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Castelos de Letras

Em torno das minhas leituras!

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#167 HEMINGWAY, Ernest, O Velho e o Mar

Sinopse: Conta a história de um velho pescador que luta com um gigante espadarte em alto mar por entre a Corrente do Golfo. Apesar de ter sido alvo de apreciações muito divergentes por parte da crítica, é uma obra que permanece uma referência entre os livros de Hemingway, tendo reafirmado a importância do autor em tempo de o qualificar para o Prémio Nobel de Literatura de 1954.

Opinião: "O Velho e o Mar" é o segundo livro de Hemingway que li. Após a leitura, o tempo contribui para assentar a percepção de um livro. No caso de "Na Outra Margem, por Entre as Árvores", a cada dia que passa desprezo mais a narrativa. Sobretudo o absurdo dos diálogos. Mas este é diferente. É quase todo um monólogo (de Santiago, o pescador, para consigo próprio) mas também um diálogo de gerações. Santiago foi, em tempos, um grande pescador. Mas há oitenta e quatro dias que não tem sorte de pescar nenhum peixe. Não pescar significa não comer, e é na vergonha da pobreza que Mandolin, o rapaz, lhe estende a mão. Tem fé que o velho volte a conseguir uma grande pescaria, ao contrário do próprio Santiago, que sofre momentos de descrença. A teoria está toda viva na sua mente, mas as mãos e o restante corpo não respondem como antigamente. A fortuna também não traz os peixes para o seu esquife, e é na desolação de se achar acabado que, ao sentir que um espadarte de seis metros lhe morde o isco, Santiago decide segui-lo até encontrar o momento ideal para o abater. Grande parte do livro está centrado no esforço que este admirador de DiMaggio faz para manter tão pequena embarcação estável enquanto o peixe se debate pela vida. O respeito do pescador pelo seu sustento é, talvez, o que mais alto me falou no livro, e também a absoluta necessidade de pescar para repor a sua fé na sorte e comida na mesa.

Um livro é realista, não há grandes reviravoltas e é uma obra pequena, mas profunda. Sendo Hemingway, o diálogo está lá e desta vez faz sentido. Houve alturas em que julguei que o dito know-how do pescador era peta, pois nada funcionava dentro daquele esquife. Como não há mulheres no livro, uma só que seja, ou uma menção ao sagrado feminino, Hemingway não pôde ser machista desta vez. Ou talvez resida aí o seu machismo: em tornar as mulheres em seres dispensáveis.
Deste livro julgo que me vou lembrar com carinho conforme o tempo for passando.
Por isso, Hemingway chega às 4 estrelas comigo.


Classificação: 4****/*

#135 MÁRQUEZ, Gabriel García, Crónica de uma Morte Anunciada

Opinião: 

"- Mataram-me, menina Wene"

