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Castelos de Letras

Em torno das minhas leituras!

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Em torno das minhas leituras!

#87 MAUGHAM, Somerset, Servidão Humana


Quer queiramos quer não, umlivro está impregnado do espírito do autor. Não significa que traduza tudo oque ele é nem todas as suas crenças; o autor pode, inclusive, ter-se esforçadopor explorar temas que lhe são desconhecidos e adoptar posturas que condena.Neste “Servidão Humana” descobri a grandeza da simplicidade. Eu desconfiava dasua existência, mas jamais a vira em tamanha graça e glória. É uma obragrandiosa na sua simplicidade. Não é sobre grandes vitórias, não é sobre umgrande aventureiro, sobre bravura, sobre perfeição incompreendida ou sobre umavida madrasta. É sobre os caminhos escolhidos, as consequências que aí advém eos diversos prismas pelos quais é possível encarar-se a situação. Phillip Carey tempé boto, é órfão acolhido pelos tios e cresce no puritanismo do Kent de finaisdo século XIX. Já crescido, passa a desprezar a languidez do tio, a sua inérciae o seu egoísmo, assim como ora se comove ora se exaspera com a lamechice exacerbadada tia. Deus é um amigo, uma verdade inabalável até certo ponto. Ao desistir,contudo, da carreira eclesiástica, vai estudar para a Alemanha e depara-se como protestantismo. Também um budista e um católico dividem o mesmo espaçoconsigo e todos, a par dele que é anglicano, parecem ver a verdade apenas nasua religião. Isso e a sua falta de insolência ou vaidade levam-no a concluirque a religião é, sobretudo, uma questão de geografia. Como ele próprio diz,teria grandes chances de ser protestante se tivesse nascido na Alemanha, oucatólico se tivesse nascido em Itália. Isso significa que, por não ser crentena fé anglicana, estaria condenado às chamas do Inferno? É aqui a primeiragrande viragem da sua vida. Deus já não comanda a sua vida; o bem e o mal advêmda sua percepção, as escolhas emergem duma mentalidade jovem no início de umséculo em que a própria sociedade, a economia, a tecnologia, a medicina, omundo, todo o resto se encontram em ebulição e em franca mudança. Phillip émuito distinto, convencido que está de que é um cavalheiro. As dezenas depersonagens – todas elas fortíssimas e indispensáveis – vêm baralhar-lhe asconvicções de si próprio. Perante um rico é um burguês patético. Perante umpescador é quase um aristocrata. Embora não seja da sua natureza ser snob – porque também ele é duramentemaltratado pela sua condição física e escassez de recursos – discriminainvoluntariamente várias vezes. É generoso, mas discreto, tímido e cobarde.Essa sua tendência em pregar-se a uma personalidade mais forte levam-no a tornar-sea sombra dos amigos na escola, na arte, na quase totalidade da sua existência.Ele vai-se dando conta disso, mas não confia no seu próprio juízo. Também istoé uma lição importante a assimilar.
E depois há a Mildred, claro. Opapel que, no filme de 1934, impulsionou Bette Davis para o sucesso. Feia,vulgar, snob, miserável,interesseira, estúpida e leviana. Uma simples criada que o humilha num primeiromomento e perante quem Phillip terá sempre tendência a deixar-se perder. Deixaque ela faça dele o que quer, desbarata a sua herança com ela, deixa-o traí-lode todas as formas possíveis e volta sempre a estender-lhe a mão quando elaregressa, por sua vez desdenhada por um homem mais esperto, que a vê comoaquilo que ela é. Que personagem perturbadora, esta Mildred, com a suadecadência moral, as suas mentiras, os seus falsos ares de senhora, os seusqueixumes, amuos, sorrisinhos e seduções fáceis, a sua gratidão fingida emomentânea, os seus clarões de fragilidade, o seu desinteresse por qualquerassunto que não entretenimento – jantares, teatro, passeios -, a suaignorância, “istudante”, a sua fúria sempre prestes a dar azo a outradiscussão. Os seus amores assolapados, rápidos a vir e a partir, dando lugar aódios exacerbados. E Phillip, seu bom “amigo”, a patrocinar-lhe férias com oseu melhor amigo, a cobri-la de chapéus e vestidos, a sustentar-lhe a filha deoutro. E depois vem a pobreza extrema, para ensiná-lo a valorizar o trabalho ea ver a vida no seu estado mais dificultado.
Amor, dinheiro, falta detrabalho. Acompanhando o crescimento de Phillip, a sua maturação, surgem assim,por ordem cronológica, os três motivos pelos quais as pessoas parecem dispostasa suicidar-se. E ele, ponderando fazê-lo por cada uma delas, vai-se obrigando aprosseguir. Os tempos são outros. O que é crucial na vida, afinal? Assumindoque esta não tem propósito, ficamos assim perante o seu único sentido; aausência de nexo. Sem um deus que o guarde, Phillip está por si próprio. A sonhar,a cometer erros atrás de erros, a almejar para si uma felicidade que pareceestar sempre ao lado daquilo para que ele se precipita. E então, numa conclusãobrilhante, pueril, verdadeira (sobre a qual eu própria discursei bastantedurante os meus tempos de faculdade), parece despertar para aquilo que, navida, se pode extrair de mais doce.
Aconselho vivamente a quemquer que queira experienciar os grandes sobressaltos da existência de qualquerum dos nove aos trinta anos deste Phillip. Tratanto-se de uma autobiografiaficcionada do próprio autor, posso apenas dizer que, como Phillip ou comoSomerset, Maugham é um espírito admirável.