Opinião: Há muitos, muitos anos, tentei ler A Selva, deste mesmo autor. Lembro-me que estava a gostar muito do livro mas, entretanto, a curiosidade esmoreceu e abandonei-o. Era da biblioteca e acabei por devolvê-lo.
“A Missão” é uma novela, e nesta edição é seguida de um conto intitulado “Nossa Senhora dos Navegantes”. Ambos são excelentes, e muito intensos apesar de serem relativamente breves. “A Missão” recordou-me a intensidade das novelas de Steinbeck, em particular A Pérola, que adorei. E sai-se melhor do que essa outra (atrevo-me a dizer) no que ao imprimir realismo e intensidade a uma narrativa, em tão curtas páginas, diz respeito.
"Nessa época, as colónias representavam para os missionários o mesmo que as câmaras de experimentação para certos metais: punham à prova a sua resistência. Todos sabiam que o pecado andava lá, quase nu, entre os coqueiros e que entre pecados e virtude havia apenas os dois ou três milímetros de espessura de uma tanga.
”A Missão” é uma novela publicada em 1954, que se debruça sobre um dilema moral e religioso que teria tido lugar durante a invasão da França pelos alemães, no contexto da II Guerra. Conforme a sinopse indica, a grande questão é se estes monges devem salvaguardar-se dos bombardeamentos aéreos pintando a palavra “Missão” no telhado, ou se devem abster-se de fazê-lo posto que isso dirigiria, sem erro, a Luftwaffe para o único outro edifício de interesse naquela povoação: a fábrica de armamento na qual trabalhavam quase 500 almas.
Ferreira de Castro expõe, com esta premissa tão simples, a verdadeira natureza dos homens, e separa a religiosidade da abnegação e até da ética. Mounier e o superior tornam-se personagens maiores e de grande complexidade, um feito notável numa obra tão pequena. Alguns diálogos mantiveram-me pregada às páginas, sobretudo aqueles em que os monges tentavam, à vez, ser detentores da verdade (e da vontade) divina. O contexto histórico da II Guerra Mundial também está muito bem explorado, a geografia, o tempo e o contexto socio-político da França durante o flagelo dessa ocupação está exposto de modo sublime. Sem se alongar – e recorrendo a metáforas que me pareceram muito esclarecedoras e espirituosas (digo-o porque não sou grande fã de metáforas, sobretudo as de Lobo Antunes), - o autor teceu aqui um enredo credível, profundamente humano e envolvente. Terminei-o com a certeza de ter lido algo que, se tivesse saído da pena de um autor de outra nacionalidade – quem sabe, de alguém fora do isolamento do Estado Novo – teria chegado muito, muito longe.
”Ele pensou que talvez dez homens interpretassem melhor o desejo divino do que dois apenas. Mas, por outro lado, todas as grandes revelações que a Igreja apregoava tinham sido feitas, dizia-se, individualmente. Na religião como nas ideias novas fora sempre uma minoria que iluminara os passos da maioria.”
”Nossa Senhora dos Navegantes” é um pequeno conto que lhe segue, também com grande pertinência e desenvoltura narrativa. Um homem senta-se numa ermida agreste, no topo de uma escarpa e vertida sobre o mar, e descobre que não está sozinho. A outra figura presenteia-o com um longo monólogo sobre o que é ser Deus e viver entre os homens desde a criação. Menciona que em todas as vidas, em todas as épocas, foi chacinado, executado, perseguido e silenciado, ou, como nessa mesma, teve de pular um muro para fugir do manicómio. Uma vez mais, tornou-se para mim evidente que Ferreira de Castro separa a religião do mundo interior e espiritual de cada um, porque este Deus – que procura apenas apregoar a verdade, aliviar os homens da sua vileza para com os outros da sua espécie e ajudar os aflitos, despojando estátuas de ouro e entregando-a aos miseráveis – não é aceite pelos humanos.
Grande reflexão. Terminei a leitura absolutamente maravilhada e certa de que Ferreira de Castro foi um dos nossos grandes. Só teve a infelicidade de nascer em Portugal e, por isso, não ter alcançado voos mais altos (apesar de ter algum significado a nível internacional e de até Stefan Zweig o ter elogiado!)… Enfim, não o esqueçamos nós por aqui. Ele pertence-nos e engrandece-nos com a sua obra.
Sinopse: "A Missão Inclui "O Senhor dos Navegantes". França, Segunda Guerra Mundial: o frade Georges Mounier informa o superior da congregação religiosa a que pertence que, ditado por um imperativo de consciência, tomara a iniciativa de suspender a ordem de pintar a palavra Missão no telhado do convento, que permitiria assinalar o edifício pelo ar aos bombardeiros alemães. Porém, tal iniciativa equivaleria igualmente a denunciar o edifício semelhante ao lado, antigo convento de freiras transformado em fábrica que contribuía para o esforço de guerra francês, pondo em risco a vida dos operários e das famílias que viviam nas habitações em torno deste. «As mesmas letras que nos protegerem podem representar uma sentença de morte para os homens que ali trabalham», explica o frade ao superior, desencadeando um aceso debate sobre a decisão mais correcta: a de conservar a neutralidade da Missão ou a de salvando vidas, colocando-se ao serviço de umas das partes do conflito. O desfecho será inesperado. O presente volume inclui ainda a novela O Senhor dos Navegantes, tornando novamente disponível aos leitores portugueses duas grandes obras da literatura nacional.
Opinião: “Gente Indepedente” é um romance épico da autoria do Nobel islandês Halldór Laxness, em que a saga de um homem pode tornar-se a saga de toda uma nação. Ignorava a sua existência até ter dado uma espreitadela à lista de 100 melhores livros de todos os tempos do The Guardian, e chamou-me à atenção entre Eneida e o Velho Testamento.
A Islândia de 1900 é um local inóspito, uma nação em equilíbrio sobre 1000 anos de provações: houve erupções, fomes e guerras, mas a ameaça constante continuam a ser as distâncias, o isolamento e a necessidade de importar do estrangeiro bens essenciais como centeio, trigo, ou mesmo o café que lhes aquece as jornadas de trabalho.
