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Castelos de Letras

Em torno das minhas leituras!

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Em torno das minhas leituras!

#305 FERNANDES, Madalena Sá, Leme

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Opinião: Lido no kobo, não esperei gostar tanto deste «Leme».

Por um lado, até cerca de um terço do livro, senti que a questão da violência doméstica, por vezes subtil e até passiva, exigia uma estrutura mais densa, outro peso na narrativa que nunca mais vinha. O livro parece, em certa medida, escrito por uma mulher muito jovem, à qual falta uma certa profundidade. Parece uma voz mais juvenil, sobretudo porque antevemos o seu presente, sabemos que é adulta, mas talvez o livro só funcionasse com esse tom mais pueril.

No entanto, na segunda parte da leitura, que me agarrou pelo colarinho e que li de um fôlego, percebi que isto não é um retrato da vida da personagem, e que era essa tridimensionalidade da vida da personagem que estava em falta, e que eu continuava a procurar. Refiro-me a relatos do quotidiano em que o tal Paulo, o padrasto agressivo, não fosse a personagem principal. Foi então que me mentalizei de que o livro é sim um relato da vida com um padrasto abusivo, e vi-me obrigada a repescar o meu próprio lema, segundo o qual menos é mais. Portanto, a autora contornou a palha e levou-nos direitos ao padrasto tóxico.

Somos conduzidos pela sua infância, pelo casamento doloroso da mãe, pelas marcas que essa relação abusiva deixou nela enquanto criança e jovem. Apesar de, a tempos, o sentir um pouco superficial, houve momentos que me arrebataram por me identificar e/ou conhecer pessoas próximas que conviveram com este tipo de violência. Comoveu-me várias vezes, essa violência dos gestos bruscos, das portas a bater, dos estalidos de língua, dos objetos a voar e dos pontapés nas coisas. Toca ainda o tema da molestação de menores que, embora muito sucinto, é muito representativo dos casos reais.

Aquilo que lhe valeu as quatro estrelas foi, acima de tudo, o desprensiosismo ao contar a história, mas também os capítulos curtos que me iam catapultando de uma reflexão para a seguinte. A narrativa não tem exatamente um fio condutor - isto é, não está organizada cronologicamente, por exemplo -, mas isso também não faria sentido. Viajamos de evento marcante em evento marcante, em que por vezes o que dói é apenas a rotina numa casa que não é refúgio.

Houve dois ou três episódios que me atingiram realmente, (view spoiler), e acho que foi nesses momentos que senti a história como real, em que me recordei de que não estava simplesmente perante uma obra de ficção.

Não diria que é um portento da literatura, mas é uma boa estreia de uma autora portuguesa: uma voz sem floreados, episódios palpáveis, um enredo contemporâneo com o qual é fácil identificar-nos.
Vale muito a pena pela abordagem que faz a esta questão de amarmos e odiarmos aqueles que nos são próximos, e a como isso nos rasga a alma.

 

Sinopse: Leme é o relato da vivência de uma rapariga que assiste, durante anos, à erosão dos pilares que sustentam as ligações humanas: vê a mãe subjugada à violência do homem com quem mantém uma relação amorosa disfuncional; vive na pele a distorção dos papéis desempenhados por pais e filhos; alimenta-se da solidão para ultrapassar um quotidiano de medo e fúria; disputa um lugar só para si no meio do caos familiar; aprende a reconhecer o consolo das pequenas vitórias; e, por fim, reconstrói-se a si e às suas memórias.

Nenhuma criança conhece de antemão os nomes das coisas, mas todas as crianças reconhecem instintivamente o perigo. Para a protagonista desta história, o perigo tem o nome de um homem, e é sinónimo de obsessão, desequilíbrio, solidão, desamparo, poucas certezas e muitas dúvidas. Leme é um golpe de escrita para regressar à vida. Uma cintilação plena de vida e um soco no escuro que nos engole: eis um livro que aponta diretamente aos limites do bem e do mal.

