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Castelos de Letras

Em torno das minhas leituras!

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Em torno das minhas leituras!

#249 HAMSUN, Knut, Pan

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Sinopse: Pan é, desde a sua publicação, um dos livros mais apreciados e amados de Knut Hamsun. Uma obra-prima da literatura, onde «a natureza fala na língua subtil e sonhadora de um breve e idílico Verão nórdico».

Através dos papéis encontrados depois da sua morte, o tenente Glahn relata-nos a sua trágica paixão pela jovem Edwarda, num crescendo de exaltação que invade e se confunde com a paisagem envolvente, tor­nando-se difícil distinguir entre natureza e psique.

Opinião: Ainda no outro dia se falava, algures pelo Instagram, sobre comprar-se livros pela capa. Comprei Victoria (1898) precisamente pela capa, depois ajudada pela sinopse. Gostei tanto que pouco depois me comprometi a adquirir Fome (1890, vejo-o sempre esgotado), e este Pan (1894).

Pan é uma figura da mitologia grega, meio humano meio animalesco (focinheira e chifres), divindade dos bosques, e portanto dos pastores e dos caçadores. Uma breve leitura a seu respeito revela-nos que o seu lado humano lhe conferia sentimentos ternos, bem como a capacidade de se apaixonar. Porém, o seu lado animal levava-o a destruir tudo o que acarinhava.

O título do romance entrelaça-se com perfeição nesta figura mitológica. O enredo decorre numa ilha nórdica que o autor nunca chega a nomear, onde o Tenente Glahn se isola numa cabana de caça com o seu cão, Esopo. É a sua voz que nos guia através das estações e da paisagem, das noites de ferro, do ir e vir das embarcações no cais da ilha. Glahn é um jovem mistério para os habitantes da ilha, que acabam por se sentir atraídos pelo seu modo de vida e pela sua maneira de ser. Vêem algo de romântico no homem solitário que percorre a montanha com a espingarda e o cão, caçando para viver, cozinhando a própria comida, observando a natureza e a aurora boreal sem outra companhia que não os seus próprios pensamentos.

No início do romance, Glahn está em plena harmonia com a natureza ao seu redor. Disserta a respeito da paz e da felicidade que o mundo ao seu redor lhe inspira, com a sua tranquilidade e os seus ciclos. Porém, a dada altura, conhece Edwarda e o seu pensamento afasta-se do campo terreno para o mundo volátil dos sentimentos e das dores amorosas. Passa a experimentar ciúme e despeito, o que o transforma num ser por vezes cruel.

Knut Hamsun é uma figura controversa da literatura internacional. Terá sido uma figura errante que se entregou a períodos de vagabundagem ao longo da sua vida. Viveu na Noruega mas também na América do Norte, e a sua obra literária despreza o progresso e o mundo cosmopolita. Era grande apreciador da natureza, e um grande admirador da Alemanha e da sua visão do mundo, tendo-a apoiado em ambos os conflitos mundiais. Em 1920, foi galardoado com o Prémio Nobel da Literatura. Como defensor do regime nazi, e tendo inclusive apoiado a invasão do seu país natal pelo III Reich, chegou a escrever uma elegia a Hitler após a sua morte, engrandecendo as suas qualidades de guerreiro e pensador. Essas posições valeram-lhe um internamento psiquiátrico no pós-guerra, partindo do princípio de que sofreria de algum tipo de patologia que lhe condicionava as ideias. Ainda assim, em pleno internamento, escreveu a sua última obra, criticando os profissionais que duvidavam das suas capacidades mentais.

"Fome", "Pan" e "Victoria" formam uma espécie de trilogia que ilustra uma fase da escrita do autor, em que se evidencia o pensamento panteísta (o universo e Deus como um só, para simplificar, sendo que Deus se manifesta através do universo e mais concretamente da natureza), um lirismo que me recorda o romantismo de inícios do século XIX, embora com trejeitos de maldade.

"- Podias dar-me o Esopo?
Eu não hesitei. Respondi-lhe:
- Sim.
- Então talvez possas vir amanhã e trazê-lo contigo - pediu ela.
(...)
Porque razão teria ela pedido para aparecer pessoalmente e levar-lhe o cão? Iria ela dizer-me alguma coisa e falar comigo pela última vez? Já não tinha qualquer tipo de esperança. Como iria ela tratar Esopo? Esopo, Esopo! Irá torturar-te! Irá chicotear-te por minha causa, com e sem razão (...).
Chamei Esopo para junto de mim, afaguei-o, juntei as nossas duas cabeças e peguei na minha arma. Ele já gania de prazer, pensando que iríamos sair para caçar. Juntei as nossas cabeças novamente, encostei o cano da arma ao pescoço de Esopo e disparei...
Paguei a um homem para levar o corpo de Esopo a Edwarda."

Espero voltar a lê-lo em breve, embora nem toda a sua obra esteja disponível em português, coisa que entendo porque vejo um fosse ideológico e estilístico entre este tipo de literatura e a que foi vingando na Europa do Sul. 

Classificação: 4,5*****/5

#247 HESSE, Herman, Siddhartha

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Sinopse: Siddhartha, filho de um brâmane, nasceu na Índia no século VI a.C. Passa a infância e a juventude isolado das misérias do mundo, gozando uma existência calma e contemplativa. A certa altura, porém, abdica da vida luxuosa, protegida, e parte em peregrinação pelo país, onde a pobreza e o sofrimento eram regra. Na sua longa viagem existencial, Siddhartha experimenta de tudo, usufruindo tanto as maravilhas do sexo, quanto o jejum absoluto. Entre os intensos prazeres e as privações extremas, termina por descobrir «o caminho do meio», libertando-se dos apelos dos sentidos e encontrando a paz interior. Em páginas de rara beleza, Siddhartha descreve sensações e impressões como raramente se consegue. Lê-lo é deixar-se fluir como o rio onde Siddhartha aprende que o importante é saber escutar com perfeição.

