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Castelos de Letras

Em torno das minhas leituras!

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Em torno das minhas leituras!

#303 SILVA, Filipa Fonseca, E Se eu Morrer Amanhã?

Opnião: e-se-eu-morrer-amanhaSL48742-scaled.jpg"(...) É cada vez mais difícil lidar com um corpo que falha. Mais comprimidos, mais uma operação, um coração mecânico, uma válvula aqui, uma placa de titânio ali, a carne macerada, os ossos em franca erosão, tudo preso pela ciência da longevidade e por peças impressas em máquinas 3D, como se a morte não fosse parte da vida, mas, antes, uma sentença adiável, até se atingir o limite do conhecimento humano, que, como se sabe, é impossível, visto que este é como o universo e a estupidez..."


Depois de um longo jejum de leitura - só tenho lido o que estou a traduzir -, decidi apostar no último livro da Filipa Fonseca Silva, porque a sinopse promete uma viagem a lugares que nunca tinha explorado na literatura: a sexualidade geriátrica.

Ultrapassada uma certa resistência inicial, e auxiliada pelo tacto da autora, que nos conduz por esse mundo em que nunca me tinha permitido pensar com sensibilidade e um toque de humor, aventurei-me na viuvez da Helena.

A Helena é uma octogenária que, apenas depois da morte do marido, começou a saciar a sua curiosidade quanto ao mundo do sexo. Na exploração da sua sexualidade, tem o seu primeiro orgasmo aos 70 anos, e essa descoberta desperta-a para tudo aquilo que nunca fez e que não quer morrer sem fazer. E se eu morrer amanhã? torna-se o seu lema e, na sua jornada de descoberta, acaba por ter ainda algumas coisinhas a ensinar aos filhos e à neta. Gostei acima de tudo da relação da Helena com a neta, mas também da abordagem ao sexo como um ato de companheirismo, de confiança, de exploração e de partilha sem preconceitos. Gostava tanto que a Helena fosse minha avó <3

Acabei este livro abraçada a um presente inesperado: a minha vida não vai acabar aos 50, nem aos 60. Se calhar, nem aos 90. Aconselho vivamente este livro para refletirmos com leveza - mas pertinência - em assuntos que nunca nos ocorreram, e que agora vão lançar um novo prisma sobre a vida e as suas infinitas possibilidades.

 

Sinopse: Helena é uma viúva de setenta e nove anos aparentemente pacata. Vive com o gato num apartamento, independente dos filhos e netos adultos, gozando de ótima saúde física e mental. Até ao dia em que, por acidente, pega fogo à sala de estar.

Obrigada a mudar-se para casa da filha, que começa a questionar a sua sanidade, acaba por revelar um segredo que deixará toda a família boquiaberta: afinal, tem uma vida sexual ativa. Muito ativa.

A partir desta confidência, Helena conta-nos as suas aventuras amorosas e o lema de vida que adotou desde a morte do marido, com quem partilhou mais de quatro décadas de descontentamento.

E se eu morrer amanhã? é um romance hilariante, que nos leva a refletir sobre os preconceitos em relação às mulheres mais velhas e o enorme tabu em torno da sua sexualidade. É também uma luz de esperança, iluminando a ideia de que nunca é tarde para descobrir o que nos faz feliz.

#297 HUNTER, Madeline, O Mestre e a Aprendiza

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Sinopse: No momento em que Rhys vê Joan no mercado a vender as suas delicadas peças de cerâmica, sente-se enfeitiçado. Não podia imaginar que, poucos dias depois, viria a salvar a mesma jovem da tortura de um povo impiedoso, disposto a castigá-la por um crime que não cometeu. Com ternura, cuida das feridas do seu corpo e da sua alma, e vontade não lhe falta de fazer muito mais…

Joan não lhe revela que em tempos viveu uma vida mais próspera. Por força das circunstâncias, trabalha agora às ordens de um amo, mas não desistiu de vingar os crimes que arruinaram a sua família. Quando descobre que Rhys se encontrou com o seu empregador e comprou o seu contrato de aprendiza, Joan fica furiosa, mas está decidida a não sucumbir aos encantos do belo homem. O seu corpo, porém, pede o contrário…made conseguirá ela evitar ser subjugada pelo forte desejo que sente?