#301 KEEGAN, Claire, Pequenas Coisas como Estas

Sinopse: FINALISTA BOOKER PRIZE 2022

Vencedor do Prémio Orwell na Categoria de Ficção Política

Estamos em 1985, numa pequena cidade irlandesa. A autora narra-nos a vida de Bill Furlong, um comerciante de carvão e pai de família. Uma manhã, ainda muito cedo, quando vai entregar uma encomenda no convento local, Bill faz uma descoberta que o leva a confrontar-se com o passado e os complicados silêncios de uma povoação controlada pela Igreja.

“Cada palavra é uma palavra certa no local exato. O efeito ressoa e é profundamente comovente.” [Hilary Mantel]

“Um livro belíssimo, que nos faz querer descobrir tudo o que a autora já escreveu.” [Douglas Stuart]

“Uma escritora única na sua geração.” [The Times]

”Um livro incrível.” [Sarah Moss]

“Um livro incrivelmente claro e lúcido.” [Colm Tóibín]

“Uma hipnótica e envolvente novela irlandesa que transcende o país e o seu tempo.” [Lily King]

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Opinião: Tenho um carinho especial por livros pequenos com histórias fortes. Este livro acaba de repente, virei a página e tinha terminado. Fez imenso sentido, e não há qualquer necessidade de adiantar mais explicações ao leitor.

Furlong é filho de mãe solteira e cresceu à sombra de uma senhora influente numa pequena povoação de Waterford, na Irlanda católica. Nessa povoação existe um convento que acolhe jovens caídas em circunstâncias misteriosas. São jovens de fora que, na prática, nada têm que ver com a pequena povoação onde se situa a congregação.

Ao longo das suas poucas (mas intensas) páginas, acompanhamos uma espécie de despertar que vai tomando este homem casado e pai de quatro filhas nos dias que antecedem o Natal. Durante quarenta anos, a grande mágoa de Furlong tem sido não saber quem é o seu pai. Agora, diante da possível realidade que se passa para lá dos portões do convento de St. Margaret's, a angústia de Furlong é pensar que a sua mãe poderia ter sido uma daquelas mulheres - e que nenhum dos autoproclamados cristãos da povoação lhe teria estendido a mão. Perante essa reflexão, Furlong deve decidir se as coisas devem permanecer como sempre foram ou se um simples distribuidor de lenha e carvão pode fazer algo de útil por alguém numa disputa contra uma instituição aparentemente invencível.

Um despertar moral de um homem multidimensional descrito por Keegan na paisagem inóspita de uma Irlanda onde sempre houve fricções religiosas, e onde a Igreja Católica teve um efeito tantas vezes mais nefasto do que conciliador.

Leitura rápida mas cheia de significado.

Classificação: 4/5*****

#294 BAILEY, Tessa, Aconteceu Naquele Verão

Opinião: Sexy e divertido, foi um prazer traduzir este.

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Sinopse: Uma comédia romântica sobre uma socialite de Hollywood que é exilada numa pequena cidade, onde bate de frente com um morador mal-humorado e sexy que pensa que ela não pertence ali.

Piper Bellinger é uma das socialites mais influentes no meio social de Beverly Hills com uma reputação que a persegue... literalmente. Os fotógrafos andam sempre atrás dela à espera que cometa mais uma loucura e, quando se trata de Piper, não é preciso esperar muito.

Quando, numa noite regada de demasiado champanhe, organiza por impulso uma festa que rapidamente fica fora de controlo, o padrasto decide que esta é a gota de água. Tira-lhe o dinheiro e exila-a para Westport, uma cidadezinha costeira com cerca de dois mil habitantes, na esperança de incutir alguma noção de responsabilidade em Piper ao fazê-la assumir o bar deixado pelo falecido pai.

Ao chegar a Westport, conhece Brendan, um pescador corpulento e barbudo (bastante charmoso, por sinal), capitão do seu próprio barco, que está convencido de que ela não aguentará sequer uma semana num sítio que é uma antítese de tudo o que gosta e representa.

Mas Piper está decidida a provar ao padrasto e a Brendan que estão errados e que ela não é assim um peixe tão fora de água! Mesmo que, para isso, precise de cuidar de uma espelunca e morar num apartamento minúsculo...

Nesta divertidíssima e original comédia romântica, a extrovertida rainha da festa e o pescador rabugento são dois opostos que fazem de tudo para não se atrair.
 