A minha primeira experiência com Gabriel García Márquez foi, precisamente, com "Cem Anos de Solidão". A cada livro ou mesmo frase que leio dele,posso apenas constatar que não estava preparada para ler essa obra-prima quandome aventurei nela. Não consegui gostar, não me apaixonei pelo surrealismosul-americano que tanta beleza imprime às obras deste autor.
Na altura alguém, vendo-me com perfil de escritora no Goodreads, veio dizer-me,em privado, que só poderia escrever caca se tinha atribuído 1 estrela àobra-prima do Gabo. Na altura evoquei o evidente: não me identifiquei, nãogostei. Uma classificação a uma obra artística é sempre mais um manifesto depercepção do que algo de aproximado a uma verdade absoluta. Não há verdadesabsolutas quanto à arte, mas há verdades incontornáveis. E é incontornável queo Nobel colombiano é um contador de histórias exímio.
Há um grande debate aí pelas redes sociais, a propósito da qualidade dasobras/gosto pessoal dos leitores. Eu digo isto: se se quer avaliar a alma de umlivro, a sua qualidade humanística, olhe-se aos leitores. Quem leu? Quemgostou? E daí retirem as vossas conclusões. Já que usei a palavra caca acima,vou chamá-la de novo: escreve-se muita caca hoje em dia. Há um culto do"escrever": as palavras caras, os floreados, o cliché, a piada fácil,a tentativa de criar um tcharan noencerrar da ideia que, na maioria das vezes, me suscita um "?" e umenrugar de testa. Mas que raio...?
Onde anda o conteúdo? Onde andam os contadores de histórias? Eu digo-vos, a meuver, onde é que eles andam:
À escuta. Atrás das portas, nas esquinas, nos becos. É o tipo de cigarro nasbeiças a duas mesas da vossa, ao pequeno-almoço. É o que finge ler o jornalenquanto vocês conversam com a vizinha na paragem de autocarro. É o que olhapela janela do metro enquanto vocês falam ao telefone. É o miúdo que se põehirto enquanto vocês discutem, em casa e de janelas abertas, confiantes queninguém vos ouve. E que depois guarda isso para si, ou corre em busca de umacaneta e do verso de um talão para apontá-lo. É quem saca da máquinafotográfica ou do gravador, ou que digita as vossas palavras à velocidade queas verbalizam, para não perder pitada da vossa alma falada. Daquilo que vos saicom naturalidade.
E Gabriel García Márquez é um observador nato. Os diálogos são incólumes, sãos,palpáveis. Chegam-nos por entre sopros do hálito das personagens, dos seuslábios gretados, dos seus dentes lascados, das suas sinusites e dos seuscatarros. O homem é um extractor de almas, e quem o é sóprecisa de meia dúzia de páginas para contar uma história antes de cair narepetição.
Crónica de uma Morte Anunciada tem 107 páginas na versão em que ali, e é de uma riqueza literária inegável (uma verdade incontornável).
Santiago Nasar está condenado, todos os sabem. Mas aí entram as motivaçõeshumanas, as suas fraquezas, as suas crenças pessoais "ah, eles vão láagora matar o rapaz". "Mas alguma vez?", e joga o seu vastoconhecimento da essência de um povo que é seu e de um passado de que tambémcomunga. A força da tradição, que nos fortalece em certas situações e nosamordaça noutras, o assassino que não quer matar mas que o deve à honra, o povoque entende as razões e, ainda assim, leva flores ao morto.
Estou deserta (vim agora do Algarve) de continuar a lê-lo. "O Amor nosTempos de Cólera" e agora esta maravilhosa crónica puseram-me alerta paraaquilo que tenho andado a perder. Espero que se deixem prender com tantaintensidade quanto eu.
Um 5***** no absoluto matemático deste número infinito.

Sinopse: Vítima da denúncia falaciosa de uma mulher repudiada nanoite de núpcias, o jovem Santiago Nasar foi condenado à morte pelos irmãos dasua hipotética amante, como forma de vingar publicamente a sua honra ultrajadae sob o olhar cúmplice ou impotente da população expectante de uma aldeiacolombiana: é esta a história verídica que serve de base a este romance, e que,logo nas suas primeiras linhas, é enunciada. A capacidade de Gabriel GarcíaMárquez em reconstruir um universo possuído pela nostalgia, mágica eencantatória da infância e a sua genial mestria em contar histórias fazem desteromance mais uma das obras-primas que consagraram definitivamente este autor.

#131, MÁRQUEZ, Gabriel García, O Amor nos Tempos de Cólera

Sinopse: O Amor nos Tempos de Cólera constitui na obra de Gabriel García Márquez um marco equiparável ao do célebre Cem Anos de Solidão, considerado até hoje, a sua obra-prima. «O Amor nos Tempos de Cólera é um romance (...) onde se fundem o fulgor imagístico, o difícil triunfo do amor, as aventuras e desventuras da própria felicidade humana (...) Ao longo dum flash-back de quatrocentas páginas vertiginosas, compostas numa espécie de pauta estilística e musical, da qual não estão sequer ausentes o humor, a poesia e a vertigem das imagens (...) o leitor recupera o ritmo enca
ntatório duma escrita que não tem conhecido imitadores à altura.