 

Opinião: Há muitos anos li outros livros que agora sei pertencer a esta série "Medieval" - [book:Casamento de Conveniência|7856911], de que gostei bastante, [book:O Protector (Medieval Series|11195030], [book:Mil Noites de Paixão (Medieval Series|13361134], de que não gostei tanto.

Volvidos tantos anos, volto a apreciar este tipo de enredo por parte da autora. Temos conspirações na corte, golpes de Estado, um ambiente muito bem criado e cheio de pormenores históricos. Li algures que a autora é Professa de História, o que me parece bastante compreensível.

Neste romance, temos outra história madura de duas personagens com substância, cujos objetivos e interesses na vida vão muito além da paixão que se desenvolve ao longo das páginas, mas chegam a ser postos em causa pela mesma. Gosto de personagens com várias camadas, complexas, que não se entregam com facilidade e que vão evoluíndo ao longo da narrativa. Destaco o tom quase poético - e espiritual - que o livro alcança quando a autora descreve a dedicação que os dois protagonistas sentem pela sua arte. Ele esculpe em pedra, ela faz figurinhas de barro / argila. Figuras religiosas às quais imprimem a humanidade possível. É a catarse que essa arte lhes oferece que é comovente e palpável - percebe-se que a autora investiu bastante na construção emocional dos protagonistas.

Joan, a Ceramista, e Rhys, o maçon, são duas personagens com uma solidez histórica muito interessante, e o romance (bem como as partes picantes) está bem desenvolvido. É positivo que se crie uma história de amor ambientada na Idade Medieval sem que a mesma grite <i> machismo</i>. Essa contemporaneidade do romance é um feito, nem sempre bem conseguido noutros volumes, inclusive da mesma autora.

Classificação: 4/5*****

#296 HUNTER, Madeline, Alto Moreno e Provocador

Opinião: Gostei muito desta abordagem da Madeline Hunter ao romance histórico-erótico. Por fim, a donzela não é virgem, nem indefesa. Não há mal-entendidos, não há diz-que-disse, não chega sequer a haver mentiras. Transparente, com os dilemas interiores essenciais ao enredo.

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Sinopse: Ives, filho de um duque, é um advogado de renome. Dedicado e imperturbável, consta que é apenas na intimidade que satisfaz os seus apetites mais insaciáveis. Quando Padua Belvoir tenta contratá-lo para defender o pai dela, é com espanto que descobre que ele já está a trabalhar no caso… mas como advogado da acusação!

Para Padua trata-se de um golpe terrível. Na sua luta para provar a inocência do pai e salvá-lo da forca, rapidamente percebe que Ives não só não a poderá ajudar, como é o seu mais temido adversário… quanto mais não seja pelo seu olhar arrasador, que a deixa tentada a ceder-lhe… tudo.

Alto, Moreno e Provocador apresenta-nos a mais um irmão prestes a sucumbir à flecha de Cupido… Trata-se de Madeline Hunter no seu melhor!

Classificação: 4/5*****

#292 HUNTER, Madeline, Nobre e Poderoso

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Sinopse: Suspeito do assassinato do irmão, Lancelot (Lance) Hemingford, duque de Aylesbury, não vê outra solução senão o anonimato. Desgostoso, o jovem troca a vida rebelde de Londres pela quietude do campo. Mas assim que surge uma oportunidade de limpar o seu nome, ele não hesita. A única coisa que tem a fazer é propor casamento à sobrinha de um vizinho… Tarefa fácil e potencialmente interessante, pois Lance não resiste ao desafio de seduzir uma donzela relutante.

Marianne Radley, que depende do tio para sobreviver, vê-se agora encurralada. A jovem não tem outra alternativa que não a de aceitar a mão de Lance. Mas Marianne tem um plano: tenciona descobrir os segredos mais sórdidos do futuro marido e expô-los ao mundo. Este seria, de facto, um plano infalível. Mas para o levar a bom termo, ela terá de ser totalmente imune aos encantos de um duque devasso… e encantador.

Depois de Uma Reputação Perigosa e Alto, Moreno & ProvocadorNobre & Poderoso vem completar a série Os Libertinos, uma trilogia plena de intriga e paixão.