Opinião: Este foi o primeiro livro que li da autoria de Herman Hesse, naturalizado suíço e vencedor do Prémio Nobel da Literatura em 1946.

Hesse aproximou-se da cultura e filosofia oriental durante uma viagem à Índia, em 1911, e essa viagem marcou profundamente os seus trabalhos. De salientar que viveu as duas Guerras Mundiais, com toda a carga emocional a elas associada.

Não consigo pronunciar-me acerca de Siddhartha sem evocar as minhas crenças espirituais; isso é um dos contributos do livro para o leitor - a ideia de que a espiritualidade é algo que vem de dentro, que se busca em nós e no Samsara (uma espécie de energia que une todos os seres vivos e que funciona como fluxo constante da vida, fazendo com que passado, presente e futuro sejam um só). Eu não acredito em religiões - acho que as religiões servem o único propósito de controlar as massas, e outras servem apenas os homens e a sua ganância. Há "igrejas" que são, na realidade, empresas com objectivos estabelecidos que visam enriquecer uma cúpula de privilegiados. Sou obrigada a mencionar o Edir Macedo e a corja de cães gulosos da IURD, que sugam a alma e a paz aos desgraçados que por lá aparecem para ouvir o Evangelho. Em Mateus (19; 24), encontramos a célebre citação de Jesus: "é mais fácil fazer passar um camelo pelo buraco de uma agulha do que um rico chegar ao Reino dos Céus", e acredito que esta simples ideia tenha dado azo a muito debate. Não concordo com ela numa visão socialista (todos os ricos são maus), mas sim numa visão céptica, em que nem sempre quem é rico é-o por mérito próprio ou através do próprio suor. Este tipo de doutrina não interessa aos cães gulosos, mas é aquilo que de mais significativo encontramos sobre aquilo que seria a filosofia de Cristo. Isto e o não pedir nada, porque me parece que na Bíblia as maiores bênçãos chegavam para os humildes, para os que se arrependiam, para os que nada pediam (tantas vezes nem sequer perdão, pois que Maria Madalena está perdoada antes sequer de abrir a boca).

Neste ponto esclareço que, para mim, Jesus é quando muito uma figura política, alguém cuja visão permitiu compreender as injustiças sofridas pelo povo Judeu às mãos dos seus opressores (no momento histórico em que viveu, referia-se aos romanos).

Siddhartha é um pequeno romance (ou "poema indiano") de aproximadamente 140 páginas, ao longo das quais acompanhamos o curso da vida de um filho de brâmane, portanto um sacerdote de bom estatuto na organização social hindu. Este jovem brâmane, de nome Siddhartha, decide não se cingir a uma doutrina, nem sequer à que o seu pai pratica, e ir pela Índia em busca de si mesmo. Juntando-se aos samanas, peregrinos no limiar da pobreza, que vivem de meditação e esmolas, aprende a jejuar, a pensar e a esperar, e com outras entidades aprenderá outras tantas lições importantes sobre si mesmo e o universo.

"Ninguém conseguirá a libertação através de doutrinas! Com ninguém, ó Venerável, conseguirás partilhar e dizer o que te aconteceu na hora da tua iluminação! (...) Esta é a razão pela qual prossigo a minha peregrinação (...) para abandonar todas as doutrinas e todos os mestres, para alcançar sozinho o meu objetivo ou para morrer."


O que me parece mais valioso nesta odisseia do jovem Siddhartha é a ideia, tantas vezes controversa, de que a espiritualidade é algo de profundamente pessoal, e que ninguém tem como viver essa viagem pelo outro. Em suma: de nada adianta sentar e escutar aquilo que um Homem esclarecido tenha concluído da sua própria busca espiritual, porque qualquer explicação será oca se não a vivenciarmos. De nada adianta idolatrar alguém só porque reconhecemos nessa pessoa alguma santidade, ou um espírito esclarecido, e vivermos à sombra dos seus ensinamentos. Por muito que a sua doutrina seja verdadeira, continua a ser a verdade daquela tal pessoa, e os significados profundos só fazem sentido para o indivíduo quando é ele a descodificá-los, ao seu ritmo e à luz dos seus próprios sacrifícios e experiências.

Eu sempre senti que a ideia de Deus, de sacralidade, de certo e de errado, vem de dentro de nós. Nunca consegui seguir uma doutrina, acenar em concordância com a leitura de textos ditos sagrados, ou seguir as restrições que tantas religiões impõem. Tantas vezes essas restrições às liberdades individuais são inclusive fruto do preconceito do Homem que interpreta "as escrituras", e não a génese daquilo que está escrito. Creio que, ao entregar-se a uma religião, ao admitir castrar a própria liberdade, o próprio pensamento, a própria capacidade de contemplação, por direccionamento de outrem - que julga ter um conhecimento superior sobre o mundo e o além - o transformamos na nossa consciência. A nossa consciência deve partir de reflexões profundas e de lições apenas por nós vividas.

O livro é muito prolífero neste tipo de reflexão, creio que não ofende nenhum credo - apenas direcciona, com naturalidade, o Homem a descobrir-se a si mesmo e às verdades que o satisfazem espiritualmente.

Recomendo!

Classificação: 4****/*

#245 FREUD, Sigmund, Cinco Conferências sobre Psicanálise

Opinião: 

 


Freud foi um revolucionário que se atreveu a estudar o comportamento humano, a traçar a história do indivíduo, a escutá-lo, a seguir as suas neuroses até à origem. Para isso, teve de se despir de muitos dos preconceitos e ideias pré-concebidas da época. Teve de sujar-se e de chocar. Por muito que os seus métodos pouco tivessem de científico, são a pedra base para o entendimento de traumas e neuroses, e como curá-las. Interessou-me sobretudo a sua asserção de como a sociedade, a civilidade, reprimem impulsos básicos do Homem enquanto animal, e de como isso conduz à doença de espírito e às chamadas "perversões".

