Cem Anos de Tortura
Hoje fui amplamente surpreendidapor uma mensagem privada de um membro do Goodreads, que veio precisamente norescaldo de algumas conclusões que tirei ontem. O conteúdo do texto é o seguinte:
«Uma "escritora"que, independentemente do "bom" ou "mau" gosto dá 2 ao CemAnos de Solidão e que ainda tem a pretensão de dizer que nasceu para escrever.
Ri-me muito.»
Ri-me muito.»
Para quem não sabe, no Goodreads atribuem-se classificações de1/5 aos livros lidos, conforme os critérios de cada um. Qual é o meu espantoquando me dou conta das implicações que não gostar dum escritor que ganhou umNobel poderiam ter no meu percurso de (pretensiosa) “escritora”!
Quando li o Cem Anos de Solidãoteria quê? Quinze anos? Aos quinze anos um livro do Nicholas Sparks parecia-mesoberbo, enquanto um do Garcia Marquez poderia parecer-me facilmenteaborrecido. Poderia até tentar justificar o meu “2” ao Cem Anos de Solidãodeste modo. Mas a verdade é que este jovem veio estabelecer um pararelismoentre a minha incompetência como escritora – ter-me-á ele lido? – e o muito queo livro me exasperou. Nestes preâmbulos, e recordando-me bastante bem dasensação que o livro me passou, sou obrigada a confessar que a minha opiniãoquanto ao livro se espelha no seguinte comentário de um utilizador goodreadeano:
«So I know that I'm supposedto like this book because it is a classic and by the same author whowrote Love in the Time of Cholera. Unfortunately, I just think itis unbelievably boring with a jagged plot that seems interminable. Sure, thelanguage is interesting and the first line is the stuff of University Englishcourses. Sometimes I think books gettagged with the "classic" label because some academics read them anddidn't understand and so they hailed these books as genius. These sameacademics then make a sport of lookingdown their noses at readers who don't like these books for the very samereasons. (If this all sounds too specific, yes I had this conversationwith a professor of mine).
I know that other people love this book and morepower to them, I've tried to read it all the way through three different timesand never made it past 250 pages before Iget so bored keeping up with all the births, deaths, magical events andmythical legends. I'll put it this way, I don't like this book for thesame reason that I never took up smoking. IfI have to force myself to like it, what's the point. When I startcoughing and hacking on the first cigarette, that is my body telling me thisisn't good for me and I should quit right there. When I start nodding off onthe second page of One Hundred Years of Solitude that is mymind trying to tell me I should find a better way to pass my time.»
By Adam onGoodreads.
Assombrou-me a associação deideias deste jovem: agora apreciar um autor que uma qualquer entidade decultura designou como de qualidade é requisito para nós próprios virmos a teralgum valor na área? Teria o Da Vinci apreciado a arte do Picasso se os dois setivessem algum dia conhecido? Ou seria suficientemente mente aberta para dizer “Picasso,o teu Guernica é um 2 porque o abomino pessoalmente, e só é 2 porque tereconheço o génio”.
Mas, analisando algumas obraslidas pelo mesmo jovem, enveredo numa curiosa constatação: tendo lido quase sobretudo autoresclássicos (aqueles que “alguém” designou de bons e que ele acatou), omitiu asleituras dos “comuns mortais” ou, de facto (o que é ainda mais lamentável), nãoos leu. Tolstoi, Dostoievksy, Freud, Camões, Kafka, Neruda, Steinbeck, Pessoa –com todas estas leituras no seu currículo, não é difícil adivinhar que estamosperante alguém que se tem a si próprio como um intelectual. Não lhe chamemospretensioso, mas eu alerto para o risco de nos debruçarmos sobretudo – e depeito aberto – para aquilo que “alguém” designou que era bom. Para aquilo que “alguém”disse que deveríamos ler incontornavelmente. Porquê conceder a alguém – à sociedade,à tribuna dos Nobels que seja – o direito de nos designar os lugares literáriosa visitar? E porquê fecharmos a mente tão jovens àquilo que é a livre percepçãode cada um face a escritores que a maioria idolatra, quando a maioria estátantas vezes cega ou errada?
Com isto não pretendo questionara qualidade dos referidos autores/obras literárias. Quem sou eu para fazê-lo oupara enviar cartas ao Fernando Pessoa do início do século XX e dizer-lhe que,se não gosta de Tolstoi, jamais será alguém na escrita? Ainda para mais fiqueicom a percepção de que este jovem se tem certamente em muito boa conta e émuito orgulhoso da sua bagagem cultural. Espero que a idade o torne maisflexível e lhe abra a mente – já que tanta variedade de leituras só serviu paralhe dar a ideia errada de como funciona a arte e de lhe que as percepçõespessoais são questionáveis – e que páre de pensar que é não questionando Darwinque abrimos o nosso caminho no naturalismo.
Como aparte felicito a HelenaBarbagelata (21 anos) que venceu ontem o Prémio Literário de Poesia e Ficção deAlmada, vertente “Poesia” com “O Mar dos Deuses” (se não estou em erro). Tambéma ela lhe reconheço o génio, porque as palavras da sua autoria que foramcitadas durante a cerimónia soaram belas, arcaicas, quase exóticas, estranhas e de um talentoinegável. Eu, qual burra a olhar para o palácio, não compreendi uma linha – umareviravolta emocional – do que foi dito, mas houve muitas lágrimas eaplausos. Sendo obrigada a classificar a sua obra, dar-lhe-ei 5 porque nem soba mira de uma arma conseguiria imitar-lhe os trejeitos literários? Ou sereiobrigada a dar-lhe 2 porque a cultura, na minha modesta visão, deve ser obra decompreensão (democracia e acessibilidade) e não de cega admiração, e narealidade eu não senti nada?
A autora é jovem e multifacetada(pinta divinamente) e desejo-lhe toda a sorte do mundo, até porque engrandece onosso concelho de Almada. Espero que surjam todas as oportunidades adequadas àevidente imensidão do seu talento...
La Belle Inconnue, by Helena Barbagelata