Classificação: 4/5*****

#285 TORDO, João, Manual de Sobrevivência de Um Escritor

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Opinião: 

"A literatura nasce de uma necessidade quase atómica de ordenar aquilo que surge catastrófico, de reunir num volume a fragmentada experiência humana".


João Tordo é escritor de profissão. Em 2004 publicou o seu primeiro romance, O Livro dos Homens sem Luz e em 2020 lançou este "manual de sobrevivência" onde compila o conhecimento que obteve ao longo de 16 anos de ofício.

Penso que qualquer escritor ou aspirante a escritor se vai interessar por este livro. Li-o em ebook, o que me permitiu ir sublinhando os pontos cruciais, citações e curiosidades. Achei que as referências são muito acessíveis, pelo menos tendo em conta as minhas leituras habituais.

Identifiquei-me em muitos pontos com aquilo que o escritor expõe - por ex., que um escritor que tenha experienciado dificuldades na vida será, à partida, um escritor mais capaz. Algumas observações pareceram-me muito elucidativas daquilo com que eu própria concordo...

"O papel da ficção não é pedagógico, sob o risco de deixar de ser ficção."


Fora isto, o livro está bem estruturado em capítulos que exploram as expetativas dos aspirantes a autores, os ganhos com livros - para que se desenganem se pensam que vão enriquecer a escrever literatura -, as viagens e residências literárias em torno do ofício, a inspiração ou falta dela, os livros melhor e pior conseguidos, etc. Também parece compartilhar da minha crença de que a literatura de grandes ganhos é a literatura de fenómenos, e que os fenómenos extinguem-se mais ou menos depressa e às vezes às custas da reputação do pretenso autor, que ficará assim rotulado como pertencente a um género pouco literário - a uma fórmula. Enfim, tudo depende do tipo de autor que queremos ser.
Duas notas negativas:
- Discordei do pressuposto mistério sobre o título do romance de J.D. Salinger, The Catcher in the Rye, porque é dos títulos que fazem mais sentido de sempre, perante o enredo.
- A palavra "putativo" surge demasiadas vezes, e causou-me sempre um esgar.

Conclusão: gosto de João Tordo não literário. Sabendo um pouco mais sobre a origem de alguns dos seus livros, talvez venha a ler Ensina-me a Voar Sobre os Telhados ou A Mulher que Correu Atrás do Vento.

Sinopse: O que é um escritor?
Como vive?
Como cria?
Como sente?
Partindo das suas memórias do ofício, João Tordo esboça neste livro uma espécie de manual para todos aqueles que se interessam pelo mundo da escrita sejam escritores a dar os primeiros passos ou leitores curiosos.

Misturando humor e pragmatismo, memórias de vida e conselhos úteis, o autor abre as portas da sua actividade e da sua relação com a literatura e a vida a todos aqueles que experimentam a magia da ficção.

 

Classificação: 4/5*****

#284 NEPOMUCENO, Nuno, A Última Ceia

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Sinopse: Uma nota enigmática é encontrada junto à moldura vazia de um quadro famoso. O ladrão deixou um recado. Promete repetir a façanha um ano depois.

De visita à igreja de Santa Maria delle Grazie em Milão, uma jovem mulher apaixona-se por um carismático milionário. Mas, quando alguns meses depois, é abordada por um antigo professor, Sofia é colocada inesperadamente perante um dilema. Deverá denunciar o homem com quem vai casar-se, ou permitir tornar-se cúmplice deste ladrão de arte irresistível?

Enquanto a intimidade entre o casal aumenta, um jogo de morte, do gato e do rato, começa. E aquilo que ao início aparentava ser um conto de fadas, transforma-se rapidamente num pesadelo, ao mesmo tempo que um plano ousado e meticuloso é urdido para roubar a obra-prima de Leonardo da Vinci.

Requintado, intimista, inspirado em acontecimentos verídicos, A Última Ceia transporta-nos até ao enigmático mundo da arte. Passado entre Londres e Milão, habitado por uma coleção extraordinária de personagens, para as quais a ambição e fama se sobrepõem a qualquer outro valor, este é um thriller sofisticado de leitura compulsiva.
 