“Antes ainda da puberdade, assiste-se ao recalcamento enérgico de certos instintos, e forças psíquicas como a vergonha, a repugância ou a moral estabelecem-se como guardiões destes recalcamentos. Com a puberdade, a maré cheia do apetite sexual será repreada pelas chamadas formações reativas ou de resistência, que canalização o seu curso para as vias ditas normais e que impedirão o reavivamento dos instintos recalcados. São sobretudo os impulsos coprófilos da infância, ou seja, o prazer associado aos excrementos, que estarão mais expostos ao recalcamento.”

De salientar que tinha um domínio admirável da palavra, e que foi-me possível seguir os seus raciocínios com facilidade.

Falamos de repressão (recalcamento) de ideias que as convenções nos obrigam a rejeitar - como a jovem que se alegra pela morte da irmã num primeiro momento, considerando que agora poderá casar-se com o cunhado - também se silenciam os impulsos sexuais das crianças (admitindo-se que o comportamento sexual se inicia muito cedo, com a exploração do próprio corpo e na relação com a mãe, o pai e o mundo ao redor. Freud aborda a interpretação dos sonhos como momentos em que o subconsciente se mostra vulnerável e projecta receios, traumas, para o universo consciente. Fala de hipnose e de como por vezes essa técnica de Breuer auxilia, e outras atrapalha, o tratamento. Lança luz a algumas questões fundamentais do comportamento - como os gestos falhados, os esquecimentos momentâneos, a relação entre pais e filhos.

Levou-me à conclusão de que o cérebro (para este neurologista) era algo que ele estudava com paixão e o qual encarava em toda a sua complexidade, tendo devotado a sua vida a procurar compreendê-lo. Volvidos 120 anos, ainda não sabemos tudo sobre narcisismo, psicopatia, depressão, ou mesmo sobre a pertinência ou possível utilidade dos sonhos para a consciência. Continua tudo envolto em mistérios que nem a ciência e a medicina conseguem explicar ou curar por completo. E a maravilha desses mistérios começou a ser desvendada por Freud.

Sinopse: A 27 de agosto de 1909, Freud desembarca nos Estados Unidos. É a primeira e última vez que pisa solo americano. Tem 53 anos e viaja a bordo do George Washington na companhia do seu estimado Ferenzci e de Jung, de quem se afastaria mais tarde. A Clark University, para onde se dirigiam e que celebrava o seu 20.º aniversário, situa-se na Nova Inglaterra, em Worcester.

As cinco conferências decorrem em setembro, em alemão e de improviso.

No auditório de médicos, psicólogos e professores, em geral céticos em relação à psicanálise, destacam-se o antropólogo Boas, Adolf Meyer, que se tornará um importante psiquiatra, o neurologista Putnam, o experimentalista Titchener e William James, que se encontrava doente, mas que queria «ver como era Freud».

#244 HAMSUN, Knut, Victoria

Sinopse: «Hamsun é o mais notável escritor norueguês desde Ibsen.» (Times Literary Supplement)


«Victoria», livro de rara beleza narrativa, é uma das obras mais representativas de Knut Hamsun. O enredo marca o regresso do autor de «Pan» – escrito quatro anos antes – ao tema do trágico desencontro amoroso, que tem na descrição da beleza taciturna e melancólica da natureza nórdica o seu espelho.
Johannes, filho de um modesto moleiro, que em jovem sonha trabalhar numa fábrica de fósforos para ter os dedos sempre sujos de enxofre e assim não ter de apertar a mão a ninguém, ama Victoria, jovem de família aristocrata mas com poucos meios financeiros. Contudo, o deles será um amor impossível, pois Victoria vê-se obrigada a casar com o rival Otto para salvar a família da bancarrota.
Em adulto, Johannes tornar-se-á num poeta, que se orgulha de conhecer os nomes das árvores e dos pássaros. Continuará a jurar amor eterno a Victoria, mas o sentimento que nutre por ela é fruto da obsessão, do orgulho e da distância, precipitando um trágico final quando chamado a cumprir-se. 


Opinião: 

"Alguém pergunta o que é o amor. Diremos: «O amor é um vento que murmura nas roseiras e depois abranda. Mas por vezes é também um selo inviolável, que dura toda a vida. Deus criou diversas espécies de amor: as que duram e as que perecem.»"

A vida de Knut Hamsun, que escreveu este Victoria em 1898, parece-me ter o cunho da existência dos grandes artistas. Uma solidão, um isolamento que começaram cedo e que nem a convivência com familiares ou casamentos (invariavelmente falhados) conseguem mitigar. Parece-me fascinante ler sobre este norueguês que passou por tantas paragens, que operou tantos ofícios, e que abominava o meio urbano. Também notável a seu respeito, é o facto de ter publicado um livro com 90 anos, com tal eloquência que deitou por terra o parecer psiquiátrico a que havia sido submetido, e que o declarava senil.


A proximidade à natureza - que nos concede recantos para reflexão, simplicidade e alimento, está muito patente nesta sua obra. Por toda a narrativa vêm denominadas flores, árvores, cursos de água, e são parte da história. Engraçado como a memória se imprime em locais específicos, ou em objectos. E como o amor surge destruidor, quando contrariado. Corrói o interior das personagens, afasta-as de si mesmas e dos seus valores iniciais, bem como da sua própria natureza.



Como a sinopse indica, trata-se de uma história de desencontro amoroso. O moleiro e Victoria, filha do castelão, impedidos de viver o seu amor juvenil um pelo outro, vão andar pela vida sob o peso dessa amargura. As suas vivências e escolhas acabam por ter sempre impacto no outro, pois que não conseguem existir dissociados. Talvez seja essa a faceta nefasta do amor: por muito que a pessoa deva viver a sua vida, e até se alegre que a outra também esteja a viver a sua, tantas vezes as alegrias de um são a morte de espírito do outro.