Opinião: Há muitos anos que não lia nada desta autora. Gostei muito de dois dos seus livros, e depois cheguei a odiar vários outros. Desisti. Vendi os livros e, se não fosse o Kobo, nunca mais haveria de lê-la. Só traduzi dois livros na vida, mas começo a ler as traduções à luz daquilo que aprendi com as minhas. Em suma, a tradução está muito má no início, tive de reler algumas frases, houve desacordo de tempos verbais e uma organização frásica que embrulhava um bocado o sentido das palavras. Parece-me que às vezes complica-se para tentar dar um ar mais erudito aos romances históricos, mas neste género só procuramos experiências sem espinhas. Com o evoluir da história, a narrativa tornou-se mais fluida, cheguei a ler frases bem bonitas. Às vezes até franzia o sobrolho e perguntava-me mas isto é Madeline Hunter? Diria que é ela em ótima forma, porque houve algumas observações simples sobre a vida e a natureza, e também momentos de ternura entre as personagens principais, que muitas vezes não têm lugar neste tipo de livro porque o que se procura é sempre conflito e emoções fortes.

Neste livro não há desrespeito, mal-entendidos nem discussões entre as personagens principais. Gostei muito disso, porque odeio enredos assentes em mal-entendidos, em má comunicação e em assunções absurdas. Acho que o amor, para ser credível, tem de envolver respeito, e por isso achei muito bonito o modo como a relação dos dois evolui. É um amor construído - adoro essa abordagem do amor construído, e torço bastante o nariz a amores à primeira vista. Só não adorei um pequeno pormenor do final, em que, por não haver conflito entre as personagens principais, a autora inventa um ali meio à pressa para os precipitar para a conclusão final de que não podem viver um sem o outro.

Enfim, era o que precisava para passar o tempo na cama com o covid e o oxímetro.

Classificação: 4/5****

#282 TORDO, João, Manual de Sobrevivência de um Escritor

Ou o pouco que sei sobre aquilo que faço

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Sinopse: O que é um escritor? Como vive? Como cria? Como sente?
Partindo das suas memórias do ofício, João Tordo esboça neste livro uma espécie de manual para todos aqueles que se interessam pelo mundo da escrita sejam escritores a dar os primeiros passos ou leitores curiosos.
Misturando humor e pragmatismo, memórias de vida e conselhos úteis, o autor abre as portas da sua actividade e da sua relação com a literatura e a vida a todos aqueles que experimentam a magia da ficção.

Opinião: 

"A literatura nasce de uma necessidade quase atómica de ordenar aquilo que surge catastrófico, de reunir num volume a fragmentada experiência humana".


João Tordo é escritor de profissão. Em 2004 publicou o seu primeiro romance, O Livro dos Homens sem Luz e em 2020 lançou este "manual de sobrevivência" onde compila o conhecimento que obteve ao longo de 16 anos de ofício.

Penso que qualquer escritor ou aspirante a escritor se vai interessar por este livro. Li-o em ebook, o que me permitiu ir sublinhando os pontos cruciais, citações e curiosidades. Achei que as referências são muito acessíveis, pelo menos tendo em conta as minhas leituras habituais.

Identifiquei-me em muitos pontos com aquilo que o escritor expõe - por ex., que um escritor que tenha experienciado dificuldades na vida será, à partida, um escritor mais capaz. Algumas observações pareceram-me muito elucidativas daquilo com que eu própria concordo...

"O papel da ficção não é pedagógico, sob o risco de deixar de ser ficção."


Fora isto, o livro está bem estruturado em capítulos que exploram as expetativas dos aspirantes a autores, os ganhos com livros - para que se desenganem se pensam que vão enriquecer a escrever literatura -, as viagens e residências literárias em torno do ofício, a inspiração ou falta dela, os livros melhor e pior conseguidos, etc. Também parece compartilhar da minha crença de que a literatura de grandes ganhos é a literatura de fenómenos, e que os fenómenos extinguem-se mais ou menos depressa e às vezes às custas da reputação do pretenso autor, que ficará assim rotulado como pertencente a um género pouco literário - a uma fórmula. Enfim, tudo depende do tipo de autor que queremos ser.
Duas notas negativas:
- Discordei do pressuposto mistério sobre o título do romance de J.D. Salinger, The Catcher in the Rye, porque é dos títulos que fazem mais sentido de sempre, perante o enredo.
- A palavra "putativo" surge demasiadas vezes, e causou-me sempre um esgar.