Opinião: Esta foi a minha estreia com a obra do Nuno Nepomuceno. Optei por este A Última Ceia apesar de o autor me ter garantido que não há uma sequência obrigatória para compreender a sua obra. Escolhi a obra que envolvia Itália e arte, que são dois temas que casam muito bem e que me fascinam.
Até cerca de 2/3 do livro, e apesar de me interessar o assunto dos quadros roubados e de curiosidades em geral sobre a obra que empresta o título ao livro (por exemplo, que o saleiro na mesa dos Apóstolos representa a traição), avancei devagar. Esperava uma obra ao estilo de Dan Brown, isto é: especial enfoque na ação, e menos detalhe nas personagens. Fiquei assim introduzida ao Nuno, que coloca ênfase no retrato psicológico das suas personagens. O autor manteve a coesão nas ações e mentalidade das suas personagens e, ainda assim, conseguiu surpreender. O último terço do livro foi imparável. Dá-se um twist que me fez admirar instantaneamente a mente por detrás da história e, apesar de não ser um livro de emoções fortes, é um livro tecido com cuidado e minúcia, e as pistas estão lá, na subtileza das entrelinhas.
O próximo a ler do autor será, possivelmente, o Pecados Santos.

#274 CHOPIN, Kate, Meias de Seda

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Opinião: 

”Na sua opinião, o amor era sinónimo de degradação, algo que quase tinha vergonha de confessar a si próprio; e sabia que não tinha forças para o reprimir.”


Kate Chopin (1851-1904) foi uma autora norte-americana que viveu toda a vida no Louisiana. Peguei nas suas Meias de Seda convencida de que se tratava de uma novela sobre o dilema de uma mãe entre gastar, ou não, o dinheiro extra que recebeu consigo ou com os filhos. No entanto, esta edição contém sim uma compilação de contos da autora. Em todos é transversal a delicadeza com que aborda a vontade das mulheres, a sua submissão – ou insubmissão – face aos homens da sua época, e também um cuidado em retratar a vida de famílias crioulas e de origens francófonas (portanto marginais) do Louisiana.

Todos os nove contos aqui compilados (Meias de Seda, Azélie, Uma Mulher de Respeito, O Sonho de uma Hora, Um Cavalheiro de Bayon Têche, Uma Noite em Arcadie, o Bebé de Desirée, O Divórcio de Madame Célestin e No Baile Canadiano) evidenciam o espírito crítico da autora, bem como a sua luta pelos direitos (e a voz) das mulheres. Emocionou-me também o modo como mistura brancos e negros, jogando com a dignidade e os sentimentos e expectativas destas personagens de grande carácter.

O bebé de Desirée foi o meu conto favorito, de tal modo que a autora, que já havia conquistado a minha atenção até então, arrebatou de vez a minha admiração.
De salientar também o modo como se aventura por questões de honra e sexualidade, com certeza escandalosas para a época, mas que evidenciam bem a sua pertinência no mundo das letras na viragem do século.

Classificação: 4/5*****

 

Sinopse: Escritas com humor e uma aguda percepção da psicologia feminina, as presentes histórias revelam-nos uma importante escritora norte-americana, Kate Chopin, cuja obra mais relevante e controversa é o romance Despertar. Ultrapassando muitas das convenções do séc. XIX, Kate Chopin consegue pôr em causa a submissão a que as mulheres, nessa época, estavam sujeitas.

#269 LAWRENCE, D.H., O Amante de Lady Chatterley

350x (1).jpgOpinião: Por volta da página 150, isto é, mais ou menos a metade do livro, estava tão aborrecida que ponderei abandoná-lo. Por sorte, lembrei-me de acorrer aos "Sábados de Plantão" da página de instagram Literacidades, e colocar o meu problema. "Estou cansada do livro, devo abandoná-lo?". O conselho foi no sentido de estabelecer um limite de páginas diário e ir avançando a partir daí. Cumpri no primeiro dia, a custo. Cumpri no segundo, um pouco menos a custo. No terceiro a noção de obrigação desfez-se e li as 128 páginas restantes. Cheguei ao fim, e ainda bem!