Achei uma obra de uma simplicidade desconcertante: Bela, angustiante, melancólica. Jamais associaria o seu autor a alguém que conduziu elétricos em Chicago ou que defendia o intelecto e os intentos de Hitler. Tempos complexos, essas décadas do século XX.

Classificação: 4****/*

#243 COETZEE, J. M., Desgraça

Sinopse: Desgraça é muito mais do que um relato social: é um relato de sobrevivência pessoal numa sociedade decadente. Passado na África do Sul pós-apartheid, este romance sincero e despudorado centra-se em David Lurie, professor universitário na Cidade do Cabo, de meia-idade, divorciado, que divide o seu tempo entre o desânimo das aulas e as satisfações momentâneas que encontra numa prostituta. Quando esta o deixa de atender, David desvia as atenções para uma jovem aluna, começando uma aventura sexual que, quando tornada pública, o leva ao despedimento e à humilhação.
 
Opinião: 
"Está bem, eu vou. Mas só se não tiver de me tornar numa pessoa melhor. Não estou preparado para me regenerar. Quero continuar a ser eu mesmo."
 
Galardoado com o prémio Nobel da Literatura em 2003, J.M. Coetzee é um Sul-africano naturalizado australiano. Este é o primeiro romance que li da sua autoria, e já acrescentei à lista, para ler, À Espera dos Bárbaros.
 
Interessa-me muito ler sobre África e as suas complexidades, e durante a leitura veio-me à ideia a trilogia das irmãs Keating sobre o Quénia. Mas o Quénia das irmãs Keating é um Quénia pós-domínio britânico, e a África do Sul de Coetzee é dos anos 90. Dói bastante o facto de ser tão contemporânea, mesmo porque há um senso doloroso de potencial desperdiçado.
 
A nossa personagem principal, o Professor David Lurie, é produto dessa complexidade cultural. Começa o romance com uma posição relativamente privilegiada, numa Universidade, e é destituído do cargo devido aos impulsos incontroláveis da sua sexualidade decadente. Como homem de meia-idade, horroriza-o a falência da masculinidade, do intelecto, do vigor dos membros para realizar tarefas manuais. Junto da filha, uma mulher corajosa que nunca cheguei a compreender por completo, terá oportunidade de reflectir um pouco sobre si mesmo, as suas acções, a sua personalidade e o que, em si e na África profunda, lhe parece imutável.
 
O David Lurie de Coetzee não é heróico, nem um idealista, nem se propõe a mudar coisa alguma. É apenas um homem já não muito novo, já não muito forte, perante uma sociedade estratificada e dura que não perdoa um deslize, mas que, ainda assim, é prolífera em favoritismos, em tirania subtil e em crueldade humana.
 
Terminei o romance com um travo a angústia e a frustração. África é sempre mágica, e também é sempre implacável. Este romance mostra-o com grande competência.
 
Classificação: 4/5****

#241 SLIMANI, Leïla, Canção Doce

Sinopse: Mãe de duas crianças pequenas, Myriam decide retomar a actividade profissional num escritório de advogados, apesar das reticências do marido. Depois de um minucioso processo de selecção de uma ama, o casal escolhe Louise. A ama rapidamente conquista o coração dos pequenos Adam e Mila e a admiração dos pais, tornando-se uma figura imprescindível na casa da jovem família.
O que Myriam e Paul não suspeitam - ou não querem ver - é que a sua pequena família é o único vínculo de Louise à normalidade. Pouco a pouco, o afecto e a atenção vão dando lugar a uma interdependência sufocante, com o cerco a apertar a cada dia, até desembocar num drama irremediável.
Com um olhar incisivo sobre esta pequena família, Leila Slimani aponta o foco para um palco maior: a sociedade moderna, com as suas concepções de amor, educação e família, das relações de poder e dos preconceitos de classe. Com uma escrita cirúrgica e tensa, eivada de um lirismo enigmático, o mistério instala-se desde a primeira página, um mistério que é tanto sobre as razões do drama como o das profundezas insondáveis da alma humana.

PRÉMIO GONCOURT 2016, o mais importante prémio literário francês.

Opinião: Chanson Douce, vencedor do prémio Goncourt em 2016, é o segundo romance da franco-marroquina Leïla Slimani, e remexe nos lugares pútridos da vida moderna, quotidiana, inquestionável.

Conforma a sinopse adianta, esta é a história de como a babá perfeita perde a sanidade, o senso de pertença, até se abandonar ao acto abominável de assassinar as duas crianças que tem a seu cargo. Este enredo é uma adaptação livre do caso de Yoselyn Ortega, uma ama que, em 2012, matou as duas crianças a seu cuidado.

A premissa que o livro defende é o que levou uma mulher submissa, servil inclusive, dócil e responsável, maternal e prestável, confiável, a cometer um crime tão hediondo?, ou, noutras palavras, o que leva uma pessoa a transformar-se num monstro?

Eu diria que o livro é pertinente em muitas frentes, sendo a principal a evidente questão das desigualdades sociais, que cavam fossos de entendimento entre as pessoas. Esses fossos podem atenuar-se com a familiaridade de um emprego/patrão, ou podem aprofundar-se quando as diferenças são obrigadas a conviver tão de perto.

Na Paris dos Massés, Myriam (franco-marroquina) e Paul, enquanto uns se focam na ascensão social e económica, no prestígio e no cumprimento de sonhos materiais, outros debatem-se com polibans bolorentos, comem os restos dos patrões e, por muito que oiçam dizer que são parte da família, são sempre insubordinados, e são apanhados num limbo estranho, no qual pairam entre serem estranhos ao casal, mas familiares às crianças e ao ambiente doméstico.