Conclusão: gosto de João Tordo não literário. Sabendo um pouco mais sobre a origem de alguns dos seus livros, talvez venha a ler Ensina-me a Voar Sobre os Telhados ou A Mulher que Correu Atrás do Vento.

Classificação: 4****/5

#279 QUINN, Julia, Dez Coisas que Eu Amo em Você

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Custa-me bastante ler em português do Brasil, mas esta saga de ler um primeiro livro na íntegra no e-reader levou-me a esta edição da Arqueiro, da Julia Quinn. Confesso que até foi uma leitura bastante agradável. Comecei a lê-lo com algum cansaço por volta das 2h da manhã e por volta das 4h30 pousei-o, terminado. Ah, como me ri!

Opinião: Ontem apeteceu-me ler algo ao estilo Bridgerton, e e-reader para que te quero! Às quatro da manhã tinha terminado a leitura.

Julia Quinn domina, além dos ingredientes base para este tipo de história, o humor. É o humor que me mantém pregada às páginas, e que me faz acreditar na química entre as personagens. E que química!

Sebastian Grey regressou da Guerra Peninsular com alguns traumas, nomeadamente insónias. Sem outra perspetiva de futuro que não herdar o condado de um tio asqueroso, acaba por expiar os seus fantasmas e conseguir os seus rendimentos da escrita.

Numa noite, sentado num cobertor no bosque, uma jovem muito desgostosa com o seu casamento arranjado tropeça no sonhador Grey, e puff há borboletas e foguetes.

É aqui que a autora espalha magia como ninguém... já li tantos livros do género, mas ainda assim consegue introduzir novos ingredientes, emprestar espontaneidade às personagens e pôr-me a rir e a torcer pelo casalinho principal quase do princípio ao fim.

Apaixonei-me pelo Mr. Grey, pelo seu jeito teatral e cavalheiresco, mas também pelo modo como a autora permitiu que vissemos os sentimentos a nascer nele. Annabel Winslow também é uma boa personagem, mas acaba por não ser tão rica quanto o Mr. Grey. (A autora faz questão que nos apaixonemos pelos seus heróis).

Para terminar, gostei muito de uma coisa: por uma vez, o estatuto social não importou. Quer dizer, importou, mas para toda a gente menos para o casal principal. Por uma vez, saímos da aristocracia e entramos nos burgueses, que eram obrigados a ter ideias para se sustentar.

Belo! Divertido! Impulsivo!...
...Não posso fazer isto todas as noites.

Sinopse: Annabel Winslow está em uma grande enrascada. Ela acabou de chegar a Londres para participar de sua primeira temporada e já chamou a atenção do conde de Newbury, que está atrás de uma mulher que lhe garanta um herdeiro.
Com seus quadris largos, Annabel parece especialmente fértil, o que faz dela a candidata ideal. O problema é que o conde tem no mínimo 75 anos e ainda por cima é um grosseirão inveterado.
Certamente ela não tem nenhuma vontade de se casar com ele, mas sente que não tem escolha. Seu pai morreu há pouco tempo e deixou a família inteira, incluindo os sete irmãos e a mãe de Annabel, praticamente na miséria.
Então, durante uma festa, ela conhece Sebastian Grey, o charmoso sobrinho do conde. E de repente se vê cortejada não apenas pelo velho assanhado, mas também pelo irresistível e misterioso jovem.

Agora ela precisa decidir entre se casar com um homem que acha repugnante, e com isso garantir o futuro de sua família, e seguir o próprio coração, dando a si mesma a chance de um final feliz.

#248 CARVALHO, Rodrigo Guedes de, Margarida Espantada

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Opinião: (Em e-book)

As famílias amaldiçoadas...

