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Castelos de Letras

Em torno das minhas leituras!

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Servidão Humana #1


Conheci o Somerset Maugham através d’O Véu Pintado, e conheci O Véu Pintadoatravés da adaptação de 2006 com o Edward Norton e a Naomi Watts. Filmeprecioso, um olhar íntimo sobre a vida privada de um casal dos anos 30. O livroé diferente; é desconcertante na sua abordagem ao coração humano, à inclinaçãoincontornável ao erro, ao mais fácil, ao queimar-se uma outra vez na mesmachama. A profundidade humana é tocante, fascinante e qualquer leitor seidentifica facilmente com estes espectros erróneos que o Maugham descreve. Foium romance um pouco mais da minha linha, no sentido em que há uma relaçãocentral como fio da meada. Há a China, a cólera e a mulher infiel. E pronto, euestava rendida. Não precisei de muito para penar pelo seu “Servidão Humana”. Jámencionei que, de visita à Russborough House, em Wiclow (Irlanda), parei numabiblioteca enorme à procura dum autor que conhecesse e, de entre todos os nomesdesconhecidos, apenas Maugham me acenou? Foi como estar, subitamente, em casa.

SPOILERS, SPOILERS ALL AROUND!

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O livro começa com a morte de uma mãe. Uma criança órfã queanseia por carinho e por vitimar-se. É humano, será que vale a pena dizermosque quer vitimar-se? Trata-se apenas de tirar alguma vantagem das desgraçaspessoais. Para este rapazinho, isso espelha-se no abraço, na palavra decompaixão, nos mimos que podem servir de recompensa à perda da mãe. Nestaprimeira centena de páginas podia já o romance encerrar-se, e eu estaria járendida e apaixonada. Não há romance, há apenas relações humanas. O servilismo,a existir, é do eu perante sipróprio. Este Phillip Carey, esta pessoa tão comum e, contudo, tão intrigante,é já uma das minhas personagens favoritas de sempre. Isto porquê? Phillip sofrede todas as mesquinhices humanas: vaidade, mentira ocasional, orgulhoexacerbado, ciúme injustificado, ocasionalmente inveja. Cresceu à sombra dumtio vigário e, por isso, nunca duvidou de Deus ou da veracidade absoluta dadoutrina da Igreja Anglicana. Nunca,até certo ponto. Nesta primeira centena de páginas Phillip foi já confrontadocom a possibilidade de vir a tornar-se também ele vigário e, posteriormente,começa a questionar, através de conhecimentos que faz na Alemanha, longe doKent onde cresceu, se existirá realmente uma religião verdadeira ou um deus único. O que estou a apreciar é,sobretudo, o meu desbastar dos receios que alimentava quanto a este livro; é umlivro enorme (lê-se incrivelmente bem), Somerset é um grande escritor, será queconseguirei acompanhá-lo? (ele esforça-se por vir ao meu encontro sem, noentanto, me tomar por imbecil), será um pseudo-intelectual? Terá algo aacrescentar-me? (o autor atira-nos para os olhos a ignorância de Phillip  maisgritante a cada vez que algo de novo lhe é ensinado. Tão vastas as extensões,depressões, viragens de rumo da Natureza humana num livro com ainda tanto paraoferecer.
Philipp é tímido, tem pé boto, é inteligente mas tantas vezes estes doisfactores impedem-no de expressar essa inteligência e é tomado por idiota. Cadapessoa com que se cruza – as que ama e as que odeia – são palpáveis eapaixonantes a seu modo. Mr. Carey, o tio vigário. Mrs. Carey, nunca mãe, tiade sangue, frágil e submissa (queixa-se,porque é mulher, obedece, porque é esposa). Mr. Watson, o director decolégio religioso que ri demasiado alto e é bruto a demonstrar carinho pelosalunos. Mr. Perkins, director da escola preparatória, descendente de umfanqueiro, por isso desprezado pela trupe de intelectuais abastados que ensinamnessa escola, tão inteligente e perspicaz que é finalmente com ele que asagacidade de Phillip se expande.
Phillip a descobrir o poder da literatura para alheamento dos que vivemexistências infelizes. Phillip a aprender a ser selectivo na Literatura. Phillip a considerar a Igreja Anglicana como um elemento de conforto na suavida. Phillip a considerar deus umultraje a igreja um embuste. Phillip a considerar a sua orfandade motivo depena, de dessabor. Phillip a considerar o seu pé boto um entrave para criarligações. Phillip a agradecer a deus pelo fardo do pé boto, que lhe permitiucrescer mais ou menos à margem dos restantes, aculturando-se enquanto osrestantes jogam futebol. Phillip a querer alguém – um amigo – só para si. Phillip  odiar esse amigo. Phillip a querê-lo de volta. Phillip a quererdesistir da escola, a lutar afincadamente para consegui-lo. Phillip inconsolável, irritado consigo mesmo, por ter conseguido deixar a escola,vencido a batalha, quando afinal tudo o que quer é ficar. E a sua comoção face à beleza, à arte, à natureza, surge como um marco importante na vida de qualquer ser humano. Foi naquele dia que primeiramente testemunhou a beleza, e a sua vida mudou.
Estou arrebatada, encantada por tanta complexidade. Estão aqui algumas dasmelhores personagens com que tive o prazer de privar na Literatura, juntando-sea Kitty Fane d’O Véu Pintado, Scarlett O’Hara e Rhett Buttler do E Tudo o VentoLevou, e Dr. Victor Frankenstein e o monstro, do livro homónimo ao médico.