Louise, a personagem principal, é uma loirinha bonita e frágil, muito limpa, na casa dos 40 anos. Uma vez que não encontrei menções à sua nacionalidade, assumi que é francesa. Myriam é muçulmana, magrebina. Aqui todas as diferenças contam, porque Louise, com toda a competência no seu trabalho, todas as referências que levam à sua contratação, não construiu nada, não tem nada. O seu carácter submisso levou a que o próprio marido tivesse dirigido a vida do casal enquanto era vivo, deixando-a enterrada em dívidas. Vive em situação precária, de tal modo que o apartamento dos Massés, a sua rotina e sobretudo as suas crianças transformam-se na sua única motivação, na sua única ligação ao mundo real, digno e limpo, luminoso, arejado.

Louise está destruída psicologicamente. Sozinha, confusa, receosa do futuro, desligada de todas as responsabilidades fora do apartamento, a vida de Louise torna-se suspensa da existência dos Massés, e está disposta a tudo para evitar um afastamento.

Não atribuo 5* a este livro com o tom de uma crónica porque senti que, perto do fim, faltaram ali alguns alicerces psicológicos. Louise está pressionada, mas estará no limite? Como se passa da mulher que adora os seus meninos, endividada e no caminho da paranóia, para a mulher que se vale de uma faca de cozinha para acabar com a vida dos seus mais-que-tudo?

Expõe a hipocrisia da nossa sociedade ocidental, supostamente igualitária, inclusiva, sem preconceitos. Vale muito a pena.

Classificação: 4****/*

#235 ORWELL, George, Animal Farm

Sinopse: A farm is taken over by its overworked, mistreated animals. With flaming idealism and stirring slogans, they set out to create a paradise of progress, justice, and equality. Thus the stage is set for one of the most telling satiric fables ever penned –a razor-edged fairy tale for grown-ups that records the evolution from revolution against tyranny to a totalitarianism just as terrible.
When Animal Farm was first published, Stalinist Russia was seen as its target. Today it is devastatingly clear that wherever and whenever freedom is attacked, under whatever banner, the cutting clarity and savage comedy of George Orwell’s masterpiece have a meaning and message still ferociously fresh.

Opinião: Ouvido em audiobook, em Inglês.

Beasts of England, beasts of Ireland,
Beasts of every land and clime,
Hearken to my joyful tidings
Of the golden future time.

Soon or late the day is coming,

Tyrant Man shall be o’erthrown,
And the fruitful fields of England
Shall be trod by beasts alone.

Rings shall vanish from our noses,

And the harness from our back,
Bit and spur shall rust forever,
Cruel whips no more shall crack.


Riches more than mind can picture,
Wheat and barley, oats and hay,
Clover, beans, and mangel-wurzels
Shall be ours upon that day.

(...)

For that day we all must labour,
Though we die before it break;
Cows and horses, geese and turkeys,
All must toil for freedom’s sake.


Publicado em 1946, O Triunfo dos Porcos, na minha opinião um título que lhe cai melhor do que A Quinta dos Animais (tradução literal), é uma alegoria assustadora do que vinha e viria a acontecer na Rússia Soviética durante as décadas seguintes, mas sobretudo durante o governo totalitário de Estaline.

Nesta obra do escritor britânico, também famoso por A Guerra dos Mundos e 1984, temos Mannor Farm como os limites do Estado Soviético, e os animais como os seus operários. O antigo caseiro, ou tratador, o demónio Mr. Jones, é possivelmente o czar assassinado, removido de cena para que os animais da quinta possam livrar-se das ordens, do chicote, dos símbolos da escravidão (as coleiras, os lacinhos e torrões de açúcar das éguas, as cercas, a sela, etc.). Tudo começa com uma revolução liderada pelos animais mais inteligentes e mais capazes de conduzir o discurso e, portanto, galvanizar os restantes: os porcos.



Os porcos abrem os olhos de todos os animais para a exploração de que são alvo, e para a brutalidade das condições que enfrentam, e para a injustiça da sua condição de servos dos homens. Alguns animais, como Boxer, um cavalo idealista, abraçam a essência desse espírito, vêem-lhe Verdade e sentido, e adoptam um mote "I will work harder", para que tudo seja melhor para todos, agora que os benefícios que a quinta tem para oferecer serão compartilhados por todos. Todos os animais são iguais é um dos sete mandamentos que conduzem o espírito da revolução e que servem de regras para a conduta de todos.


Esse espírito de união que os conduz, em colectivo, a uma viragem de "regime", rapidamente é deturpado a favor de um pequeno círculo de animais - os porcos, que de tanto se verem na liderança da revolução, das ideias, da criação de novas estruturas -, acabam por ser corrompidos pela própria ganância e começam eles próprios a explorá-los. Para isso valem-se de propaganda, de um discurso de medo que os recorda os horrores dos quais estão agora a salvo, da intimidação (usam cães que criaram desde o nascimento como seus guardas pessoais, diria que representam a máquina militar soviética), e em suma reescrevem a História a seu favor, convencendo os restantes de que sempre viram mais, melhor e mais além, e de que tudo o que levam a cabo é para o bem geral. Em breve os porcos estão afastados do trabalho em si, que é levado a cabo com mais ou menos entusiasmo pelos restantes animais, e começam a arrebatar-lhes os melhores frutos da terra. O Homem, inimigo da Quinta dos Animais, e do animalismo (socialismo), torna-se num parceiro conveniente de troca para os porcos, que o usam para obter luxos e extravagâncias (como álcool) que a Quinta não consegue produzir, e os quais cobiçam.

O lema de que todos os animais são iguais, com o passar dos anos, transforma-se em "Todos os animais são iguais, mas uns são mais iguais do que os outros", e assim, de um modo simples, Orwell desmonta os princípios do socialismo. Para mim, tudo se resume a: não se pode confiar que os lobos e as ovelhas vivam em harmonia e trabalhem para a mesma causa, porque a natureza de uns e doutros leva sempre à exploração dos mais fracos.

Vou lê-lo assim que possa, não vá ter-me escapado algo no audiobook.

Delicioso!

PS: Estou apaixonada pelo Boxer e pela Molly! 