Já Tolstoi escreveu, a abrir o seu aclamado romance "Anna Karenina", que “As famílias felizes são todas iguais, as infelizes são-no cada uma à sua maneira.” Devo confessar duas coisas: primeiro, que este é o primeiro romance que leio da autoria do Rodrigo Guedes de Carvalho, segundo que o primeiro ponto se deve apenas ao meu enorme receio de, admirando-o tanto como profissional, me decepcionar amargamente com a literatura que lhe sai das mãos.

Avanço com uma terceira confissão: até meio da leitura, estava convencida que lhe daria um quatro, na melhor das hipóteses. E apenas porque, entre uma escrita que não aprecio por aí além, por quebrar com aquilo que diria ser "a escrita clássica", aquela mais polida onde certos vocábulos e maneirismos não têm lugar, surgem relances de pensamentos admiráveis. De vez em quando parava para digerir um ou outro trecho do livro. As temáticas ali contidas foram-se enredando mais e mais numa narrativa que, de início, prometia alguma simplicidade (até porque se trata de um livro relativamente pequeno). No final, fiquei com a sensação de ter conseguido acompanhar a premissa que o autor se propôs a defender ao escrever esta obra, que acredito que lhe tenha vindo dos recantos mais obscuros da sensibilidade.

"Margarida Espantada" é uma história de família, daquelas que sempre me fascinam. Uma das minhas temáticas favoritas na arte (e, sobretudo, na literatura) é essa evidência de que as famílias são um fluxo orgânico vindo lá de trás, não se sabe bem de onde, com uma carga em parte exposta, em parte oculta, e que se dirige sabe-se lá aonde. Mexendo apenas com duas gerações de uma família que parece amaldiçoada (os Duval), o autor fez um retrato intimista daquilo que terá sido a infância dos quatro irmãos num casarão em Colares, e de como esses acontecimentos os moldaram na relação uns com os outros, na relação com os pais, nas perspectivas de futuro e no modo como eles mesmos se jogaram à vida.

O romance aborda questões delicadas, como violência doméstica, alcoolismo e doenças mentais. Pode parecer uma carga demasiado pesada para um livro tão pequeno, e é-o, mas é nisso que o livro se supera: faz com que tudo isto seja uma só coisa - a maldição das famílias infelizes, em que o sofrimento e as frustrações levam a vícios, que por sua vez levam a violência, que por sua vez molda carácteres, causa psicoses, destrói gerações.

Um dos maiores desafios que experiencio ao ler livros de autores nacionais, é o de me abster do facto de aquilo se tratar de um livro - isto é, o trabalho de alguém, e de me concentrar na história que me proponho viver ao escolher lê-lo.. Até meio do romance, tinha muito presente que aquilo era tudo saído da mente do RGC, chegava a ouvir entoação da sua voz a recitar-mo - cheguei a irritar-me com os nomes das personagens - Margarida Rosa, Maria do Carmo, Ana Teresa, Manuel Afonso, António Carlos, Isabel Rita, Sara Lúcia, Aida Vanda e tantos outros com primeiro e segundo nome, todos eles desencontrados, que a cada novo nome me vinha a irritação de pensar que este narrador podia ter escolhido uns nomes mais aleatórios, só para eu acreditar que estas pessoas existem mesmo.

O livro ganha alento no último quartel: foi aí que se encerrou abruptamente, atrevendo-se a deixar pontas soltas para o leitor unir (como leitora, adoro que um autor me considere capaz de somar 2 + 2), e tornou-se muito sensitivo, muito angustiante. Acredito até que funcionaria bem na prateleira dos thrillers: para mim isto seria um thriller bem escrito. Prefiro mistérios em torno de famílias com sumo em torno das vítimas e dos criminosos do que aqueles episódios do CSI por escrito em que a génese do romance é a vida privada (tantas vezes até romântica) dos investigadores. Aqui, o autor deu-se ao trabalho de criar bons retratos psicológicos das vozes que povoam o seu romance, e de torná-las tanto vítimas quanto perpetuadores; em suma - humanos. De salientar ainda que é assim que, pessoalmente, distingo os bons romancistas: a pertinência dos espaços imaginados pelo autor, a escolha do local onde a história se desenrola, influenciada pelas características do ambiente onde se vê inserida... Pronto, é isto. "Margarida Espantada" só poderia passar-se em Sintra, e em nenhum outro lugar.