Opinião: Em1985, quando publicou “O Amor Nos Tempos de Cólera”, Gabriel García Márqueztinha 58 anos. Diria mesmo que é uma idade ainda precoce para uma obra tãomadura quanto a que terminei agora de ler. Como sempre se disse que “Cem Anosde Solidão” era o ex-libris da obra do escritor colombiano falecido a 17 deAbril 2014 (faz depois de amanhã um ano), comecei por lê-lo nesse registo. Masas repetições dos nomes familiares, os amores e desamores surrealistas de umamesma família ao longo de várias gerações enevoaram-me. Terá sido há, talvez,cinco anos. Talvez vinte anos não seja idade suficiente para se compreender agrandeza de um escritor com este nível de profundidade.
“O Amor nos Tempos de Cólera” é, sim, um livro de amor. Um livrosobre um amor maior, daqueles que tudo esperam e tudo suportam. Por vezes éangustiante ver como os anos engolem as personagens principais, Fermina Daza - a“Deusa Coroada” -, Florentino Ariza, que aos 20 anos já parecia velho, e o Dr.Juvenal Urbino, pragmático e metódico em cada gesto. Faz-nos pensar acerca davida e das suas coincidências e tragédias, como a de um homem que, tão jovem,se deixa enlevar por uma menina-mulher, e o que torna esse amor tão grande queo obriga a levar uma meia-vida, uma vida sempre vivida na expectativa de um diavir a ganhar o afecto de Fermina. Que fez Fermina Daza para o encantar destemodo? Ela nunca se esforçou por conquistar-lhe as graças, nem por mantê-las.Pelo contrário, é teimosa, por vezes um tanto rude, e não é decerto alguémacessível ou com quem dê gosto falar. É uma mulher difícil, de mais acção doque palavra, que se deixa iludir por um amor que se lhe apresenta proibido e,dando azo à casmurrice que a caracteriza, compromete Florentino para a vida.Quando se dá conta de que o que sentia era uma mera ilusão de jovem, jáFlorentino vive somente para ela, e por ela gere toda a sua vida, a ela dedicatodas as suas lágrimas, e nela deposita a sua única esperança de felicidadenuma vida que está condenada à banalidade.
Abeleza do livro consiste, claro está, na mestria com que o Nobel colombianodirige a passagem do tempo, as perspectivas dos três personagens principais, omodo como os sentidos se conjugam para criar imagens vívidas do afável Urbino, doreservado Florentino, da volúvel Fermina. A narrativa crua do autor, que nãorecai em floreados mas sim num poder de descrição que só pode ser descrito comoum “dom”, atribui uma beleza quase negra ao romance. Tudo nele tem um lado beloe um lado oculto. A vida que se vive de prazeres fugazes porque a felicidadetotal nos está vedada. A vida enganosa de quem teimou em seguir pela estradatal, e que só se dá conta de que o faz por teimosia, e por nada mais, quando édemasiado tarde. O retrato da sociedade da época, das viúvas-alegres àscarpideiras, as ruas da cidade dos vice-reis, os vícios e virtudes dos humanos,todos os estratos sociais tão bem ilustrados, caídos nas mesmas fraquezas, rastejantesnos mesmos receios… - a morte, a velhice, o desamor.
Históriasde amor há muitas, mas o imaginário de García Márquez é um só e presenteou-noscom esta obra singular: um amor diferente de todos, sofrido, calejado,cimentado ao longo de mais de cinquenta anos, mas concretizado, como todos osamores que realmente o são.
Umlivro cujas páginas, mais tarde, quererei, com certeza, revisitar. Quem nuncaleu um livro assim – que vejo um tanto aproximado, de facto, de um Saramago oude uma Isabel Allende, pelo modo como as pessoas vivem em diversas dimensões (arealidade, o passado, o futuro projectado, a superstição e o sonho) – não pode,tão-pouco, imaginar a complexidade desapiedada de uma obra assim.

Classificação: 5/5*****

#123 GOLDING, William, O Deus das Moscas

Sinopse: Publicado originalmente em 1954, O Deus das Moscas de William Golding é um dos mais perturbadores e aclamados romances da actualidade. Um avião despenha-se numa ilha deserta, e os únicos sobreviventes são um grupo de rapazes. Inicialmente, desfrutando da liberdade total e festejando a ausência de adultos, unem forças, cooperando na procura de alimentos, na construção de abrigos e na manutenção de sinais de fogo. A supervisioná-los está Ralph, um jovem ponderado, e o seu amigo gorducho e esperto, Piggy. Apesar de Ralph tentar impor a ordem e delegar responsabilidades, muitos dos rapazes preferem celebrar a ausência de adultos nadando, brincando ou caçando a grande população de porcos selvagens que habita a ilha. O mais feroz adversário de Ralph é Jack, o líder dos caçadores, que consegue arrastar consigo a maioria dos rapazes. No entanto, à medida que o tempo passa, o frágil sentido de ordem desmorona-se. Os seus medos alcançam um significado sinistro e primitivo, até Ralph descobrir que ele e Piggy se tornaram nos alvos de caça dos restantes rapazes, embriagados pela sensação aparente de poder.