#231 LOCKHART, E., Quando éramos mentirosos

SinopseA família Sinclair parece perfeita. Ninguém falha, levanta a voz ou cai no ridículo. Os Sinclair são atléticos, atraentes e felizes. A sua fortuna é antiga. Os seus verões são passados numa ilha privada, onde se reúnem todos os anos sem exceção. É sob o encantamento da ilha que Cadence, a mais jovem herdeira da fortuna familiar, comete um erro: apaixona-se desesperadamente. Cadence é brilhante, mas secretamente frágil e atormentada. Gat é determinado, mas abertamente impetuoso e inconveniente. A relação de ambos põe em causa as rígidas normas do clã. E isso simplesmente não pode acontecer. Os Sinclair parecem ter tudo. E têm, de facto. Têm segredos. Escondem tragédias. Vivem mentiras. E a maior de todas as mentiras é tão intolerável que não pode ser revelada. Nem mesmo a si.

Opinião: "Ninguém falha, levanta a voz ou cai no ridículo. Os Sinclair são atléticos, atraentes e felizes. A sua fortuna é antiga. Os seus verões são passados numa ilha privada, onde se reúnem todos os anos sem exceção."

Narrativa simples, despretensiosa, que dispensa demasiadas questões.Os Sinclair são perfeitos, e são-nos apresentados pela voz de Candace, de 17 anos - umas das netas e futura herdeira da sua fortuna. Ela e os dois primos, Johnny e Mirren, juntamente com Gat, são "os Mentirosos". Os Mentirosos são jovens idealistas que convivem com a família completa Sinclair e os seus tesouros, segredos, ambições, todos os verões na sua ilha privada. Os Sinclair têm uma ilha privada onde cada uma das três filhas de Tipper e Harris tem a sua casa, sendo que depois se reúnem todos em Clairmont, a casa dos pais, para discutir quem tem mais direito a herdar o quê, e quem tem a cozinha melhor equipada, e quem deve ficar com as pérolas da mãe depois da sua morte.O que mais gostei no livro foi a prosa acessível, sem trejeitos desnecessários, que me pareceu adequada a uma adolescente com algumas preocupações existenciais, para lá da sua juventude e do seu estatuto de privilegiada. E também do contraste jovem/idealista e adulto/cínico. Li-o em dois fôlegos, fiquei surpreendida com o final e recomendo-o como uma leitura leve com alguma substância.Os Sinclair não são nada do que apregoam ser.


Classificação: 4/5*****

#226 HEMINGWAY, Ernest, O Adeus às Armas


"- Não tens a impressão de ser um criminoso, pois não?- Não - disse eu. - Quando estou contigo não tenho.- Tu és um rapaz sem juízo - disse ela -, mas hei de olhar por ti. Não é esplêndido, querido, que eu nem sequer sinta náuseas pela manhã?- Estupendo!- Tu não sabes apreciar a esplêndida esposa que tens. Mas não me importo. Hei de arranjar um lugar onde não te possam prender, e então seremos muito felizes. - Vamos já para lá!- Sim, querido. Irei para onde quiseres e quando quiseres.- Não pensemos em nada.- Está bem."


Opinião:
 Ernest Hemingway nasceu em Julho de 1899, perto de Chicago. Com apenas 19 anos, conseguiu que o exército italiano o aceitasse nas suas fileiras, no contexto da I Guerra Mundial, ocasião em que foi condutor de ambulâncias para a Cruz Vermelha. Por essa altura, terá vivido um amor - possivelmente o seu primeiro amor -, com a enfermeira Agnes von Kurowsky. Tudo isto parece ser a matéria-prima de O Adeus às Armas, volvidos dez anos. Tal como o próprio autor, a sua personagem principal, Frederic Henry, é condutor de ambulâncias no exército italiano, pelo que Hemingway pôde pôr a uso o seu conhecimento da realidade, cultura e particularidades dos italianos (creio ter lido algures que Hemingway dizia apenas escrever sobre aquilo que conhecia bem.)


A senhorita Von Kurowsky, que terá abandonado o nosso jovem autor por outro homem, será a provável inspiração para a enfermeira escocesa Catherine Barkley, com quem Henry se envolve com a guerra como pano de fundo. Também este detalhe tem um fundamento na vida do autor, e ajuda a conferir realismo à narrativa: O Adeus às Armasnão tem nada de heróico ou de épico, é apenas o conto de um punhado de humanos enleados na complexa - e incompreensível - teia da guerra e nas provações práticas da mesma (longe das politiquices).

A primeira obra que li de Hemingway foi Na outra Margem, entre as Árvores, publicado em 1950, quando Hemingway tinha 51 anos e, portanto, uma perspectiva diferente (apurada) da guerra, do amor, das mulheres. Considerei-o machista, misógino, aborrecido. Detestei-lhe os diálogos - por um lado povoados daquela pouca coesão caraterística da comunicação oral, por outro lado desconexos ao ponto de me exasperarem. Neste último, conheci um Hemingway com 30 anos, menos cínico, menos áspero, com um toquezinho subtil de humor, mas já com a mesma carga pesada, lúgubre, que parece ser o seu cunho em cada obra.

Neste livro, compreendi-o melhor. Compreendi que um rapaz de 18, 19 anos, partiu voluntariamente para o horror de um conflito Europeu, a um oceano e a um mundo de distância, onde sofreu um ferimento que lhe cravou mais de 200 estilhaços no joelho. Não consigo imaginar o susto, a alienação. Tão longe de casa, rodeado de estranhos, cheio da energia da juventude e, no entanto, metido numa cama de hospital. Surge a enfermeira bonita, estrangeira. É tudo muito exótico, ainda para mais o rapaz sobreviveu, está apaixonado e ela retribui. Deve sentir-se invencível, imortal. De repente ela foge com outro. Ele é devolvido ao teatro de guerra. Uma vez terminado o horror, volta a casa com os seus fantasmas, e encontra a América prestes a atirar-se aos loucos anos 20. Tem a cabeça cheia de obuses, de disparos, de baionetas e de granadas, da lama das trincheiras e dos clarões de artilharia, mas ao seu redor estão todos a dançar o foxtrot.

