#278 TOLSTOI, Leo, Anna Karenina
Opinião: Anna Karenina é um gigante da literatura internacional publicado na íntegra em 1877. Trata-se de uma obra cujo título original era “Dois Casamentos”, e talvez esse título se aplicasse melhor a esta história.
Foi a primeira vez que organizei uma leitura conjunta e fez todo o sentido estrear-me nessas andanças com este livro. Tinha medo de me embrenhar nele sozinha, medo de me sentir isolada, sem poder comentá-lo e sem encontrar motivação para continuar. O meu livro saiu da estante, onde ganhava pó desde 2012, e com ele saíram outros 30 e tais exemplares deste clássico. Fechámos o grupo com 36 leitores, e dividimos a leitura em 8 estações de comboio (o livro está dividido em 8 partes pelo próprio autor). A média resultou em 20 e poucas páginas por dia, durante dois meses (20 de Fev. a 20 de Abril). Muitos terminaram antes, mesmo tendo começado depois. Outros prosseguem a viagem pelas paisagens russas, e chegarão ao fim quando assim entenderem.
Quis deixar esta introdução para que fique claro que a minha opinião se baseia não só na obra, mas também na experiência de leitura conjunta, e do consequente debate que daí partiu.
Anna Karenina divide-se em dois núcleos principais: por um lado aquele imortalizado pelo imaginário popular e pelo cinema – a história de amor conturbada (e adúltera) de Anna e o Conde Vronski –, por outro, os dilemas existenciais e o alheamento social que experimenta Lévin, cuja vida se desenrola no campo e cuja visão da cidade e das suas gentes oferece o contraste perfeito.
”Mas quanto mais se esforçava por pensar, mais claro se lhe tornava que era indubitavelmente assim, que realmente se tinha esquecido, tinha deixado escapar na vida uma pequena circunstância – que chegaria a morte e que tudo acabaria, que não valia a pena começar nada e que nada podia ser feito quanto a isso.”
Simplificando o enredo: esta é a história de uma Rússia em tempo de progresso, a Rússia de Alexandre II onde proliferam os caminhos-de-ferro, concedeu-se a liberdade aos camponeses, espia-se o exterior e tenta trazer-se o melhor de França, de Inglaterra e da Alemanha para a Rússia. Observamos estes russos a partir da alta sociedade, na qual se enquadram Anna, esposa de um funcionário de Estado, Vronski, conde com uma considerável fortuna, e Lévin, um jovem abastado que circula nessa sociedade sem, no entanto, se sentir alheio às suas maneiras. Tolstoi conta-nos que na altura sociedade russa todos fingem – há affairs, há dívidas intermináveis, há o vício do jogo, do álcool, das mulheres, e há alguma corrupção associada à distribuição de cargos importantes: os contactos regem as influências de cada um.
A pedra que vem sacudir a organização inquestionável deste país, que à época respirava progresso, é o facto de uma mulher respeitável, casada há vários anos, mãe e mulher de sociedade inimputável, se apaixonar à primeira vista por um jovem oficial de cavalaria. De início, Anna procura combater essa paixão, e é nesse sentido que isto não é um livro de amor: o encontro dos dois, bem como o seu entendimento, ocupa uma breve fração do livro. O miolo da obra são as consequências que algo natural, como apaixonarmo-nos, pode trazer a um cidadão que se atreva a parar de fingir em sociedade por um instante.
Procurando não estragar a obra para quem ainda a não leu: muitos dos meus companheiros de leitura apaixonaram-se pelo núcleo da história que pertence ao jovem Lévin, um homem que vive de acordo com as suas crenças, a sua vontade, e em relativa simplicidade – isto fica claro numa cena em que Lévin vai almoçar com o seu velho amigo Stepan, e este último saboreia uma série de iguarias estrangeiras num restaurante de luxo, enquanto Lévin procura algo mais “russo”, mais fiel à sua natureza, e acaba por comer umas papas e uma sopa. Lévin terá sido escrito à imagem do próprio Tolstoi que, oriundo da aristocracia, passou a vida à procura de algo de útil para fazer pela Rússia, e questionou todas as fundações da cultura e da sociedade russas – desde a ausência de escolas para camponeses, à educação que impõe doutrinas aos alunos, à própria religião cristã, nas suas vertentes tanto católica quanto ortodoxa. Posto isto, entende-se que seja a personagem que oferece uma maior profundidade, e também é a que protagoniza a verdadeira história de amor do romance – um amor construído e cadenciado, com os vícios dos tempos e da natureza humana, que vai conquistando confiança aos poucos.