Opinião: Gostava de poder levantar-me do sofá, ligar o computador e escrever, com comodidade, a grandiosa review que este livro merece. Porém, tenho cinco quilos de gata sobre a perna, e por esse motivo não me atrevo a mexer-me a arruinar o sono de beleza do Deus dos Gatos. Terei de escrever mesmo no telemóvel.
Eu lembrava-me de ser pequena e de ver um filme, que agora sei ser o de 1990, sobre miúdos selvagens numa ilha, por sua conta. Nem esse visionamento me preparou para este romance perturbador.
Golding apresenta-nos um grupo de rapazes que não sabem grande coisa sobre as suas circunstâncias, na realidade. Os mais velhos de entre eles têm cerca de 12 anos: os mais novos totalizam metade dessa idade. Eis o que o leitor deduz: são britânicos, estão no Pacífico, a segunda guerra está no auge e chegou a esse oceano, devem ser um grupo escolar a viajar em conjunto por algum motivo nunca enunciado. Há conflitos ali próximos, porque além dos clarões de explosões dá-se uma prova ainda mais óbvia da civilização a trucidar-se ali perto. O livro também não se centra no saudosismo das crianças, na falta que o conforto do lar lhes traz, mas sim em como se constrói a sua nova organização, deixando para trás a civilidade.
Num primeiro momento, todos, mesmo a personagem principal (Ralph) são tomados de um entusiasmo contagiante por se verem livres e num belo cenário, com água fresca, piscinas naturais, fruta à mão e sem nenhum adulto a condicioná-los. Não se conhecendo entre si (excepto para o grupo de um coro, liderado por Jack Merridew e um par de gémeos inseparáveis), os rapazes procuram estabelecer uma nova ordem à semelhança da que acabam de deixar. O chefe (Ralph) é eleito por democracia, por possuir um búzio, uma espécie de tesouro na ilha em que todos chegam apenas com a roupa do corpo, e por usá-lo, por instrução de um outro rapaz (Piggy), para convocar reuniões e promover a auto-ajuda.
Nas reuniões discutem-se temas como o asseio pessoal e da ilha, a fogueira que urge manter acessa para que haja fumo na ilha e possam ser salvos, a alimentação, abrigos, exploração da ilha, etc.
Depois temos Piggy, um rapaz gordo, medroso, asmático, queixoso e preguiçoso, que não vê um palmo à sua frente sem os óculos. Piggy é vitima da troça geral por todas estas características, mas é também o rapaz mais sensato de todos pelo que, à revelia de quem o goza, se torna uma espécie de conselheiro de Ralph. Depois existe Simon, corajoso, fiel, individualista. Jack, o chefe dos rapazes do coro, desesperado por se ver à cabeça de todos. As crianças pequenas, vítimas do desinteresse dos outros miúdos, pouco mais velhos.
O livro explora as hierarquias e a ausência de lei e de um governo que institua livre sufrágio e a aplicação do resultado das eleições sem que a chefia seja sólida.Os membros do grupo dividem-se, não só por indecisão mas porque, enquanto Ralph é um chefe brando, outro se insinua com mais fervor, sob o signo do autoritarismo. O povo receia Jack, admira-o a certas o ocasiões, como quando a sua inclinação para a crueldade faz dele o líder ideal para os caçadores, por proporcionar a excitação da caçada e o consolo da carne.
Por outro lado, simpatiza com Ralph, o líder eleito por democracia, possuidor do objecto mágico: o búzio. Mas Ralph é um líder responsável entre crianças, não se regozija com a chefia nem procura nenhum mérito pessoal. Não é vaidoso nem sedento de poder, e insiste para que se faça o correcto.
O desencanto que a situação provoca, e que se vai agravando, vai separando os rapazes, trazendo ao de cima o pior de alguns deles e acicatando a ânsia de poder que atormenta Jack. Cria também uma rivalidade insustentável entre Ralph e Jack, e  de súbito a ilha parece pequena demais para dois chefes tão antagónicos.
As maiores crueldades são cometidas, levando-nos a perguntar se não seria assim, mesmo no mundo dos adultos, caso não houvesse uma entidade superior a policiar e a julgar comportamentos. Enquanto se sentem ligados à civilização, os rapazes experimentam vergonha, bom senso, cordialidade e procura por entendimento. Depois, resvalando para a bestialidade, despem-se da sua civilidade e tornam-se paus mandados de um chefe cruel. Só o receio ao novo chefe, impiedoso, os move, os faz obedecer com cegueira e, inclusive, encontrar prazer nos actos que se vão cometendo.
Este livro fez-me pensar muito e partiu-me o coração. Recordei-me da convicção de Locke e de Hobbes de que os homens não são bons por natureza, o que impede que se dispensem certas instituições que existem com o mero propósito de lhe refrear as mesquinhices.
Recomendo a todos!
Classificação: 5*****

