane-se. Se procurarem umdocumentário com alguns pós de ficção – ao nível de uma novela da TVI em que amá desaparece da acção convenientemente no final por ter enlouquecido depois demuito atentar contra a felicidade os principais, e em que estes doisprincipais nunca têm uma conversa de jeito nem nunca chegam a explicar coisaalguma ao outro – então este é o livro indicado para vocês.
O livro também prometia uma grande história de amor. Não sei a que sereferia, já que não é apresentado motivo algum para o amor entre a escrava e ogramático excepto, talvez, que ele gosta delas morenas (embora não o saiba deinício – e por início entenda-se a discussão épica em que ele se recusa aensiná-la, para daí a três páginas já estar orgulhoso dos progressos dela) eque ela se embeiça por ele porque é o único branco próximo e livre a dedicar-lheduas palavras. Algo como “podes pousar ali o livro e sai”.
O livro prometia ainda o inédito de uma escrava a aprender a ler – mas talnão sucede devido à inteligência dela. Aliás, esta personagem principalfunde-se nas pedras das paredes, de tão insípida. Nem isso é apresentado compaixão alguma…
O terramoto apresenta-se assim:
«- Não quero esta coifa de pano de linho, quero a outra de seda (…) Derepente, as portadas de madeira que protegiam as enormes janelas do aposento daguarda-roupa começaram a bater, quebrando os ferrolhos e partindo os vidros dasjanelas»
E então segue-se uma listagem bem tirada de um livro de História sobre oque caiu e o que ficou de pé na cidade. Não há um diálogo com naturalidade: ouestão a passar “sabedoria” e “filosofias” ou estão a debitar factos históricos. Derepente o tempo voa. Os filhos de D. Catarina (rainha) são criançasacabadas de nascer e, meia dúzia de páginas depois (quando começa tudo a voarpara o fim) já têm filhos – já o D. Sebastião está apostado em ir para Áfricaguerrear com os infiéis. A ideia que me deu é que a escritora quis fazertudo em grande e pensou: que se lixe, já agora faço disto um romance épico. Emdez páginas pulo trinta anos e faço disto aqueles amores que nunca chegam bem aconcretizar-se. Já agora meto cá o D. Sebastião, que até foiimportante. Espanta-me que não tenha falado do D. João IV, afinal o homemrecupera o país… era só pular mais oitenta ou noventa aninhos. E da Catarinacasada com o Carlos II, sempre foi rainha de Inglaterra, não? Calma, daqui anada estamos no Sócrates a mudar-se para Paris. A mal ou a bem também teve asua importância na História. Bom, estou a exagerar, como é evidente.
O terramoto ocupa, no máximo, vinte páginas do romance em que a informaçãoé toda debitada. De repente temos mil olhos – já somos o guarda dos escravos, onobre a quem os escravos fogem, somos os escravos, somos as vozes da corte e onão sei quantos que toma conta dos gatos da rainha. Somos tudo e, no instante aseguir ao terramoto já temos o relato completo dos danos e do número de mortos.A propósito… a sério que foram 30 000 pessoas enterradas com orações?! Nãoadmira que, em 1755, o Marquês de Pombal tenha apressado os enterros!
Em termos históricos não encontrei grande coisa a apontar – excepto,talvez, a utilização do termo “gótico” relativamente à escrita por parte dogramático. A minha ideia é que o termo “gótico” só tem realmente adesão noséculo XIX, com os revivalismos, e que antes disso surgiu no século XVI mascomo algo pejorativo. Isto é, à luz do renascimento qualquer arte anteriorseria vista como arcaica - excepto a clássica em que se inspirou - não? A minha questão é: falava-se em caracteresgóticos tal como agora se fala associados sobretudo à Idade Média?
O rei nem chega a ser apresentado ao leitor, parece-me que só surge uma veza dar as mãos à rainha numa sucessão de situações sem grande importânciaaparente. Sucedem-se listas intermináveis de tipos de tecidos e diálogos meioafectados, muito pouco naturais.
As personagens são unidimensionais, até a escrava principal lamenta duasvezes “nunca ter explicado os seus motivos” para uma dada fuga que enceta. Masque motivos? Na altura ela simplesmente se junta a quem foge, sabemos lá nós aocerto o que vai na cabeça dela! E que motivo maior precisa um escravo parafugir? Parece que um longo diálogo sobre o valor da liberdade tinha de ser alipespegado para que o idiota do seu grande amado – que conhece-a tão bem como oleitor, ou seja: nada – a compreendesse.
Não percebi nada do que a autora quis passar com o romance, excepto que aescravatura é feia – asserção defendida sem grandes acrescentos àquilo que é dosaber comum- , e que o terramoto – que se perde ali no meio – foi uma desgraça.Ah, e que o amor vence (?) preconceitos. Bom este não venceu coisa alguma.
Para mim valeu pena lição de História. Como romance...