"O que é a alma? Se cortarmos a cabeça a um animal, a alma sai da espinha dorsal a voar e desaparece no céu como uma mosca? (...) Um homem quantas almas tem? Lázaro voltou a morrer numa outra altura? E porque razão as almas se comportam com cortesia perante os altos funcionários do Estado, enquanto molestam os pequenos agricultores dos vales?"
À luz dos grandes, o nosso homem independente, Bjartur de Casas de Verão, é apenas um agricultor, um pequeno camponês que vive das ovelhas e da sua obsessão por possuir um pedaço de terra e ser autossuficiente. Porém, na Islândia de 1900, o progresso que vem de além-mar debate-se com as rimas, as sagas e as superstições de um povo que luta diariamente pela sobrevivência, e Bjartur é demasiado obstinado para confiar na modernidade ou nos outros em geral.
"Fenómenos sobrenaturais são sumamente desagradáveis por uma razão: eles abalam o conhecimento do mundo que serve de alicerce à existência humana, e deixam a alma a flutuar no ar, onde ela não pertence."
Bjartur é controverso, por vezes cruel, indecifrável e intransigente. Obriga os filhos a trabalharem a terra desde tenra idade, 16 horas por dia atolados na lama das charnecas, e a destruírem as mãos nas ferramentas agrícolas, tudo em nome de uma independência que apregoa como o mais elevado dos valores: a autêntica dignidade do homem. E é neste contraste entre a dureza das circunstâncias, a aspereza de Bjartur e a miséria generalizada, que a beleza das flores, dos fiordes, dos sonhos, das rimas e das meninas de mãos delicadas e olhos estrábicos se tornam impossivelmente comovedoras. Ainda que a Islândia os massacre, eles lutam e sonham, e nunca se vergam. Limitam-se a aguentar, divididos entre a gula dos capitalistas, a perfídia dos bancos e as promessas dos socialistas. A narrativa avança demorada, Laxness oferece-nos a perspetiva de cada personagem de modo singular, coloca-nos no seu corpo e faz-nos caminhar nos seus sapatos por aquelas estradas que oferecem vislumbres distantes de mar, de montanhas azuis e de geiseres. Acabamos por conhecer o bater do coração e a torrente de pensamentos de cada islandês aqui retratado, sofremos com os seus dilemas e a sua teimosia, e regozijamo-nos com os seus triunfos. Por entre discursos políticos, a ambição dos merceeiros e a qualidade do café, somos brindados com relances do mais belo que existe na natureza humana e no modo como molda e é moldada pelo ambiente.
A Islândia de Bjartur é uma ilha gelada onde as ovelhas e os cães têm as barrigas cheias de lombrigas e ténias, e os dorsos mordidos por pulgas, mas ainda assim há tanta beleza no espírito indomável do homem que tudo suporta e tudo supera…
Podemos considerar que os tempos vergaram Bjartur das Casas de Verão? Podemos acreditar que os fantasmas dos fundadores da Islândia e das bruxas que a povoaram mastigaram o seu sonho de independência e derrubaram o seu casebre de turfa? Podemos considerar que o vale onde ergueu Casas de Verão não lhe era nada, mas um mero meio para atingir a autossuficiência, e que perante as exigências do corpo a paisagem é secundária e até olvidável?
"Ser pobre é exatamente aquele peculiar estado do homem de não poder desfrutar das condições excepcionais. Ser um agricultor pobre consiste em nunca poder tirar proveito das vantagens que os políticos oferecem ou prometem, e estar à mercê dos ideais que apenas fazem os ricos mais ricos e os pobres mais pobres."
Não sei se é o livro do século, mas sei que é um livro inesquecível, um livro que me trouxe novo conhecimento sobre aquilo de que a nossa espécie é capaz de suportar. Voltarei a ler Laxness, agora com a fé inabalável de estar perante um dos grandes pensadores e artistas do século XX.
Sinopse: Este romance de Laxness, Nobel da Literatura, tem lugar na Islândia, no início do século XX, numa sociedade de servidão e num país com uma natureza inclemente. É a saga de Bjartur, um homem obstinado, inquebrável e inesquecível. Bjartur vive no limiar da auto-suficiência e conta apenas com a sua obstinação e força interior, rejeitando qualquer caridade. Vive num vale com reputação de assombrado, só confia no seu rebanho, no seu cão e no seu cavalo. Se alguém toca o seu coração é Asta, a sua filha, mas tudo muda quando ela o desilude e magoa os seus enraizados princípios de honra… A determinação de Bjartur e a sua luta pela independência são genuinamente heróicas, assustadoras e chegam a ser cómicas. Gente independente é uma história épica, ao mesmo tempo trágica e bela. É uma imensa viagem por um mundo onde as almas são levadas até ao precipício e só os mais duros resistem. Um romance imbuído de sentido de humor, de uma crueldade que roça o violento e de uma profunda humanidade. Um romance que continua a comover gerações de leitores.
Sinopse: Gil Vicente, figura insigne do Teatro e das Letras portuguesas, de vida incerta e misteriosa, mas alvo de admiração e honrarias ao longo dos séculos. Menos afamado, talvez, seja seu servo, Anrique de Viena, homem humilde e leal que conheceu em batalha o mundo, e que regressou para o lado de seu senhor, para o acompanhar no inverno de sua vida e o ajudar na escrita da sua última peça. E através da pena de Anrique, ágil e dedicada, veremos o mestre como nunca antes foi visto: completa e profundamente humano.
Irónico, divertido e comovente, Quando Servi Gil Vicente é um exercício extraordinário de estilo e invenção que, prestando homenagem a um dos maiores autores portugueses, nos permite acesso àquilo que, para o bem e para o mal, poderia muito bem ser Gil Vicente no seu tempo e mundo.