Um livro que explica bem esse dominó que é a vida das pessoas. Chamemos-lhe karma, Samsara, tudo o que vai, volta. Toda a dor infringida paga-se, e todas as famílias onde há maus fígados acabam por se precipitar para a própria extinção.
 
Sinopse: Margarida Espantada é sobre família. Sobre irmãos. É sobre violência doméstica e doença mental. É um efeito dominó sobre a dor. A literatura é um jogo do avesso. Os bons romances são sempre sobre amor, e os melhores são os que fingem que não são. Não devemos recear livros duros. As histórias que mais nos prendem trazem uma catarse que nos carrega as mágoas, personagens que apresentam as suas semelhanças connosco. Gosto da ficção que é número arriscado de circo, com fogo e espadas, que nos faz chegar muito perto da queimadura que não vamos realmente sentir. Mas reconhecemos. 
 
Classificação: 5/5*****

#238 ACCIAIUOLI, Filippo, O Terrível Terramoto da Cidade que foi Lisboa - Correspondência do Núncio Filippo Acciaiuoli: Arquivos Secretos do Vaticano

Sinopse: O cataclismo que desabou sobre a cidade de Lisboa no dia 1 de Novembro de 1755 anda ligado a uma memória indelével da história. De tão grande tragédia se faz eco na correspondência do Núncio Apostólico, que desde o dia 4 desse mesmo mês envia semanalmente para Roma informações dirigidas à Secretaria de Estado e ao Papa, às quais se devem acrescentar as cartas endereçadas ao Cardeal Secretário, que era então o Cardeal Silvio Valenti Gonzaga, e aos familiares.


É essa correspondência, depositada no Arquivo Secreto do Vaticano, que Arnaldo Pinto Cardoso traduz para português, dando a conhecer relatos vivos e quase diários das aflições vividas em Lisboa e das reacções que se fizeram sentir no Vaticano, numa obra ilustrada com iconografia da época.


Monsenhor Arnaldo Pinto Cardoso é natural de Penso, Sernancelhe. Sacerdote da diocese de Lamego, licenciou-se em Teologia pela Pontíficia Universidade Gregoriana (1967-69) e em Sagrada Escritura pelo Instituto Bíblico (1969-72), de Roma. Foi director do Serviço de Pastoral do Secretariado do Episcopado e professor na Universidade Católica. Conselheiro Eclesiástico na Embaixada de Portugal junto da Santa Sé. Prelado de Sua Santidade. É sócio da Academia Portuguesa de História. Autor de diversas obras, entre as quais Santuário da Lapa – História e Tradição (Alêtheia Editores, 2007), integrou ainda a equipa de tradutores da Bíblia Sagrada, em 1998.


Opinião: Um bom apanhado de cartas trocadas entre o Núncio Apostólico em Lisboa e o Vaticano, às quais juntou anexos de descrições do desastre elaboradas por indivíduos de nacionalidade espanhola, francesa e italiana. 

A experiência do Núncio é ilustrativa de como a catástrofe foi democrática: não poupou ninguém. A miséria atravessou-se no caminho de todos. Artistas estrangeiros a servir a corte portuguesa, embaixadores estrangeiros, a nobreza portuguesa que gozava a opulência do barroco até vésperas do desastre, a casa real e os seus projectos magnânimos, como a Ópera de Lisboa, o seu palácio real na Ribeira, a sua residência em Belém, tudo engolido pelo sacudir da terra, pela voragem das águas, pelo castigo das chamas. Estas cartas, em particular, focam-se na desgraça das elites, pois que o Núncio priva com o rei em pessoa. Assim ficamos a saber como eram as "tendas" e as "barracas", qual o espírito geral no governo aquando da catástrofe, e como Carvalho e Mello surgiu no leme das operações, cumprindo (e até antecipando) as vontades de D. José.

É um bom ilustrador do que se seguiu ao terramoto, de como se viveram os dias e meses que se seguiram, quais as dificuldades, que estados vieram oferecer apoio, quais os danos específicos que o os elementos, em fúria, inflingiram à população. Porém, a sua visão limita-se a Belém, que, apesar de tudo, não é onde se concentrava a maioria da população (portanto onde o horror terá sido maior), e o que se passa no coração da cidade, onde os danos foram apocalípticos, raramente é mencionado, e apenas o é como relatos de terceiros/notícias a que teve acesso.

