#69 BRONTË, Charlotte, Jane Eyre
Sinopse: CharlotteBrontë conseguiu em Jane Eyre uma fusão perfeita entre o realismo e o romance,incorporando dois temas que persistem no inconsistente colectivo porqueexpressam aspirações humanas permanentes: o mito de Cinderela, a rapariga pobree oprimida que casa com o príncipe poderoso, e o mito do sucesso: arecém-chegada sofre, persevera e triunfa da adversidade.
No entanto, Jane Eyre não é um mero romance de evasão, tem uma verdade e umrealismo totais; nos momentos mais empolgantes da acção, os detalhes, como navida real, são solidamente prosaicos e mesmo o triunfo final de Jane é umtriunfo incompleto, à escala humana.
O que caracteriza a arte desta grande romancista inglesa, e ainda hoje aimpõe à nossa admiração é, essencialmente, ter sabido descer ao mais profundodos seres, mostrando-nos, na sua verdade integral, o mau e o bom, o forte e ofraco, na complexidade das suas motivações e das paixões que os dominam, averdade e a profunda riqueza das figuras que construiu, assim como a violênciaque as agita, e a humanidade de que vibram e que, página após página, não cessade nos manter suspensos e ansiosos.
Opinião: Tendo lido anteriormente OMonte dos Vendavais da irmã da autora, Emily Brontë, e conhecendo o enredodesta obra graças ao filme protagonizado por Mia Wasikowska (2011), julguei quea Charlotte seria preterida à irmã. Confesso que o enredo não me interessavatanto, porque sou um bocado adversa ao que pende para o sobrenatural. Mas emboa verdade o livro - ao contrário do filme, que me emocionou mas que não ficouexactamente guardado no meu consciente - conquistou-me e superou, como aliás jáé hábito, o filme homónimo.
Estas duas irmãs são tão boas que, apesar da mesma época e do provávelmesmo contexto em que foram criadas e educadas, a Emily é uma criadora e aCharlotte é, inegavelmente, outra. A sensibilidade de ambas é impossível demisturar ou dissimular. Enquanto a Emily é crua e mexe com ventos exteriores eperturbadores, a Charlotte mergulha fundo nos motivos ocultos de cada um, sendoque ambas fornecem quadros precisos da natureza humana em estádios diferentes.
Em Jane Eyre acompanhamos alguns dos demónios de carácterque parecem presentes n’O Monte dos Vendavais que a sua irmãpublicou alguns anos depois. A natureza a exaltar-se contra o Homem. O carácterambíguo das pessoas de que nos rodeamos. Mas a escrita de Charlotte é menosintrincada, sendo o Jane Eyre mais fácil de apreender, mais suave (menosáspero) do que a obra-prima da Emily. Também fala em loucura mas, enquanto aque a irmã descreve fervilha, estridente, e povoa cada gesto das personagens, aloucura em Jane Eyre é clínica e fonte involuntária dedissabores.
Deixem-me explicar o enredo deste clássico da literatura inglesa... JaneEyre é uma órfã acolhida por um tio bondoso, que se torna um fardo para a tia eos primos quando o dito tio falece. Deste modo transforma-se numa criançadifícil, vítima inconformada dos maltratos psicológicos e físicos a que ésubmetida. Eventualmente, acaba por ser afastada da família e encerrada emLowood, uma escola rígida para meninas. Sendo as condições miseráveis - fome,frio, trabalhos e insensibilidades - também aqui Jane não é feliz.
O calor humano chega-lhe quando, tendo ensinado em Lowood ao formar-se, setorna Perceptora da pequena Adèle em Thornfield e conhece o dono do seu novolar - Mr. Edward Rochester.
Aqui entra o evidente talento de Charlotte para as relações humanas. Mr.Rochester é multidimensional, mantendo apenas a constância quanto à aura demistério que o envolve e a um peso incómodo que recai sobre cada um dos seusgestos ou palavras. Não tivesse assistido ao filme e - ignorante da realidadedas suas circunstâncias - consideraria que apenas hesita porque faz poucodaquela que se torna, ao longo da leitura, a nossa querida Jane.Também neste ponto a Charlotte difere da irmã no seu Monte dosVendavais, porque todas as personagens deste são absolutamentedesprezíveis. Fascinantes precisamente pelo quão desprezíveis são e peloquanto, mesmo assim, nos interessamos pelo seu futuro.
Ao contrário do rol de personagens d’O Monte dos Vendavais -amorais, egoístas, cruéis, vingativos, imparáveis - a Jane é determinada,decente, bondosa, caridosa, preocupada com o certo e o errado. É incapaz deinfringir mal ou de quebrar as regras da moral e dos bons costumes, inclusivequando sai prejudicada dessa escolha. Este altruismo e abnegação torna estaobra tão rica e única, mesmo quando comparada com o conteúdo de outro clássicoda mesma época, elaborado por um punho com quem a sua criadora partilha o ADN,as circunstâncias e a educação.
Apesar de ser irremediavelmente apaixonada pelo Monte dos Vendavais, aconselho igualmente a obra da sua irmã a todos, visto ser fonte de raciocínios pertinentes que tornam acondição humana em algo intemporal. Li algures que é uma primeira obra aemergir sob o signo da emancipação feminina e de facto é-o, na medida em que aJane está à frente do seu tempo, tanto quanto Charlotte Brontë estava aoacenar-nos lá de trás, da bruma do início do séc. XIX, com valores tão actuais.
Classificação: 5*****