Opinião: A vida de Gil Vicente é, acima de tudo, uma incógnita. Trata-se daquelas biografias ou x, ou y, e o autor valeu-se dessa escassez de factos sobre a vida do dramaturgo para ficcionar. Dizia eu, ainda antes de ler este livro, que João Reis é o melhor escritor contemporâneo português no momento (dos que li, como é evidente). Digo-o porque me parece que vai vencer o teste do tempo, os seus livros terão sempre significância, ou pelo menos alguns deles sim.
Nesta pequena (grande) obra de 200 páginas, o leitor é puxado para dentro de um rodopio de acontecimentos, e no fim é cuspido para fora - esta opção pelo fluxo de consciência oferece sempre uma experiência de submersão. Não é facil entrar no ritmo, parece que aterramos na cabeça de alguém, e esse alguém assume que sabemos uma série de coisas que desconhecemos, e a história vai escorrendo, e aquela voz torna-se mais e mais familiar, e de repente entendemos tudo o que diz e como o diz, e é como compreender outra língua.
A Lisboa do século XVI era um sítio insalubre, prenhe de vigaristas, oportunistas, beatos e peneiras. As crianças e cães vagueavam pelas ruas em bandos, igualmente indisciplinados. O rio estava povoado de embarcações que chegavam dos sítios mais exóticos, os Painéis de São Vicente ornamentavam a capela-mor da Sé e a Inquisição estava prestes a chegar para silenciar os atrevidos. A excelência do romance dá-lhe cor, som, cheiro e sabores. Já JRS diz que o objetivo neste seu último livro era que o leitor percepcionasse Auschwitz com os sentidos... Não sei se aqui o autor pretendia que Lisboa ganhasse vida, mas conseguiu-o como só nos bons livros se consegue. Adorei descobrir expressões da época, ou encontrar a Língua Portuguesa mais próxima do ramo a partir do qual se distinguiu da castelhana - perro ainda era um cão, e a profissão de perreiro era espantar os vadios das igrejas. Não é fascinante?
O narrador é Anrique de Viena - e ele há-de explicar-vos porque é assim apelidado -, um mentiroso, aventureiro, pinga-amor, violento, mas acima de tudo dedicado servo de Gil Vicente. O que me tocou acima de tudo, na narrativa, além dessa imersão na Lisboa antiga, foi a noção de como este país já seria um pouco como é agora. Ou seja, o génio de Gil Vicente é menosprezado, embora o próprio, segundo o retrato, pareça ter vistas curtas e sonhos de grandeza. Tal como Camões, outro português viu parte do seu trabalho perdido, e acabou a vida como um renegado, na miséria e no oblívio, enterrado em parte incerta. Gil Vicente era também joalheiro, terá, entre outras peças, talhado a famosa Custódia de Belém - que, no século XIX, o rei D. Fernando II por acaso resgatou a um antiquário. Essa peça-mor da joalharia nacional está exposta no MNAA e é o que de mais palpável nos chegou das mãos do mestre.
Narrado com humor, sensibilidade e um ritmo muito próprio do estilo do autor, Quando Servi Gil Vicente é, acima de tudo, um livro sobre relações humanas, sobre as dificuldades de extrair génio - arte - a homens em situações desfavoráveis, e retrata muito bem os vícios de ser-se português (a fanfarronice, a preguiça, a soberba, a gula, a negação, a implicância por desporto)...
Sinopse:Quando Adriana ganha finalmente coragem para sair de casa com o filho de cinco anos, pondo fim ao casamento com Alessandro, mal pode imaginar que o marido, incapaz de aceitar o divórcio, tudo fará para a destruir - nem que para isso tenha de destruir o próprio filho.
Apneia é uma viagem ao mundo sórdido da violência conjugal e parental, através de um labirinto negro em que os limites da resistência psicológica são postos à prova, ameaçando desabar a qualquer instante, e dos meandros tortuosos de uma Justiça por vezes incompreensível, desumana e desfasada da realidade.
Escrito com uma sobriedade e frieza inquietantes, Apneia é um romance intenso, absorvente e perturbador, que ilustra com uma autenticidade desarmante o estado de guerra em que vivem milhares de famílias estilhaçadas, e com o qual, inevitavelmente, muitos leitores se vão identificar, encontrando nestas páginas ecos da sua própria experiência.
Opinião: Apneiaé o primeiro livro que li da autora Tânia Ganho, apesar de já ter lido ótimas reviews de A Mulher-Casa. Apesar de se tratar de um romance gigantesco de 690 páginas, li-o em três fôlegos. Terminei-o compulsivamente de madrugada, e refleti sobre ele e acordei a tentar pôr as ideias no lugar.
Este é um romance sobre burocracia, sobre tribunais, autoridades, profissionais de saúde mental, e retrata a infindável luta de uma mãe pela segurança do filho. É um livro avassalador, que nos angustia e envergonha, que nos deixa frustrados e impotentes, envolvidos nesta espiral de desespero, de declínio emocional. É a história de uma mulher (mãe) no limite, mas também de uma criança manipulada por um pai sádico e do sistema que cede terreno para que o pai pratique os seus abusos psicológicos.
Conforme a sinopse indica, Apneia conta a história de um divórcio litigioso, e das lutas em tribunal pela guarda de uma criança. Adriana é pintora, e portanto sensível e fraca. Ela própria reconhece o seu lado subserviente, e torna-se assim a vítima perfeita para um homem manipulador e sem escrúpulos (provavelmente um sociopata) como Alessandro. Depois de anos a destruir a auto-estima da mulher, ele jura-lhe que vai deixá-la sem nada quando esta se atreve a pôr um ponto final no casamento. Como qualquer calculista, depressa compreende que o melhor modo de a destruir emocionalmente é usando o filho, Edoardo, como arma de arremesso.
A construção das personagens está muito bem feita. Adriana e Edoardo passam por várias fases ao longo da narrativa, há um crescimento dos dois, e foi precisamente a evolução de Edoardo, enquanto a disputa pela sua "posse" se arrastava em tribunal, que me manteve tão presa ao livro. Quanto a Adriana, exasperou-me muitas vezes. Apetecia-me sacudi-la, esbofeteá-la, passar-lhe parte da minha fúria e sentido de inconformismo, mas tive de entender que nem todas as mulheres dispõem de ferramentas para pararem o mal quando ele as toma como alvo. Como é sugerido no livro, quando não se sabe o que é o ódio, não sabemos como defender-nos quando nos odeiam (parafraseando).