As 9h30 da manhã de 1 de Novembro de 1755 foram apenas um anúncio impiedoso do que estava por vir. Estes testemunhos exploram as ondas sísmicas que se lhe seguiram, a destruição do fogo, a inquietude do mar, os moribundos e os seus gemidos sob pilhas de entulho, as estradas intransitáveis, as inundações (inclusive de hospitais trazendo a morte aos enfermos), as sepulturas colectivas, as penitências, as procissões, o horror generalizado.

Na primeira pessoa!

Classificação: 4****/*

#237 MOLESKY, Mark, O Abismo de Fogo


Sinopse: No Dia de Todos os Santos, em 1755, um sismo abalou a terra, desde o fundo do oceano Atlântico até às costas ibérica e africana. No caminho estava Lisboa, então uma das cidades mais ricas do mundo e capital de um vasto império. Em minutos, parte da cidade transformou-se em ruínas.Mas isto foi apenas o começo. Meia hora depois, um maremoto originado pelo terramoto atingiu o litoral português, provocando uma enchente no rio Tejo, arrastando milhares de pessoas para o mar. No final do dia, ondas gigantes haviam feito vítimas em quatro continentes.Completando a destruição, uma tempestade de fogo engoliu quase tudo o que restava da cidade, atingindo os sobreviventes com temperaturas que excederam os 1000 ºC. As chamas prolongaram-se por várias semanas.Tendo por base novas fontes, as últimas descobertas científicas e um profundo conhecimento da história da Europa, Mark Molesky dá-nos um relato do Grande Desastre de Lisboa e do seu impacto no Ocidente, em que se inclui a descrição do primeiro movimento de ajuda humanitária mundial, do aparecimento de uma ditadura em Portugal (que, apesar de tudo, serviu para modernizar o país) e do efeito da catástrofe no Iluminismo europeu.Muito mais do que uma crónica sobre destruição, O Abismo de Fogo é um emocionante drama humano onde surgem personagens inesquecíveis, como o marquês de Pombal, que encontra no caos o caminho para o poder, ou Gabriel Malagrida, o carismático jesuíta que acabou por ser morto devido à sua interpretação do terramoto como castigo divino.



«As batalhas perenes da humanidade entre a fé e a razão sempre foram postas à prova nos momentos de calamidade. O terramoto de 1755 foi o primeiro e mais dramático desses momentos na era moderna, e aguardava pacientemente o seu historiador. Tem finalmente, em Mark Molesky, o seu brilhante analista.»[Simon Schama]

Opinião: Li atentamente cerca de 70% do livro, as partes que se referiam aos vários rostos do desastre e da reconstrução, surpreendida pela horda de novidades sobre esta época tão complexa que o livro oferece. 

O terramoto, os seus meandros e implicações, o sol a nascer Às 06h02 desse dia fatídico, e a pôr-se às 17h47, para lá de nuvens de fumo e cinzas, fogo e gritos de desalento. Esses são os detalhes que me interessam. O livro explora e complementa muitas outras fontes. É uma obra descomunal de pesquisa e interpretação de um momento complexo que perdurou no tempo, que marcou a civilização europeia, que permitiu a ascensão de um déspota ao governo de Portugal, e que trouxe Portugal, do modo mais violento possível, para a era das luzes.

(Passei por cima das explicações científicas, isto é: daquilo que hoje se sabe sobre a possível origem deste terramoto, e também da parte do processo dos Távoras e de outras medidas do Marquês, no Douro, Coimbra, além-fronteiras, etc.).


Classificação: 4****/5

#232 HARRIS, Joanne, A Menina que Roubava Morangos

Sinopse: O coração de Vianne Rocher, a encantadora e inquieta maga do chocolate, parece ter finalmente serenado. A vila de Lansquenet-sous-Tannes, que em tempos a rejeitou, é agora o seu lar. Com a filha mais velha, Anouk, a viver em Paris, Vianne dedica-se por inteiro à chocolaterie e a Rosette, a filha mais nova, a sua menina "especial". A acompanhá-las estão os seus amigos do rio, os extravagantes vizinhos, e o circunspecto padre Reynaud. Mas o vento, quando sopra, traz sempre mudanças… E estas começam com a morte de Narcisse, o temperamental florista. A vila fica em alvoroço pois Narcisse deixa não só uma surpreendente herança a Rosette, mas também uma inesperada confissão.