"Nunca conheci nenhum homem que fosse capaz de estabelecer uma verdadeira intimidade com uma mulher, de se entregar a ela. Isso sempre foi o que eu quis. Eu não estou disposta a ser o brinquedo de um homem, e muito menos o seu objeto de prazer."

Esta obra do britânico D. H. Lawrence constituiu um escândalo quando chegou às bancas, e não é de admirar tendo em conta que se trata de uma publicação entre-guerras, que terá com certeza chocado a sociedade inglesa e europeia em 1928. A narrativa está impregnada desse desencanto que se seguiu à Primeira Guerra Mundial, altura em que toda uma nação foi chamada a unir esforços por uma causa. Depois do verdadeiro valor de cada um ser testado na guerra, os homens regressam a casa, para os braços das mulheres que agora se sabem capazes de viver sem eles, de poder trabalhar e de conseguirem sustentar-se, e à mediocridade da sua classe. Este livro é muito sobre estratos sociais, sobre a rigidez da hierarquia numa Inglaterra que luta por se manter aristocrática, mas que é cada vez mais burguesa e operária. Fala-se em socialismo, em anarquia, fala-se em operários e em industriais, e à sombra de tudo isso as classes altas tornam-se obsoletas, ridicularizadas, bastiões de tempos idos. Trata-se também de um romance de pessoas desencantadas, profundamente desiludidas com o mundo que habitam, as pessoas que o povoam e o futuro que se adivinha.

Constance Chatterley é uma jovem inglesa relativamente empenhada no seu casamento com um aristocrata paraplégico (e impotente), e a sua vida decorre sem grandes aspirações nem sobressaltos, à excepção da inquietação por não poder ser mãe. Está disposta a aceitar o seu destino e a manter as suas promessas, inclusive a de nunca deixar o marido. Compromete-se assim a viver uma vida conformada e cinzenta, como a vila mineira a algumas milhas, rodeada de natureza luxuriante enquanto ela própria se sente estéril e rarefeita. 

A dada altura, conhece Mellors, o intratável guarda de caça da propriedade, e o mundo desengraçado que se habituou a aceitar - e que a faz definhar - cobre-se de um novo alento. A sua relação com o guarda - tensa, sensual, proibida - torna-se-lhe essencial para que se considere viva, para que experiencie, para que os seus dias valham a pena e, acima de tudo, para cumprir o seu sonho de ser mãe. 

Trata-se de uma obra que, julgo entendê-lo agora, expõe o aborrecimento - o vazio - da vida de Connie, e consequentemente da aristocracia e de toda a humanidade no pós-primeira guerra, ao ponto de levar o leitor à exasperação. Se essa primeira metade do romance não fosse tão sensaborona, a segunda ter-me ia sabido a aventura, a paixão? É como se o pulso de Constance só começasse a bater a meio da narrativa quando, involuntariamente, acaba por se entregar, também em espírito, a Mellors.

Apesar de ter sido publicado em 1928, O Amante de Lady Chatterley permanece moderno no modo como aborda o papel e as relações de homens e mulheres em sociedade, e também a sua interação uns com os outros. O espírito de confissão entre as mulheres contrasta com a hostilidade de classes entre os homens, como se as primeiras procurassem compreensão enquanto os segundos procuram valor, sobrepor-se uns aos outros. Também na sua descrição das relações íntimas - o verdadeiro motivo pelo qual peguei no livro -, é terno e cru, de tal modo que não julgo ter jamais encontrado a intimidade de um casal assim exposta em literatura, e de maneira tão fiel àquilo que reconheço como amor carnal, e que conduz à inevitável união espiritual de duas pessoas alienadas do seu presente e descrentes no futuro. Parece-me que, nesta narrativa, o autor toca no núcleo delicado onde nasce, verdadeiramente, o amor; indissociado da carne e da nossa condição de animais pensantes.

Sinopse: "A história da relação entre Constance Chatterley e Mellors, o guarda de caça do seu marido inválido, é o romance mais controverso de Lawrence e talvez o seu texto mais comovente sobre o amor."