O lado exasperante do livro é a surdez e a cegueira da Justiça face à questão da guarda deste jovem, decidida na barra do tribunal de menores. A frustração de sentir que falamos sem ser ouvidos, que esbarramos em autorizações, gente incompetente, prazos infindáveis, desprezo e falta de empatia, está muito bem descrita e rouba-nos o ar. Há uma sensação de urgência, de luta por sobrevivência, por paz, ao longo de todo o livro. Há uma Adriana que, apesar de nunca baixar os braços, se vai transformando num náufrago, despojada de vida pessoal, de tranquilidade para criar, de liberdade para se mover e para levar o filho consigo. A sombra do ex-marido priva-os de ar, mantém-nos suspensos do medo, do terror, da insegurança. Como dizia um investigador num programa sobre abusos domésticos a que assisti, violência doméstica é homicídio em câmara lenta, e não é preciso introduzir violência física na equação para comprometer a integridade física de uma vítima. Em vez de nódoas negras e abrasões, Adriana tem ansiedade, ataques de pânico, depressão.
A somar ao tema premente, desconcertante, e às personagens palpáveis, a autora entrega-nos a história com uma prosa magnífica. Maravilhava-me ao ler os seus parágrafos sobre as reflexões de Adriana, sobre os seus sentimentos e sobre o seu despertar da ingenuidade para a realidade da indiferença e do descaso. Tantas vezes pensei que, se este livro fosse editado em língua inglesa, com certeza seria um best-seller internacional e rapidamente adaptado ao cinema.
Acrescento ainda o retrato de Lisboa, da Margem Sul e "da ilha" como locais que me são próximos e palpáveis. Adoro ler romances com esta qualidade descritiva sobre paisagens que me são caras, que conheço e que vejo assim envoltas em poesia, em melancolia.
Atribuo 4,5 estrelas ao romance, e não 5, porque este livro esteve quase, quase a tornar-se um dos livros da minha vida. Tal foi o prazer e o envolvimento com que o absorvi, que o final não me satisfez e decidi arrumá-lo para o canto. Na minha cabeça, a história não terminou como a autora a escreveu, mas sim do modo como eu vinha imaginando nas últimas cem páginas. Não é do leitor "gostar" ou "não gostar" de um final, mas num livro que mexeu tanto com os meus sentimentos, que se tornou tão íntimo, antevi um final. Entranhei a lição, e por isso acarinho essas ideias que o livro plantou em mim, e que não se coadunam com as páginas que o encerram.
Livro obrigatório e escritora a seguir de perto. Recomendo sem reservas.
Opinião: Orgulho e Preconceito seria o título mais apropriado para este romance póstumo de Júlio Dinis (publicado em 1871, no mesmo ano da morte do autor).
Joaquim Guilherme Gomes Coelho (1839-1871) travou uma longa batalha com a tuberculose (doença que, aliás, lhe levou a mãe e os irmãos), e pereceu na idade precoce de 31 anos. Este foi o seu último romance, obra que já não contou com a sua revisão. Apesar de se tratar de uma narrativa saída do punho de um moribundo, é um livro positivo, com momentos de grande divertimento, mas também de angústia e de seriedade.
Comecei a lê-lo em Agosto, quando tinha acabado há dias Uma Família Inglesa, de que muito gostei. Nunca é boa ideia ler livros muito próximos de um mesmo autor, senti que estava a ler uma continuação do livro mencionado e comecei a sentir-me algo fatigada. A culpa não era do livro, mas sim da necessidade que tive de me afastar da narrativa de Júlio Dinis, para depois poder regressar a ela repousada, e assim poder admirá-la em todo o seu esplendor.
A escrita é elegante, compreensível mas contém a complexidade de ideias e de caracteres das personagens. Neste livro, ficaram-me várias inesquecíveis: D. Luís, o fidalgo falido da Casa Mourisca, que tudo perdeu exceto a altivez do seu brasão. Jorge, o filho mais velho, empenhado em recuperar o brio que outrora luziu sobre a sua família. Maurício, o filho mais novo e impetuoso do velho fidalgo, dado a paixões e a aventuras. Outras personagens cuja vida vem entrelaçar-se com a destes nobres são o Tomé da Póvoa, antigo criado da casa e que entretanto investiu na sua própria Herdade e a elevou muito além do esplendor da Casa Mourisca, a sua filha Berta, regressada de Lisboa com estudos e maneiras elegantes, e tantos outros vizinhos que com estas personagens se cruzam, ajudando a traçar os seus destinos.
As personagens são sublimes. Jorge é sisudo, empenhado e devoto ao dever de reerguer a casa da família. É, por isso, a minha personagem favorita que toma como sua responsabilidade a missão de abandonar os velhos modos que levaram ao ócio e à destituição do património de muitos nobres nessa segunda metade do séc. XIX, em que o país se regia pelo signo do liberalismo. Berta é, à semelhança de Jenny de Uma Família Inglesa , uma menina de bem, meiga e com valores sólidos que vem agitar a relação dos dois irmãos, Jorge e Maurício, mas, sobretudo, agitar o equilíbrio decadente de séculos por aquelas bandas: a separação de classes, de aspirações, de fortunas e de oportunidades.
A única coisa que me aborrece ligeiramente nos livros de Júlio Dinis é a santificação da figura feminina, como se personificasse tudo o que há de bom, estivesse sempre disponível para os maiores sacrifícios e superasse os homens em índole e perspicácia, e acabando sempre por salvá-los dos seus impulsos mais nocivos. Talvez esta ideia de mulher perfeita lhe venha da mãe que perdeu quando era tão pequeno? De qualquer modo, parece-se um pouco com o fenómeno de adoração da Mãe (Fátima) que nasceu em 1917. Uma espécie de percursor de uma crença na sacralidade feminina e maternal que os portugueses sempre estiveram muito dispostos a abraçar. Também me oponho bastante a esta ideia constante de sacríficio que surge tão virtuosa e que tanto eleva o caráter das personagens à luz do seu século. Eram outros tempos, mas creio que este espírito se estendeu em Portugal durante todo o Estado Novo, à sombra da religiosidade e dos bons costumes de modéstia e recato.