#78 SARAMAGO, José, As Intermitências da Morte

(acherontia atropos)

Classificação: 4,5****/*

Sinopse: «No dia seguinte ninguém morreu.» Assim começa este romance de José Saramago. Colocada a hipótese, o autor desenvolve-a em todas as suas consequências, e o leitor é conduzido com mão de mestre numa ampla divagação sobre a vida, a morte, o amor, e o sentido, ou a falta dele, da nossa existência.

Opinião: Oque se espera desta obra é, além da escrita signatária do nosso Nobel daLiteratura (1998), um retrato duma sociedade a quem a morte (ela exige que nãose use maiúscula) virou as costas. Um ensaio sobre o fim magistralmente conduzido...

Saramago expõem-nos um conto(posso dirigir-me a esta obra nestes termos?) reflexivo, do interesse dequalquer ser vivo temente à morte - mais do que a deus. 
Na primeira metade do livro (por vezes um pouco exaustiva, devido a tantas hierarquias e pontos de vista acerca deste fenómeno de não-morte, assistimos à reacção de um país às inesperadas "férias" desta entidade. Se a morte deixasse dematar, que faríamos com a dor e o sofrimento? Que seria dos corredores doshospitais? Que seria das monarquias com os seus reis convalescentes em eternaagonia? Como realça o narrador, sempreé diferente de eternamente. Que fariaa humanidade se fosse eterna? Se não houvesse passagem para o outro lado?
Além de desesperar, faria ospossíveis para aceder a esse outro lado, sugere Saramago. Pagaria para morrer, sugere Saramago. A Igreja veria a base dos seus alicerces deitada por terra, a sua utilidade real desfeita. O Governo debater-se-ia com a moral, uma crise económica e demográfica, de braço estendido a quem seoferecesse para resolver os problemas - clandestinamente - por eles. Os funerários,trabalhadores de morgues, floristas, carpideiros, etc., lamentariam a falta dematéria-prima para a prática do seu ofício. As famílias, hospitais, lares,lutariam, embaraçados, por livrar os seus espaços e as suas camas dos moribundos.Filósofos sair-se-iam com teorias sobre diferentes tipos de morte, o herdeiro nestaMonarquia Constitucional receia ainda que a mãe nunca lhe dê lugar, visto recusar-sea passar para o outro lado.

Fatalidade incontornável, fim da viagem, última etapa, inquietação constante, a morte afigura-se, neste livro, com uma voz, um rosto (descarnado) e curiosidade para com os mortais. Afigura-se também como alívio supremo, a seu tempo tão desejado.
A cerca de 60%da leitura, surge a perspectiva da morte. Da morte que dá mostras de cansaço,de entorpecimento de ossos, de até algum desgaste mental e solidão, pois que fala com a suagadanha, quando intrigada, aguardando por uma explicação. Em certas ocasiões a gadanha até responde. O ritmo do livro corre muito mais fluido, envolvendo o leitor e impedindo-o de deixar as suas páginas... 
Parece, contudo, que demos duas partes muito distintas no livro, com um estilo narrativo e ritmos diferentes. Primeiro a perspectiva das vítimas da ausência da morte, num ritmo que pula de prisma em prisma, que corre rápido, prático, por vezes um pouco moroso mas sem se perder em detalhes. Tudo é política, religião, máphia, estratégia. Depois a perspectiva da morte, num ritmo bem mais rápido (a narrativa acompanha-se com mais facilidade, mas as acções não se atropelam), mais emotivo, mais intimista, mais musical, literalmente. 

O discurso de José Saramago,quando nos embrenhamos na sua escrita, é assertivo, emblemático, sarcástico eperspicaz. É um gosto sentir que o acompanho. Fiquei muito surpreendida pelofacto de que esta obra de inegável lucidez ter sido publicada em 2005, quando oautor tinha já 83 anos. Aqui está a prova irrevogável de que Saramago é,realmente, uma mente de excelência no panorama da literatura mundial.


Que magnífica perspectiva sobre a vida e a (sua necessidade da) morte!

«No dia seguinte ninguém morreu»