Classificação: 4****/*

#266 DINIS, Júlio, As Pupilas do Senhor Reitor

Opinião: As Pupilas do Senhor Reitor é, talvez, o livro mais famoso e mais readaptado do escritor portuense Júlio Dinis. Publicado em folhetins em 1866, esta história passada numa aldeia portuguesa inominada foi ilustrada pelo artista Roque Gameiro em 1904 e 1905. Segundo Roque Gameiro, que percorreu o norte do país para procurar a paisagem adequada ao enredo, a ação teria lugar em Santo Tirso. Deixo algumas das esmeradas ilustrações de Gameiro, que sem dúvida me ajudaram a visualizar este romance soberbo.

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Tratando-se do terceiro livro de Júlio Dinis que leio este ano, começo a sentir algum cansaço face a um certo estilo de narrativa e a certo conteúdo temático (uma espécie de puerilidade que percorre todo o enredo). No entanto, se a primeira metade do livro considerei algo enfadonha, a segunda recordou-me do porquê de apreciar tanto as tramas do autor.

Este romance conta a história de duas meias-irmãs, Margarida e Clara. Quando ficam órfãs, o reitor da aldeia toma-as sob sua proteção. Ainda que financeiramente independentes, são as meninas dos olhos do reitor, e com ele realizam projetos de caridade, ensinam crianças a ler, levam conforto aos moribundos e etc. Gozam, portanto, da alta estima do povo da aldeia, malgrado sejam as duas muito diferentes.

Clara é alegre, espontânea e imprudente. O seu coração leve impede-a de se proteger de possíveis maldades alheias, e acaba metida numa grande confusão quando, já noiva, acaba por se colocar em situações comprometedoras com outro rapaz da aldeia. Quanto a Margarida, sinto ter já experienciado este espírito feminino noutras obras do autor. Tanto Jenny, de Uma Família Inglesa, como Berta, de Os Fidalgos da Casa Mourisca apresentam as mesmas qualidades. Próxima da canonização, Margarida é abnegada, perdoa facilmente e vive uma vida de recato. Pratica caridade, é adorada por crianças, velhos e moribundos, e é uma espécie de santa da aldeia, sendo inclusivamente assim apelidada por outras personagens em vários trechos. Esta santa, que se sacrifica para limpar a honra da irmã estouvada, é um tipo de mulher que Júlio Dinis parecia muito admirar, e que me suscita algumas reflexões. Primeiro, antevejo um laivo de romantismo nesta figura idealizada: ninguém é tão perfeito, tão doce, tão ponderado, tão apto a deixar-se sofrer e prejudicar, como as Jennys, as Bertas e as Margaridas desta literatura. Por outro lado, agrada-me a ideia, também exposta noutros romances do autor, de que os nossos protagonistas – por muito que amadureçam, por muito que se regenerem, nunca chegam realmente a “merecer” este tipo de mulher. E de facto há uma aura de etéreo em torno destas jovens, penso que talvez por Júlio Dinis ter perdido a mãe muito cedo, e por isso as mulheres terem sido para ele, quem sabe, uma entidade mística de superioridade moral, a salvo da inconstância masculina.

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Gosto sobretudo do retrato de Portugal que, apesar de sitiado nos anos 60 do século XIX, me parece ainda muito recente. Nesta aldeia as mulheres e crianças passam necessidades enquanto os maridos desperdiçam a pouca renda na taberna. O padre é uma entidade espiritual, mas também moral, e há sempre quem o siga de olhos vendados: é ele quem manda os homens para casa, entregarem os parcos soldos à prole. Como as aparições de Lourdes tinham tido lugar em 1858, causando com certeza grande impressão na sociedade portuguesa, havia mulheres que buscavam essa santidade pelo caminho da sacristia e da beatice. Aqui o autor deixa uma mensagem clara: a bondade, a santidade, são coisas distintas da devoção religiosa, o que me sugere que observava com ceticismo os costumes da época.