De um lado, a ruína dos nobres; de outro, o progresso da burguesia e dos lavradores honrados. Amo este Portugal fulgurante que Júlio Dinis nos descreve, e adoro o modo como o livro nos sugere que o país poderia ter seguido um rumo de ascensão económica, mesmo no seio Europeu, se a aristocracia de deixasse das velhas maneiras e adotasse a força e a determinação de homens que, do nada, construíam pequenos impérios.
Sinopse: Publicado no ano da morte do autor, este romance foca o progresso da burguesia e a consequente decadência da nobreza. As personagens são, em geral, vagas, sem definição psicológica, servindo principalmente como elemento estrutural do conteúdo. A sequência temporal é evidente e marcada pelas várias circunstâncias que vão constituindo a ação, com as personagens perfeitamente integradas, desempenhando as suas várias funções e dando-nos a conhecer os seus pensamentos.
Sinopse:Sofia tem 32 anos, é professora num colégio em Lisboa e casada com um arquiteto de uma família nobre ribatejana. Ele conservador e ela liberal, não tinham nada em comum quando se apaixonaram numas férias de verão dez anos antes. Viveram um namoro feliz seguido de um casamento de sonho, desgastado pela sua obsessão por uma gravidez.
Quando descobre que foi traída, Sofia aceita uma proposta para substituir a sua mentora e viaja para o interior de Moçambique.
Disposta a viver aventuras, envolve-se com Alex, um homem que a atrai, apesar dos seus modos secos e do pressentimento de que lhe esconde algo.
Corajosa e determinada, Sofia irá descobrir tudo aquilo de que é capaz, incluindo arriscar a sua vida.
Opinião: Pronto, e é isto. Quando adoro um livro, dou-lhe cinco estrelas. Neste caso, cinco inesperadas estrelas e muita admiração pela autora, que se estreia assim na ficção nacional com uma promessa de talento inegável!
Uma palavra para o facto de só ter comprado o livro porque a capa é lindíssima e piscou-me o olho várias vezes na Feira do Livro. Eu ando numa fase de clássicos, mas decidi dar uma oportunidade ao livro, que ademais prometia misturar dois temas muito interessantes: infertilidade e as complexidades sociais de Moçambique.
Li algumas opiniões de outros leitores e parece-me consensual que a segunda parte do romance é muito mais cativante do que a primeira. De facto, no início senti-me um bocadinho aborrecida com aquele enredo do boy meets girl, ainda por cima a escrita é leve (e fluída), o que me fez sentir dentro de um YA, género que não me cativa de todo, por ser muito difícil introduzir algo de novo nesse segmento. Alguns ocasionais clichés, ou variantes deles, baixaram-me as expectativas de modo que a segunda parte pôde arrebatar-me por completo.
No entanto, sempre que a narração regressava ao presente, a escrita cativava-me. Elogio a escrita em si, o ritmo irrepreensível do romance - algo muito difícil quando se escreve -, e sobretudo os diálogos. Não é fácil escreverem-se diálogos com naturalidade, a Iris soma muitos pontos nessa área. Fez-me rir, comoveu-me. Fez-me torcer realmente pelas personagens, e é sempre ótimo quando um autor manipula os nossos sentimentos. Também de louvar o retrato psicológico de todas as suas personagens; fiéis a si próprias, com atitudes e até maneirismos no falar muito distintos. Parece uma coisa mínima, mas quantos livros li de autores ditos consagrados, portugueses, em que não há distinção de vozes e em que as personagens são unidimensionais?
Gostei muito mais da segunda parte porque mexe com temas na ordem do dia que me parecem muito pertinentes: ecologia, alimentação, exploração infantil, tráfico humano, corrupção, e por aí fora.
Trata-se de uma estreia de arromba, conto estar muito atenta a outros trabalhos da Iris, e precipitar-me para as bancas caso venha a haver uma continuação deste romance. Apesar de a história subsistir por si própria, parece-me que temos material de sobra para uma continuação igualmente emocionante.
Opinião: Maravilhoso! Ainda melhor que o primeiro volume.
"Se o homem pudesse achar um estado em que, sendo ocioso, se sentisse útil e ciente do dever cumprido, acharia uma das facetas da felicidade primitiva."
Neste segundo volume, estamos familiarizados com a miríade de personagens, já lhes conhecemos o passado e começamos a preocupar-nos com o seu futuro. Muita coisa aconteceu ao longo dos quase sete anos (1805-1812) que o livro cobre. Os soldados russos regressam de Austerlitz para a vida em sociedade, sendo que a sua prestação no exército (e na Batalha em específico) se reflete no seu estatuto social. A humanidade de cada personalidade adensa-se. Pierre, sem qualquer ligação aos palcos de guerra, foca-se na aprendizagem e na melhoria do seu carácter, bem como numa série de questões espirituais, Andrei sofre uma reviravolta na sua vida que leva a que se isole e caia em melancolia, e depois, quando o seu destino se cruza com o de outra personagem que nos é cara, vai redescobrir o prazer de estar vivo. Nikolai Rostov, também regressado a casa de Austerlitz, é agora visto como um homem pela família, mas ainda conserva alguns trejeitos da juventude. Descobrimos nele um idealista romântico, e nem a situação de ruína eminente da família o leva a agir contra os seus princípios.
