Rayuela - iv
Durante toda aquela tarde, ele assistiu uma vez mais, uma detantas vezes mais, testemunha irónica e comovida do seu próprio corpo. Às surpresas,encantos e decepções daquela cerimónia. Habituado sem saber aos ritmos da Maga,de repente um novo mar, uma ondulação diferente arrancava-o dos automatismos,confrontava-o, parecia denunciar obscuramente a sua solidão rodeada dedissimulações.
O encanto e o desencanto de passar de uma boca para a outra, deprocurar de olhos fechados um pescoço onde a mão dormiu, recolhida, e sentirque a curva não é igual, que tem uma base mais espessa, um tendão brevementetenso com o esforço de se aproximar para beijar ou morder. Cada momento do seucorpo frente a um desencontro delicioso, ter que esticar-se um pouco mais ou quebaixar a cabeça para encontrar a boca que antes estava ali tão próxima,acariciar uma anca mais definida, provocar uma resposta e não a obter,insistir, distraído, até se perceber que é necessário inventar tudo mais uma vez,que o código ainda não foi estabelecido, que as chaves e os números vão nascernovamente, e serão diferentes, e responderão a outra coisa. O peso, o cheiro, otom de uma gargalhada ou de uma súplica, os tempos e as precipitações, nadacoincide sendo sempre igual, tudo nasce novamente sendo imortal. O amor brincaa inventar-se, foge de si mesmo para regressar na sua espiral acolhedora, osseios cantam de outra forma, a boca beija mais profundamente ou como que vindade longe, e num momento onde antes havia apenas cólera e angústia, existe agorao jogo puro, a brincadeira incrível, ou pelo contrário, à hora em que antes decaía no sono, no balbuciar de algum disparate, existe agora uma tensão, algonão comunicado mas presente, que exige entrar, qualquer coisa como uma raivainsaciável. Só o prazer no seu estado último é ele mesmo; antes e depois omundo ficou desfeito em pedaços, e é necessário nomeá-lo novamente, dedo pordedo, lábio por lábio, sombra por sombra.
cap. 92