Resultado? O capitalismo é nojento. As mulheres umas levianas desmioladas. A guerra é tudo o que conhece, e nela há-de debruçar-se uma vez e outra, e ainda assim a guerra nunca faz sentido, em livro algum que escreva. Tudo o que Hemingway sabe é que entra-se na guerra com tudo o que se é e com tudo o que se tem, e que se sai dela despojado de si mesmo. A guerra engole tudo. Engoliu-o, mastigou-o e devolveu-o a um mundo que lhe era estranho e no qual ele se sentia um alienado. Moldou-o para sempre. Não será por acaso que se suicida em 1961, depois de uma vida de controvérsia, suposto abuso de álcool e alguns escândalos. Gostava de gatos - não me posso esquecer que Hemingway gostava dos místicos felinos, que têm tão pouco de bélico.

Gostei muito desta narrativa de guerra, e os diálogos (que ainda assim, por vezes, me parecem repetitivos e sem nexo) são ligeiros e ajudam a avançar nas páginas. Julgo que uma das principais críticas a este romance é que o amor entre Henry e Catherine parece supérfluo. Acabei por (julgar) entender que na guerra se está tão sozinho, mesmo quando rodeado dos "rapazes", que não é difícil apaixonarmo-nos. Fazer planos para os tempos de paz. Estar-se com alguém, na guerra, é como a ilusão de que talvez haja um pouco da nossa essência, do nosso lado emocional, que pode ficar salvaguardado dos horrores quotidianos. 

O final tocou-me, validou o romance, principalmente porque o livro segue um mesmo tom, sem grandes altos e baixos mesmo nos momentos de suposto climax emocional. Creio que Hemingway dirigiu muito bem o tom nesses acontecimentos finais. No fim, a sensação com que se fica é que é a guerra. E não se pode fugir da guerra. 
Mal ele sabia que a guerra ainda havia de persegui-lo por mais 30 anos, até um tiro ir, por fim, alojar-se-lhe na têmpora.

Classificação: 4,5/5*****

Sinopse: "O Adeus às Armas", muito provavelmente o melhor romance americano resultante da experiência da Primeira Guerra Mundial, é a história inesquecível de Frederic Henry, um condutor de ambulâncias que presta serviço na frente italiana, e da sua trágica paixão por uma bela enfermeira inglesa. O retrato franco e sem falsos pudores que Hemingway esboça da ligação amorosa entre o Tenente Henry e Catherine Barkley, arrastados pelo inexorável turbilhão da guerra, brilha com uma intensidade sem paralelo na literatura moderna, e a sua descrição do ataque alemão ao Caporetto – com as intermináveis filas de homens a caminhar à chuva, esfomeados, exaustos e desmoralizados – é decerto um dos grandes momentos de sempre de toda a história literária. Romance de amor e sofrimento, de lealdade e deserção, O Adeus às Armas, escrito quando tinha apenas trinta anos, é uma das obras-primas de Ernest Hemingway. 

#223 MAGALHÃES, Helena, Raparigas como Nós

Opinião: 

"Há dois tipos de amor: aquele que serve de comparação e ao qual comparamos todas as pessoas que vamos conhecendo ao longo da vida (era o que eu fazia, comparava todas as paixonetas ao Simão) e um outro tipo de amor que tive - e tenho - com o Afonso: aquele que acaba com todas as comparações porque tudo o que vivemos até então deixa de ter relevância."

Devo começar por referir que não costumo ler YA, e que, como alguns de vocês já devem ter reparado, ando a dedicar os últimos anos à leitura de clássicos ou algo equivalente a isso. A minha review fica então em parte condicionada por me sentir desligada de muitos destes dilemas dos jovens retratados em Raparigas como Nós. Ainda assim, e sobretudo na segunda parte (chamo assim a parte em que a protagonista, Isabel, parece remeter o leitor para o seu diário de quando tinha 14 anos), comecei a sentir que regressava a essa época, e que a premissa do livro talvez esteja bastante correta. A de que estamos cada um com a sua individualidade, mas numa maré de gente não tão diferente assim.


Comecei a leitura com bastante receio, porque realmente não é a minha praia. Mas a Helena é uma querida, e as reviewstêm sido tão boas que a curiosidade venceu-me. Entrei na leitura a medo, e não consegui sentir-me muito ligada aos acontecimentos até surgir a tal "segunda parte", quando a protagonista reencontra uma personagem de (apenas) três anos antes, e me recordei de como, até aí aos 20 anos, havia mundos entre os 15 e os 17, e entre os 17 e os 20, e agora é que é tudo igual, o ter-se 24 ou 25. Já não sei distinguir com que idade aconteceu o quê, porque já não há a escola a balizá-lo.