Em geral, trata-se de um segundo volume passado num período de paz, em que Napoleão forja uma aliança com o Império Russo, conseguindo assim um hiato no conflito armado. A Rússia respira de alívio, decide "manter-se fora dos conflitos Europeus", mas, em simultâneo, nasce nos russos um sentimento de si próprios. Por muito que a cultura francesa continue a ser admirada nas esferas aristocráticas, surgem indícios do que é a verdadeira essência deste povo. Há uma cena em que Natacha (uma menina criada na sociedade moscovita, que usa vestidos à la mode, penteados à grega, que fala francês e vibra com a valsa austríaca), usa um lenço tradicional russo estendido por uma criada, e dança animadamente ao ritmo da balalaica que um trabalhador rural dedilha. Essa demonstração do modo de ser russo - tão natural, tão instintiva em Natacha -, por parte de uma jovem que foi criada para os maneirismos "europeus", espanta e delicia um tio que vive à margem da sociedade, e portanto distanciado desse europeísmo que vinga na aristocracia imperial.
Neste volume, começam as emoções fortes. Desiludimo-nos fortemente com algumas personagens, deixamo-nos enternecer por outras. Acompanhamos um pouco do quotidiano, das vivências daquele povo tão à margem do resto do mundo, das suas dinâmicas sociais, ideologias e excessos, bem como da sua espiritualidade e ocasional abnegação. Neste momento a narrativa subdivide-se em vários núcleos, e todos me surgem interessantes e promissores, daí que me seja tão difícil parar de ler. Ontem, por volta da meia-noite, faltavam 90 páginas para encerrar o volume. Disse a mim mesma que terminava hoje, mas que ia "ler só mais um capítulo". Quando dei por mim, tinha avançado 30 páginas, só faltavam 60, ainda assim muitas, por isso terminava hoje. Sentei-me na cama, decidida a ir beber um último copo de água antes de dormir, e quando o fiz, com o livro no colo, iniciei a leitura de um novo capítulo e despachei mais 30 páginas. Fui beber o copo de água, voltei para a cama e olhei para o livro. Que importam as horas? Só faltavam 30 páginas, podia bem lê-las assim que abrisse os olhos, mas...
Aqui está um livro que não quero que acabe, mas cuja conclusão desejo alcançar o quanto antes. Pergunto-me porque nunca lhe tinha dedicado um pensamento sério, porque me mantive desinteressada dele até agora? Possivelmente porque julguei que não teria nada em comum com os russos, que não encontraria identificação com os seus dilemas. No entanto, a humanidade dos russos é tal e qual a nossa. Os dilemas são os mesmos transversais a cada indivíduo, a cada povo. Será que Deus existe? Será este o caminho da felicidade? Se viver apenas sem causar mal, viverei bem e serei absolvido? Terei coragem para deixar ir a pessoa que mais amo, e enfrentar a solidão após a sua partida? Um ano de afastamento será a eternidade para dois apaixonados? Devemos sacrificar os sentimentos ao bem-estar financeiro, à posição social e ao prestígio das nossas relações?
Parto para o terceiro livro com renovado entusiasmo, a torcer por estas pessoas e a desejar que cumpram os seus desejos e sejam bem-sucedidos nas suas lutas. Sempre consciente de que Napoleão irá violar a aliança a qualquer instante e marchar Rússia adentro, para destruir tudo o que sempre foi familiar a estas personagens. A Batalha de Borodino aproxima-se, e com ela há-de abrir-se uma ferida sem precedentes no orgulho russo. Aquilo que foi o maior fiasco de Napoleão, que levou à retirada mais catastrófica de um exército na história militar, e que custou a vida a 375 mil pessoas, no seu balanço final, será o absoluto desastre para os Rostov, os Bolkônski e os Bezukhov? Estas famílias atravessam-se entre Napoleão e o seu objectivo, e prevejo um final épico para os seus destinos.
Há imenso para dizer sobre os Os Irmãos Karamazov, seria uma dissertação interminável, que se multiplicaria várias vezes face ao volume real do romance, posto que cada parte, cada capítulo, cada diálogo e cada personagem daria origem a rios de tinta a seu respeito. Posto isto, talvez deva dizer que o que fica, no leitor, desta obra colossal publicada entre 1880 e 1881, isto é, terminada a dois meses da morte do autor, é uma necessidade premente de reflexão. Reflexão sobre todo e cada tema que nos é apresentado ao longo desta narrativa, em que o narrador se assume presente e inclusive condiciona a opinião do leitor. Mas, mais surpreendente do que esta familiaridade que o narrador estabelece com o leitor, é o facto de cada diálogo, de beleza incontornável, oferecer não raramente perspetivas opostas sobre um mesmo assunto, e a argumentação e contra-argumentação serem tão bem articuladas que parece impossível que tenham sido produzidas pela mesma cabeça.
Este é um romance de 768 páginas (na minha edição da Saída de Emergência, que aconselho por ser maleável e muito agradável a nível estético), que explora – de maneira até autobiográfica, segundo defendem alguns autores e críticos – a vida dos Irmãos Karamazóv. São eles Dmitri (Mitya), Ivan, Alexey (Aliocha) e Smerdyakov, este último ilegítimo. Cada um destes irmãos oferece um ângulo da Rússia czarista, empobrecida e raiada de contrastes. Dmitri é impulsivo, apaixonado, violento e movido por um profundo sentimento de injustiça para com o pai Karamazóv. Ivan é um intelectual introspetivo, que busca a solidão para desenvolver ideias revolucionárias e que rejeita a ideia dde Deus. Segundo Ivan, sem Deus tudo seria permitido. É a ele que se atribui o capítulo intitulado O Grande Inquisidor. Freud, que estudou esta obra a fundo para melhor compreender a psique do seu autor e as riquíssimas reflexões psicológicas nela contidas, considera esse trecho o que de melhor se produziu em literatura, e este romance em particular a maior obra da História. Nesse capítulo, Ivan expõe um seu poema em que opõe Jesus Cristo retornado para junto dos homens ao Grande Inquisidor, na Sevilha do século XVI. As reflexões que resultam dessa colisão – um livre pensador e um guardião da igreja – são atuais e pertinentes, e com toda a certeza escandalosas para a época.