Nada voltará a ser como dantes. E quando uma loja nova abre onde antes se dispunham as magníficas flores de Narcisse, tudo parece um prenúncio de algo: um confronto, alguma turbulência, ou talvez até… um crime? Conseguirá Vianne impedir que o vento leve tudo o que lhe é mais querido?


Há magia no ar. Há luz e sombra. Vingança e amor. Vinte anos depois da publicação de Chocolate, Joanne Harris regressa à pitoresca vila francesa num romance sobre a força do passado, o poder da memória e a aceitação das marcas que a vida deixa em nós.


Opinião: Joanne Harris foi das primeiras autoras que li e adorei, ainda em tenra idade. Comecei pelo Chocolate, segui por todos os seus outros clássicos. Mais tarde adorei reencontrar essas personagens em Sapatos de Rebuçado e O Aroma das Especiarias. Julgo ter entendido que este volume encerra o mundo de Vianne Rocher, com certeza a chocolateira mais famosa do universo literário.

Senti o a narrativa mais fraca, a entrar um bocadinho por aquele campo do espremer uma fórmula ao máximo. Como se a autora não estivesse tão inspirada como nos restantes volumes, apesar de se ler bem, porque me é território confortável. Vianne Rocher cede o protagonismo à sua filha de 16 anos, Rosette, e a M. le Curé, o Père Reynaud. Sem dúvida que as complexidades deste homem de Deus, atormentado pela própria natureza falível, dão substância à melhor personagem (pelo menos à minha favorita) criada pela autora neste universo de uma aldeia francesa à beira-rio, na qual aportam os barcos dos ciganos, onde há uma comunidade muçulmana (Les Marauds) e onde colidem o mundo tradicional das beatas e dos hipócritas com as minorias que despertam a mesquinhez nessas almas cristãs.

Adoro a temática dos livros da autora, que giram sempre em torno da diferença; do ser-se diferente e do aceitar-se o diferente. Neste volume, Rosette é a personagem diferente. Tem um discurso próprio (Bam!) pontilhado dos seus limites de discurso (terá uma doença que a arrasta para tiques nervosos?). Traz alguma pureza à narrativa. É a sua voz, mas também a de Vianne, a de Reynaud e os relatos na primeira pessoa de Narcisse, o antigo florista que morre e que deixa o seu bosque de carvalhos e morangos silvestres à curiosa Rosette que instiga a ação deste último tomo da série. É que os habitantes de Lansquenet-sous-Tannes não compreendem o porquê de um homem inescrutável ter deixado um bosque de valor precioso a uma criança com limitações, e a justificação que oferece ao executor do seu testamento, bem como a nova ocupante da sua loja de flores desocupada, diante da porta da Chocolaterie vão desenterrar os segredos de outro habitante da pequena povoação.

O interessante é a premissa de que ninguém é o que parece, combinada com a mestria da autora em criar universos mágicos, místicos, plenos de superstição e de maravilha, em que o chocolate, os desenhos, a arte em geral, o fogo nas fogueiras dos ciganos, os amuletos islâmicos, as tradições maias, se tornam formas de praticar feitiçaria e de pôr o vento a nosso favor, ou contra os nossos inimigos.

Ocorre-me uma questão interessante sobre a obra da autora: os homens costumam ser personagens voláteis, pouco confiáveis, que vêm e vão com o vento, egoístas. As mulheres têm-nos como adereços temporários. O amor nunca se sobrepõe à razão e, quando o faz, é para desgraça da mulher (recordo-me de algumas das suas mulheres, desgraçadas por homens ignóbeis). Que significa isto? Gostaria de perguntar à autora se é de algum modo feminista, e se conhece homens de integridade inabalável.

Despeço-me com saudade, e um dia regresso com o Hurakan a Lansquenet-sous-Tannes, para reencontrar todos estes amigos de longa data.

Classificação: 4/5*****