O que não apreciei neste livro foi, uma vez mais, a volatilidade dos sentimentos da personagem principal masculina, a leviandade com que professam o amor. Em Uma Família Inglesa, Charles é um estouvado até conhecer a jovem mascarada, e a partir daí redime-se sem mais. Em Os Fidalgos da Casa Mourisca é Maurício, uma personagem secundária, quem morre de amores pela nossa protagonista, e de repente esquece-a sem hesitar. Por fim, neste romance, é Daniel quem, depois de escrever versos a outras raparigas da aldeia, e de cercar Clara por não conseguir esquecer-lhe os modos alegres e os olhos negros, descobre que afinal o seu coração pertence a Margarida, à Margarida a quem nunca dedicou uma palavra em três quartos do livro. Resumindo: fiquei emocionada quando ele lhe retribuiu o seu amor de juventude, foi por isso que terminei o livro de um ápice. Porém, não pude deixar de concordar quando ela própria declara que em breve a afeição dele esvoaça para outra moça, os sentimentos deste médico da cidade não são de fiar, e isso desgosta-me neste tipo de romance, porque recai mais no romantismo de décadas anteriores do que no realismo que o autor se propôs a adentrar. O amor tudo redime, e o casamento é final feliz garantido.

De qualquer modo, recomendo vivamente, mesmo pelas gargalhadas que certas cenas me provocaram. Romance incontornável na literatura lusófona.

Deixo link para as ilustrações completas de Roque Gameiro numa edição antiga do romance, bem como estudos para as mesmas. Lindíssimo!

Classificação: 4****/*

 

Sinopse: Romance de Júlio Dinis publicado, em 1866, sob o formato de folhetins no Jornal do Porto, e em volume no ano seguinte. Segundo o próprio autor, numa referência das «Notas», a obra teria principiado a ser escrita em 1863, durante a permanência de Júlio Dinis em Ovar. O título refere-se às personagens femininas do romance, duas meias-irmãs órfãs, Margarida e Clara, de personalidades opostas, adotadas pelo Reitor. A intriga centra-se, contudo, em Daniel, segundo filho do lavrador José das Dornas. Depois de, em rapazinho, ter renunciado à carreira eclesiástica por amor a Margarida, Daniel regressa à aldeia, já médico e completamente esquecido do seu idílio de infância. Para além do Reitor, a obra apresenta uma interessante galeria de tipos rústicos, onde se destacam as figuras de José das Dornas, João Semana, o bondoso médico rural, João da Esquina, o dono da loja, e a sua esposa interesseira, a ti'Zefa, a beata linguaruda, entre outras. Em suma, As Pupilas do Senhor Reitor traduz a vida rural portuguesa da época.

#254 TOLSTÓI, Lev, Guerra e Paz (Vol. III)

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"O homem nada pode alcançar enquanto tiver medo da morte.


Dos três volumes de Guerra e Paz que li até ao momento, este é o que me tocou menos. Por um lado, são 440 páginas em torno da guerra. Estamos em 1812 e Napoleão marcha Rússia adentro com o maior exército jamais visto. Os russos não conseguem detê-lo em Smolensk, nem em Borodinó. Travam-se batalhas sangrentas (que por vezes soam até absurdas, porque os homens, na sua individualidade, entendem-se. São os governantes que, por via de tantos intermediários, acabam por ditar o derramamento de sangue).

Continuamos a acompanhar Rostov, Pierre, Andrei, Natacha e tantos outros pelos momentos decisivos da invasão. O abandono de Moscovo, o caos em que a cidade cai - os fogos, os presidiários e os loucos soltos pelas ruas -, foi, até ao momento, inconcebível para todos. Mas eis que Napoleão chega a Moscovo, e a Rússia cai.

Senti-me menos conectada com este volume porque houve muita estratégia militar, muitos figurões políticos - Napoleão como personagem per se, muita discussão em torno de posições, regimentos, acampamentos militares e etc., etc.

Houve situações caricatas e interessantes, como quando os russos deixam de ver a França como o expoente máximo da cultura na Europa, e decidem começar a obrigar-se a falar russo nos salões da alta sociedade. Só que, desabituados que estão, caem recorrentemente nas expressões francesas, cobrando multas uns aos outros por isso. Sem mencionar que chegam a contratar professores de russo para poderem exprimir-se na sua língua natal. Isto é ridículo, e acredito que fosse precisamente isso que Tolstói procurava mostrar.