"Eu sustento que basta destruir a ideia de Deus no homem, é por aí que deve começar. Oh, raça de cegos que nada compreendem! Quando todos os homens tiverem negado Deus… e eu creio que a época do ateísmo universal chegará (…) o velho conceito do universo desmoronar-se-á por si mesmo, sem canibalismo, desaparecerá a velha moral e tudo começará de novo. Os homens unir-se-ão para arrancar da vida tudo o que ela tiver para dar, mas só para o gozo e a felicidade da terra; enaltecer-se-ão nas asas do seu espírito, animado por um orgulho titânico, e aparecerá o homem-Deus. De dia para dia, ampliando indefinidamente as suas conquistas sobre a natureza através da ciência e da vontade, experimentando um tão íntimo prazer nisso mesmo que se compensarão com juros das suas antigas esperanças de gozos eternos. Todos saberão que são mortais e enfrentarão a morte com orgulho e serenidade de deuses.”
A história desenvolve-se de encontro em encontro, de monólogo em monólogo. É favorecido o encontro privado, onde as pessoas se revelam na sua essência, mas também se dão cenas de ajuntamentos, em que o autor teceu com mestria as nuances dos sentimentos e das ideias de cada interveniente, e ainda bordou com esmero os ímpetos da alma coletiva. Destaco a cena no Mosteiro, ao qual se havia juntado Aliocha (o anjo Aliocha), o presbítero (entidade moral máxima naquela comunidade), Dmitri, com as suas acusações e declarado rancor ao pai, Ivan, observador e racional, e um familiar afastado que se exaspera e choca com as ofensas trocadas entre pai e filho. A cena chega a ser cómica, mas o travo a tragédia eminente está sempre presente.
Aliocha é uma personagem de grande espiritualidade e comedimento, a voz que consola os dissabores das outras personagens e que, apesar de jovem, tem sempre um conselho sábio a prestar. Segundo Freud, deve o nome e parte da sua aura ao facto de que o próprio casal Dostoiesvki havia perdido um filho homónimo (Alexey) com a idade de três anos, pouco antes de dar início a esta empreitada.
É uma obra muito cerebral, mas também apaixonada. Cerebral porque o autor foi abrindo questões cujas respostas iam surgindo oportunamente ao longo da sua extensão. Por outro lado é uma obra de grande emotividade, porque são as paixões que movem os ódios e os amores dos Karamazóv, tantas vezes apontados como “uma família à parte” pelas personagens que com eles se cruzam, mas que, com toda a certeza, são um espelho fidedigno da Rússia do século XIX.
Sabemos que Dostoievski, tendo falecido com apenas 59 anos, viveu uma vida de grandes sobressaltos. O pai seria um tirano, o jovem sofreria de epilepsia, foi submetido a trabalhos forçados na Sibéria, desprezava o czar e a Rússia Imperial, e professava um ténue socialismo, bem como outras crenças que haveria de consolidar ao longo da sua vida.
Os Irmãos Karamazov é um romance de grande espiritualidade e senso filosófico, em que o autor não deixa de se questionar acerca da família, de Deus, da natureza humana e seus consequentes atos e impulsos. Uma obra maior que, um dia, espero encontrar alento para reler. Estou convencida de que, nas suas entrelinhas, virei ainda a deslindar muitas outras conclusões.
Opinião: "E disse o Senhor a Caim: Onde está Abel, teu irmão? E ele disse: Não sei; acaso sou eu guardador do meu irmão?" (Génesis 4:9) A Leste do Paraíso é um romance publicado por John Steinbeck em 1958, dez anos antes da sua morte e quatro anos antes de lhe ser concedido o Nobel. Li-o convencida de que a maturidade do escritor, em termos de imaginação, de domínio da língua e de compreensão do animal humano estavam no seu auge. Esta percepção levou-me a considerar que esta teria sido a última obra em vida de Steinbeck, mas estava errada. Assim sendo, o apogeu do autor não ocorreu necessariamente quando estava em posse de maior compreensão do mundo ao redor, mas num instante de clarividência em que decidiu debruçar-se sobre a sua família e os seus antepassados, e sobre a vivência dos habitantes do Vale do Salinas, na Califórnia. "Então Caim deixou a presença do Senhor, e viveu na terra de Nod, a Leste do Paraíso." (Génesis 4:9) Emprestando a esta obra um cunho vincadamente bíblico, Steinbeck projetou nas família Hamilton e Trask trechos da sua própria ancestralidade, personagens da sua vivência e episódios da sua infância e juventude. A família Hamilton é povoada de personagens inesquecíveis, bem como o núcleo Trask. O mais admirável são, no entanto, as relações. A dinâmica das relações marido e mulher, pai e filhos, irmãos, criados e amos. Várias personagens são francamente inesquecíveis – Adam Trask (Adão), Lee (o chinês sábio que nos enternece desde o início), Samuel Hamilton, o inventor louco e ternurento, a maquiavélica Cathy e os jovens Cal (Caim?) e Aaron (Abel?). Senti-me envolvida nos diálogos e nas decisões das personagens, torci por elas e sentei-me com elas sob as estrelas na noite californiana, a discutir vocábulos em hebraico, mitologia grega e literatura internacional. Steinbeck polvilhou este romance colossal de humanidade, de dúvidas existenciais. Importa-lhe menos a sociedade, a injustiça, e mais o indivíduo e os seus dilemas interiores. Neste romance debatem-se o bem e o mal, ao longo de três gerações da família Trask. O bem e o mal, anjos e demónios. Sempre à luz de algo intrinsecamente humano e fulcral: o livre-arbítrio. Sublime, como só Steinbeck. "- Sabes onde está o teu irmão? (...)- Não faço a menor ideia. Não me pagam para tomar conta dele." (A Leste do Paraíso) Sinopse: Com acento bíblico, o grande autor de As Vinhas da Ira define o universo de A Leste do Paraíso através das seguintes inspiradas palavras: “O assunto é o mesmo que cada homem tem utilizado como tema: a existência, o equilibro, a batalha e a vitória, na eterna guerra entre a sabedoria e a ignorância, a luz e a treva, o bem e o mal.” A Leste do Paraíso, vasto fresco levantado a partir do relato da vida de várias gerações de duas famílias norte-americanas, os Trask e os Hamilton, num período crucial da história dos Estados Unidos (1860, Guerra da Secessão – 1920, anos imediatos à Primeira Grande Guerra), proporcionou ao malogrado James Dean talvez o mais importante papel da sua carreira. Classificação: 5/5*****
Sinopse: Cândido ou o Otimismo é um conto filosófico de Voltaire, publicado pela primeira vez em Genebra em janeiro de 1759. A par de Zadig e Micromégas, é um dos escritos mais famosos de Voltaire, tendo sido reeditado vinte vezes em vida do autor.
