Servidão Humana #3
Se eu conhecesse oPhillip Carey, provavelmente desprezá-lo-ia. Se fosse criada de mesa, jovem epobre, provavelmente ter-me-ia aproveitado dele como a Mildred Rogers faz. Dapágina duzentos e pouco até à quatrocentos atravessamos os novos erros eavaliações de consciência do Phillip. Ele não consegue ser totalmente felizporque, sendo uma pessoa do mais banal que existe, insiste em procurar sermaior, acreditando que algo de grandioso lhe está reservado. Este medo deperecer sem ficar na memória, sem responder às grandes questões filosóficas nemse engrandecer através da Arte ou duma profissão, é muito humano eidentificável com todos nós. Com a diferença de que o Phillip é tão volátil queabandona tudo o que está a fazer a cada vez que acorda com os pés de fora. Comobem diz o seu tio vigário, falta-lhe perseverança. Ele quer algo fácil,instantâneo. Anseia por liberdade e por aventura mas, na realidade, é snob, burguês, aborrecido e insosso. Étão palpável, contudo, que é impossível não nos debruçarmos com interesse paraesta personagem. É a Mildred, contudo, que até aqui fez emergir no Phillip oque de mais fraco ele tem.
É-lhe servil, cegamente devoto – cegamente está aqui mal aplicado, porqueele reconhece que ela é estúpida, snob,pretensiosa, vaidosa, interesseira e obsoleta. Ainda assim, amava-a. É-lhe umparadoxo ver-se assim desprovido de razão e de integridade. Esta mulher, estamiserável criada de uma casa de chá, desdenha dele, aproveita-se dele, não sepreocupa realmente com nada que lhe diga respeito e dispensa-o sempre quealguém lhe oferece algo melhor. É feia – lábios finos, pálida, anémica, magra,sem ancas, sem peito, de franja. E ele arde de desejo por todas estasimperfeições físicas, por uma vez familiarizado com as incongruências do amor eespicaçado pelo desejo carnal. Ele tem de tê-la. O rapaz tímido, ingénuo, éagora inflamado e espontâneo. Pena de ciúmes, é esbanjador em relação à atitudepoupada anterior. Obcecado em conseguir o afecto desta mulher leviana,desperdiça até aquilo que poderia ter sido um bom futuro ao lado de uma viúvaque o ama mais do que ele a ela. Mas como o próprio Phillip diz, o que importano amor não é tanto ser amado, mas amar. E por isso sujeita-se aos caprichos daMildred. Vejamos onde vai isto dar.
(Tendo lido mais cempáginas)
Concluo que o Phillip édaquelas pessoas tão desengraçadas e de tão baixa auto-estima que, por seremincapazes de se valorizar, pensam que só adquirem afecto comprando-o. Então, “aproveitando-se”dum momento difícil da Mildred – na realidade é ela que se aproveita dele –julga que a tem na mão porque ela precisa dele financeiramente. Embora tenhaconsciência de que ela é uma “cadela”, como ele próprio diz, que salta de coloem colo, é a única maneira de a ter e contenta-se com qualquer farrapo deatenção que ela lhe atribui. Em troca delapida a herança do pai em chapéus paraessa ingrata (palavras dele próprio), vestidos, e chega ao ponto de ter tãopouco amor-próprio que lhe sustenta a filha de outro e lhe patrocina jantares eidas a teatros de variedades quando ela se enamora do melhor amigo dele. Maisdo que isto… paga-lhes umas românticas férias em Oxford, tudo porque compreendeque ela se tenha apaixonado pelo seu bom amigo, que considera tão maiscativante do que ele próprio, e porque assume que a culpa é sua por tê-losapresentado. Não estamos perante uma personagem vulgar ou cativante. O Phillipé uma pessoa desprezível na sua cobardia e na sua timidez. É incapaz de umgesto mau, tirando chamar-lhe “cadela” e ajoelhar-se-lhe aos pés em seguida,que sabe ele de dar-se ao respeito? Culpa o pé boto pelos seus problemasrelacionais, mas nesta fase do livro acaba de ser confrontado por um jovem compé boto que é perfeitamente feliz. Talvez tenha entendido que os seus problemasnão são físicos, mas sim que sofre de uma fraqueza de carácter exasperante. Quepersonagens notáveis, Somer.