Lévin é também a personagem que verbaliza os males que assomam a Rússia no “crepúsculo” do Império, e também na aurora do socialismo:
”Esse mal, a aquisição de enormes fortunas sem trabalho, como acontecia no tempo das arrematações, apenas mudou de forma. (…) Mal acabaram as arrematações de rendas [possivelmente pela abolição da servidão] logo apareceram os caminhos-de-ferro e os bancos: a mesma acumulação sem trabalho.”
Mas regressemos a Anna Karenina, a mulher casada que se vê entre a espada e a parede – isto é, entre o dever e o seu coração. O amor, recém-descoberto, até então abafado pelas convenções sociais, ou uma vida de estatuto, de comodismo social, em círculos respeitáveis, na companhia do filho e do marido que descobre não só não amar, como também desprezar? Uma vez os olhos abertos para algo natural como o amor, como pode tanta gente julgar Anna pelas decisões que ela acabou por tomar, e pelo turbilhão emotivo que daí partiu?
Eu compreendo uma mulher que ama, e que é amada. Como poderia ela virar as costas a esse amor, anular-se e ao objeto da sua afeição, para continuar tudo como estava? Inclusive ela tenta, mas não consegue. Não consegue apartar-se do homem que ama. E, ingénua, julga que a sociedade lhe permitirá dois direitos pelos quais a mulher ainda haveria de se bater bastante: o de se divorciar, e o de manter algum tipo de direito sobre o filho.
Não tenho nenhuma palavra de censura para com a personagem Anna Karenina : para mim, as partes dela foram as que mais esmiuçaram o coração humano, as que mais me causaram assombro e angústia. De facto, a dor, a insegurança e até a paranoia desta mulher ostracizada por tudo e por todos torna-se irritante, mas como seríamos nós se nos víssemos privados de tudo o que nos é caro? Se tivéssemos de viver com a dúvida e a culpa pela nossa escolha, mesmo sabendo que não poderíamos ter feito outra?
”Naturalmente – pensava – a sociedade da corte não a receberá, mas as pessoas próximas podem e devem compreender isso devidamente.”
Eu penso até que Tolstoi descreveu a depressão pós-parto numa altura em que tal termo nem existiria, mas em que inúmeras mulheres já padeceriam desse mal:
”Tudo naquela menina era adorável, mas por qualquer motivo tudo isso não lhe enchia o coração. Para o primeiro filho, embora fosse de um homem que ela não amava, tinham ido todas as forças de um amor que não fora satisfeito; a menina, nascida nas condições mais difíceis, não recebia nem a centésima parte das preocupações que iam para o primeiro”
Aqui questiono-me: em que medida pode uma mãe apartada de um filho – a sua responsabilidade não importa, porque a mulher deve poder cumprir-se como mãe mas também como mulher, sem ter de escolher entre um amor e outro -, entregar-se de coração aberto ao segundo, sobretudo quando sofre e quando vem sofrendo desde a descoberta dessa segunda gravidez?
Concluindo; foram dois meses de uma leitura desafiante. Este livro é um tratado minucioso sobre a Rússia do séc. XIX, que só tem par em Guerra e Paz – Livro IV , do mesmo autor. Só hesito em atribuir-lhe as 5 estrelas porque tem algumas partes em que me apeteceu pegar no lápis azul e cortar – refiro-me às partes de caçadas intermináveis, encontros políticos, eleições, e mais caçadas.
Fora isso, é daqueles livros que abrem espaço no nosso coração, e que se instalam para sempre.
A Editorial Presença cedeu um exemplar de O Jogador de Dostoievski, para ser sorteado e incentivar a leitura de clássicos russos aos membros desta leitura conjunta.
Classificação: 4,5/5*****