Quem sabe, na óptica do autor, sem as invasões de Napoleão não haveria Rússia - pelo menos não haveria uma Rússia única e patriótica, orgulhosa das suas particularidades.

 

Classificação: 4****/*

#251 MAUGHAM, W. Somerset, As Paixões de Júlia

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Opinião: W. Somerset Maugham é o meu autor favorito. Também é possível que já o tenha dito de Steinbeck, e é igualmente verdade. São dois autores com várias obras publicadas, entre contos, romances e novelas, muitos dos quais já tive o prazer de ler. Quando os leio, os seus livros competem apenas com as outras criações deles próprios. Avalio-os pela sua própria escala. No caso de Maugham, durante anos foi também dramaturgo, e terá sido com base nesses conhecimentos da vida nos palcos que escreveu este As Paixões de Júlia, ou, no original, Theatre. É também um gentleman, e das poucas pessoas da História que eu gostaria realmente de ter conhecido. Quem sabe ele me convidasse para a sua casa do Mónaco para tomar chá, e nos tornássemos bons amigos ou, pelo menos pen pals.

Este romance centra-se num casal inglês, Michael e Julia, e no modo como ambos dedicam a sua vida ao teatro. Michael é um homem bem parecido, altruísta apesar de avarento, sem outro talento que não a beleza. Julia é uma mulher de aparência vulgar, mas de génio, cuja vocação a levou a tornar-se a melhor artista de teatro inglesa. Juntos, gerem um teatro e as suas relações com elegância.

Maugham dá voz a Julia, uma mulher que, segundo o filho, representa a todos os instantes. Julia é calculista, caprichosa e egocêntrica. A sua grande tragédia é perder-se sob camadas de fingimento, arriscando-se a nem existir. Usa a sua capacidade de ler os outros, e de os contemplar com o que esperam dela, para ser adorada e aceite em todos os círculos. A sua reputação é imaculada e ela adora ser o centro das atenções. Acompanhamo-la desde a juventude, em que era uma atriz promissora, enamorada por Michael, até aos seus 46 anos, altura em que, assustada pela possibilidade de estar a envelhecer e a perder a admiração de que goza há tanto tempo, se deixa envolver num caso desesperado com um jovem contabilista que a admira cegamente.

Apesar de a primeira metade do livro não oferecer grandes emoções, e o romance ostentar a frivolidade da própria protagonista, na segunda parte o autor valeu-se do seu conhecimento inigualável da natureza humana para nos surpreender. Julia é apanhada nos seus exercícios de fingimento, o seu amante talvez não lhe seja assim tão devoto e o filho, que considera insípido, talvez seja a única pessoa que a vê sob todas as camadas de que o teatro a revestiu.

"Não conheces a diferença entre verdade e fingimento. Estás sempre a representar. Em ti é uma segunda natureza. Representas quando temos uma festa em casa. Representas com o pai, representas comigo. Comigo fazes o papel da mãe carinhosa, tolerante e célebre. Não existes, não passas dos inúmeros papéis que interpretaste. Interroguei-me muitas vezes se terá alguma vez existido uma Julia Lambert ou se nunca foste mais do que um veículo para todas essas pessoas que fingiste ser. Ao ver-te entrar numa sala vazia, senti por vezes vontade de abrir a porta de repente, mas tive medo de não encontrar ninguém."


Mais uma viagem inesquecível pela pena do meu adorado Maugham.

Sinopse: Julia Lambert está no auge do seu sucesso: é considerada a maior actriz inglesa do seu tempo. No palco, é uma verdadeira profissional, dominando totalmente as suas emoções, e as suas actuações são arrebatadoras. Na vida real, está cansada do marido e é bastante menos disciplinada. Quando um tímido e jovem fã a cobre de atenções, Julia fica inicialmente divertida, mais tarde entusiasmada pela sua persistência e, por fim, louca e perigosamente apaixonada… A sua vida, até então aparentemente perfeita e imperturbável, vai sofrer uma viragem irreversível.

Ainda que Maugham seja preferencialmente aclamado enquanto romancista e escritor de contos, foi enquanto dramaturgo que ele conheceu inicialmente o sucesso. O presente romance é um testemunho desse seu entusiasmo pelos palcos.

Classificação: 4****/*