O livro é pretensamente traduzido de uma obra alemã do Dr. Ralph, pseudónimo utilizado por Voltaire para evitar a censura.
No essencial, trata-se de uma crítica às teses do filósofo alemão Leibniz, convencido da excelência da criação divina, através dos princípios da «razão suficiente» e da «harmonia preestabelecida». Voltaire faz essa crítica através das aventuras de Cândido, um jovem alemão possuidor de um espírito simples e reto, nascido como filho ilegítimo no seio da nobreza e adotado pelo barão de Thunder-ten-Tronckh. É no castelo deste que vai ser educado por Pangloss, partidário, como Leibniz, de que «tudo está o melhor possível».
Depressa se torna evidente para os leitores o sarcasmo com que Voltaire trata não apenas as teses de Leibniz mas também o conservadorismo social e a nobreza arrogante.
Opinião:
"(...) Encontraram um negro caído no chão, não tendo mais do que metade do vestuário, isto é, umas ceroulas de tecido azul. Faltava àquele pobre homem a perna esquerda e a mão direita.(...)
- (...) é o costume - disse o negro. - Por vestimenta dão-nos umas ceroulas duas vezes por ano. Quando trabalhamos nos engenhos de açúcar e a mó nos apanha o dedo, cortam-nos a mão; quando tentamos fugir, cortam-nos a perna. Incorri nestas duas situações. É por esse preço que os senhores comem açúcar na Europa."
Candide ou l'optimisme, publicado em 1759 por Monsieur Le Dr. Ralph, que afinal era Voltaire, que afinal é François-Marie Arouet, foi a maior surpresa literária da minha vida. Jamais tive ambições de ler "Voltaire", e até me senti muito vaidosa nestes dois (curtos) dias em que me passeei nos transportes públicos com esta bomba literária nas mãos. Comprei o livro porque o herói desta sátira, o ingénuo Cândido, desembarca em Lisboa e sofre um terramoto, e ando embrenhada nesse estudo dos terramotos em Lisboa. No fim das contas, o livro valeu por cada parágrafo, e o terramoto ou a estadia em Lisboa são uma pequena vírgula neste mar de reflexões.
É importante deixar claro que quando decidi lê-lo foi sobretudo porque é pequeno - em conteúdo tem 128 páginas -, e porque é um livrinho bonito, outra primorosa edição da Relógio d'Água, que nos últimos tempos tem-se tornado a minha editora de eleição. Assim sendo, a expectativa era zero, sobretudo tendo em conta que deixei as minhas últimas leituras penduradas - A Montanha Mágica, O Homem do Castelo Alto e Quando Lisboa Tremeu.
Logo nas primeiras páginas, fui catapultada para a Vestefália e para o tom irónico, bem-humorado, o ritmo rápido, as situações inusitadas, as reações cândidas do nosso Cândido... Em breve surgem as hipocrisias, contradições e crueldades da sociedade do século XVIII, e nesse sentido é evidente que Voltaire fosse persona non grata em muitos círculos, como "libertador do espírito" que era. Voltaire, expondo Cândido às mais difíceis situações, parte da premissa defendida por Leibniz, seu adversário intelectual, de que no mundo tudo está bem, e tudo corre pelo melhor, e tudo é o melhor que pode ser (julgo que esta filosofia só convém ao poder, aristocrático e clerical, porque afasta o povo da contestação - e da consequente revolução, que estava ali ao virar da esquina). Este princípio, defendido pelo seu mestre Pangloss, por quem Cândido tem a maior admiração, é posto à prova nas viagens acidentadas do nosso herói, no decorrer das quais vai conhecendo todo o tipo de pessoas e se vai inteirando de que no mundo nada está bem, tudo poderia ser melhor.
Voltaire arriscou o pescoço ao expor a devassidão e a ganância dos clérigos, tão ou menos honestos do que os ladrões comuns, que mantém amantes e se batem por dinheiro e prestígio. Expôs a Inquisição, "na sua infinita crueldade", ridicularizou o costume de se fazerem autos-de-fé contra desgraças, ignorando a evidência de ser o auto-de-fé em si uma desgraça. As mulheres são objectificadas, violadas, cobiçadas e mantidas por homens desonestos, biltres sem honra nem moral. Em todas as realidades que percorre, a religião infecta o povo, escraviza-o, submete-o aos seus interesses e às suas lavagens cerebrais. O mundo, da Europa à América do Sul, está pejado de religiosos. Há jacobinos, oratorianos, jesuítas, franciscanos, e outros tantos que ele refere e que não chegaram ao nosso tempo, há também protestantes e muçulmanos, e todos se acham donos da verdade, e massacram os diferentes em nome do seu Deus.
Voltaire critica a escravatura e a opulência, o ócio e a malvadez, a presunção dos aristocratas e a crueldade dos costumes. A vida humana nada valia para os governos do século XVIII, que esquartejavam, queimavam, enforcavam, mutilavam, violavam e guilhotinavam o povo para que uma pequena elite mantivesse os seus privilégios.
Neste volume atreveu-se a demonstrar, por a + b, que somos todos iguais e que qualquer governo pode cair a qualquer instante. (Esta ideia tão simples abalava os alicerces do Absolutismo Régio, que estipulava que o rei era intocável e omnipotente, e que Deus o elegia para soberano de um povo. Estas ideias de que os reis são facilmente depostos despoletavam a cólera dos monarcas, e terão granjeado a Voltaire uma horda de inimigos.) Diria que o povo é quem mais ordena e, como pilar do Estado, chegava a hora de tomar as rédeas do seu destino, e de se libertar da tirania dos governos.