Perante um livro destes, que aborda uma adolescência semelhante à minha, é inevitável refletirmos sobre as nossas próximas vivências. Foi esse o curioso efeito da segunda parte, efeito esse que só se dissolveu no final. Coisas com que me identifiquei, e que trouxeram a nostalgia dessa década tão delicada:
- O aparelho nos dentes e o bafo metálico;
- Os miúdos a serem cruéis só porque sim, porque parece que temos de nos debater com um mar de gente para alcançar o respeito e o nosso lugar no mundo dos adultos;
- as miúdas giras a darem-se ares;
- o sentir-me à parte, ou que nunca seria parte dos cool, que no fundo eram os que já tinham tirado o aparelho ou tinham dentes naturalmente direitos, os que tinham roupa de marca, os cujos pais os deixavam de carro à porta da escola, ou os que tinham mais dinheiro para o lanche, os que viajavam para longe da cidade, ou mesmo do país, nas férias, os que tinham namorados/namoradas, os que não liam (isso parecia-me "normal"), os que bebiam cerveja à porta da escola, ou que fumavam atrás do pavilhão, etc. (na altura, tudo servia para que a cadeia alimentar sugerisse que uns estavam acima dos outros);
- o crush avassalador para cima de quem a melhor amiga nos empurrava, e que todos sabiam que era a nossa grande paixão, os papelinhos, as cartas de amor, o recortar das fotografias de turma, o discman e as primeiras bandas/artistas que me disseram algo - estávamos em 2001/2002 e era Eminem, Dido, Pink, Linkin Park, Incubus -;
- O ser super preocupada quanto ao meu próprio corpo, bem como a guerra aberta a pelos e ocasionais borbulhas;
- O julgar que os amigos de então seriam os amigos de sempre, ou que o amor de então seria o amor de sempre, porque o tempo passava tããããããão devagar.
Isto é o que mais me marcou no romance da Helena, que ela geriu como uma boa romancista, soltando pontas aqui e unindo-as ali, ao longo de c. 420 páginas em que dei por mim a recordar todos esses rostos, a minha "Marisa das Argolas", a minha "Alice", o meu "Simão", o "Zeca" e os outros todos. Acho que só isto é digno de parabéns, porque, quer nos identifiquemos mais ou menos com um romance, lhe encontremos mais ou menos defeitos de conteúdo, de interesses, etc., NÃO É FÁCIL ESCREVER UM ROMANCE e, digam o que disserem, nem TODA A GENTE CONSEGUE ESCREVER UM ROMANCE, muito menos os que surgem nos tops com nomes inventados por miúdas do secundário. Permitam-me dizer que há autores cujo nome começa por P., termina em F. e o nome do meio começa por C., que nunca escreveram um romance (daquilo que entendo da sua vastíssima obra), e até podem chamar "romance" a textos soltos em que a personagem principal tem o mesmo nome, ou algo do género, mas nós sabemos, cá entre nós, o que é um romance. Um romance é corte e costura, desenvolvimento de personagens, pontas soltas, mudanças, twists, dilemas morais, denúncia social, qualquer coisa que contribua com algo, que seja útil a propósito de algo, que ajude a resolver um bocado do caos geral, não só muitas páginas, mas muita gente e muita complexidade. Nos romances, o "João" apaixonado pela "Maria" tem família, um cão, uma carreira, uma rotina, uma tia vesga e um tio alcóolico, um passado e um presente.


A parte das drogas e do álcool, tão pertinente, levou-me a épocas até recentes, mas sobretudo ao ter-me sempre sentido à parte, alheada da maioria dos jovens ao meu redor, porque via essas coisas - talvez por experiências familiares - com uma seriedade que não lhes via ser atribuídas. Fui-me pondo à parte, fui sempre uma chata, tipo a Isabel. Mas antes uma chata do que alguém que não consegue cumprir-se, e que, por muito que se debata, é incapaz de se resgatar a si mesmo das amarras dos excessos da adolescência, e dela mesma por arrastão.


Sobretudo para um segundo romance, a Helena está de facto de parabéns. Sabem o que vejo? Este livro a ser retomado daqui a dez anos, e a Helena a contar-nos o que foi feito desta gente toda, à medida que ela própria for vivendo e tirando as suas conclusões, fazendo as suas aprendizagens. Fantástico como precisámos de 10 anos para nos vermos em adolescentes, e de mais 10 precisaremos para nos vermos como jovens adultos, e etc., etc. Será que a Isabel voltará, num livro tipo "Mulheres como Nós?", ou "Mães como nós?". Perdoem-me se vos traço o percurso cliché da maioria das senhoras, mas talvez a Isabel não o trilhe, tal como também não sabia bem o que queria fazer aos 17, e voltemos a vê-la fugir do esperado.


Julgo entender que há mais autores que costumam partilhar as playlists dos seus livros no Spotify, ideia que acho fantástica, porque mistura as minhas duas paixões. A Dora Santos Marques já me tinha pedido que partilhasse a do Demência, mas eu sou muito verdinha nestas coisas da tecnologia. No entanto, e num livro tão ligado à música, tal como, lá está, na minha própria adolescência as cantigas insuflavam significado aos momentos, faz todo o sentido que essa playlist exista e nos seja disponibilizada. Way to go, Helena!, ouvi-a durante a leitura, recordei-me de músicas daquelas que conhecemos de ouvido mas cujo artista/nome desconhecia.


Para terminar, acharia crucial levar este livro aos adolescentes, para que entendam que a idade e os problemas que atravessam são relativos, que em breve tudo estará terminado e que o importante, mesmo, é aproveitar cada minutinho dessa época mágica, com a qual passaremos o resto da vida a sonhar e a envergonhar-nos, eheh!


Sinopse:

Festivais de Verão, tardes na praia, experiências-limite com drogas, traições e festas misturam-se com amores improváveis e velhas amizades. Um romance intemporal nos cenários de Lisboa, Cascais e Madrid, que mostra tudo o que pode esconder-se atrás da vida aparentemente normal de uma rapariga… como tu.

«Beijamo-nos ao som daquela música que ouvia em casa sozinha deitada na minha cama. Durante o resto da vida, não importaria o que estivesse a fazer ou onde, quando ouvisse os primeiros acordes […], recordar-me-ia do olhar do Afonso fixado em mim, da sua mão no meu rosto, do meu coração a tremer e de me sentir a rapariga mais feliz do mundo. Porque Lisboa está cheia de bares a abarrotar de miúdas bonitas que, num piscar de olhos, se colocariam de gatas a ronronar nas suas pernas. Mas ele viu-me a mim.»
«Se algum dia se sentirem sozinhas, estranhas, deslocadas do mundo que vos rodeia, lembrem-se da Isabel, da Alice, da Luísa, da Marina e até da Marisa das argolas… Raparigas como nós.


Uma história de amor irresistível, que é também o retrato de uma geração que cresceu sem redes sociais. Pode uma paixão da adolescência marcar o resto da vida?

Classificação: 4/5*****