#50 Sombras de Imbecilidade Colectiva
Eugostava de poder ignorar as histerias colectivas, mesmo porque não me é muitohabitual fazer parte delas, mas adiante… É difícil.
Desconfiosempre do filme muito aclamado, do músico muito premiado, do livro muitovendido. Isto porque, e perdoem-me o snobismo, tudo o que é consumido àescala de fast food é porque temcaracterísticas pouco complexas, estandardizadas, que vão ao encontro dasmassas e que, portanto, cumprem requisitos “mínimos”. As massas, na minhaopinião, são ignorantes. Encaixo-me nelas em muitos estádios de ignorância,cada um tem aquilo onde fica às aranhas e aquilo que é a sua praia. A minhapraia são as artes. A literatura, sobretudo. Não significa que não me perca se sefalar de steampunk. Vamos lá ver aespécie de coisas que andou nas bocas do mundo ultimamente:
AsCinquenta Sombras de Grey (já aqui escrevi que até a minha avó, que sabe queadoro ler, me veio perguntar se tinha ficado para trás das suas amigasreformadas que andavam a ler “As Cinquenta Cores”).
APiradinha.
Avatar.
OShow das Poderosas.
HannahMontanah.
OCódigo da Vinci.
AsCinquenta Sombras de Grey.
Crepúsculo.
OSegredo, da Rhonda Byrne.
Casa dos Segredos.
HarlemShake.
One Direction.
AsCinquenta Sombras de Grey.
Frozen.
LadyGaga.
Pulseirinhasde elásticos.
Violetta.
AsCinquenta Sombras de Grey, já mencionei?
Emque consiste tudo isto? Além da palavra óbvia que ocorre? Diria que consistenuma linguagem universal, básica, simplista, que unifica todos sem excluirninguém e que é acessível, pelo seu baixo grau de complexidade, a todos. Trata-se de levar as massas no bico e enriquecer com a falta de selectividade e refinamento e fraco nível de exigência do público.
GangnanStyle nunca ninguém entendeu que raio é que o homem dizia, Harlem shake idem.Avatar? Uma espécie de Atlântida da Disney mas com recurso à nova tecnologia ea óculos 3D, vamos lá pôr-nos na vanguarda da tecnologia. Crepúsculo? Ai, queinovador, transformar o mau no galã da fita. Dá comichões na passarinha das teenagers, mas o pior é que muitasadultas também se deixaram abalar.
Por quevenho eu com este discurso arrogante e pretensioso, afinal? Quem sou eu para acharque os gostos se discutem? Passando adiante da certeza de que gostos sãogostos, na minha modesta opinião, os gostos sempre se discutiram, e istopreocupa-me.
Preocupa-meporque a literatura foi inundada por livros eróticos, livros não mais elaboradosdo que os da Harlequin da caixinha de sapatos da minha avó, que eu ia quandoera pequena apenas porque tinha curiosidades que não podia discutir (o Google nãoexistia, arrisco-me a dizer!).
Assusta-meque as pessoas gastem rios de dinheiro para levar os filhos ao concerto deTokyo Hotel e que acampem à porta do Pavilhão Atlântico (agora Meo Arena, paraquem veio há umas semanas do concerto da Violetta). Assusta-me que o franchising do Frozen não cesse derender dinheiro à Disney, quando se trata de um filme perfeitamente vazio. “Ahe tal sou muito moderna e independente e o filme não fala sobre um casal, éinovador e fala do amor entre irmãos”. Uma coisa cheia de lacunas, apressada,em que os grandes protagonistas são as paisagens de neve, um boneco de neve e ovestido da “rainha da neve”. Um filme sem diálogos, sem profundida, caído emclichés e lugares-comuns, mas com uma música que fica no ouvido e que érepetida até à exaustão.
Eagora As Cinquenta Cores (prefiro a versão da minha avó), essa bostade livro. Uma coisinha insonsa em que a autora (sou só eu que acho aprotagonista do filme, a Dakota Johnson, uma versão mais jovem da E. L. James?)celebra a sua inovação por ter aberto as portas a mais uma cultura dehisterismo? Ah, de repente as pessoas recordaram-se que há uma coisa chamadachicote e algemas. Antes também havia, mas era coisa de malucos que passamdemasiado tempo a jogar videojogos e que têm pancada e deviam ir ao médico. Derepente a senhora estava aborrecida, pega no Crepúsculo e distorce-o, removendoos dentes ao vampiro e inserindo atilhos e tampões anais no enredo, e a coisavira um fenómeno viral. De repente, pessoas que nunca liam livros inscreveram-sena rede social para bookaholics (Goodreads,não sei se há mais), atribuíam-lhe a pontuação máxima e diziam que nunca tinhamlido um livro melhor. Envolviam-se em discussões intermináveis sobre o quantoos outros eram conservadores e quadrados por não entenderem o quanto a autora éarrojada (e sensual, nossa, que sensualidade!) ao colocar o senhor Grey aremover o tampão à mocinha antes de a *****. De repente, as mamãs compravambaby-grows para os bebés a dizer “Há nove meses atrás a minha mãe leu AsCinquenta Sombras de Grey”, o que até é irónico, tendo em conta a tristequalidade da informação lá passada acerca de contracepção, que poderia levar auma gravidez indesejada. Tenho pena dos maridos, porque parece que algemas,tampões para orifícios até aí negligenciados, chicotes (e até corda efita-cola!) começaram a voar das prateleiras. Há alturas em que me ponho nolugar dos homens e tenho compaixão deles. Imagino a cara dos chatos dosconservadores que queriam tratar a mulher com respeito e tal, e ela lhes mete achibata na mão e pede que lhes aplique umas chicotadas.
Agraça maior é que as mulheres são um público – lamento dizer – fácil deconvencer. Um bocado como as crianças: os produtos que lhes são direccionadossó têm de brilhar um bocadinho que elas correm a comprar.
Acreditoque as mulheres ainda tenham muitas fantasias reprimidas, mas não acredito quetenha sido um livro miserável (do ponto vista literário ao do BDSM de acordocom as comunidades de entendidos) a tirá-las do armário. O que o livro abriu, eé pena que tenha sido ele a abrir, foi a porta para o diálogo. Se calhar fez asmulheres sentirem-se mais arrojadas, tomarem a iniciativa. O que até deveriaser contraditório, posto que, segundo consta, a mocinha é completamente abusadafísica e psicologicamente pelo homem de sonho das 46 mil mulheres que compraramo bilhete para a estreia no cinema (isso é o número de bilhetes, vamosconsiderar que pelo menos 6 mil são namorados forçados a ir ver o filme, sob afachada do “mente aberta”, que são eles próprios vítimas de violênciapsicológica por parte das mulheres). Este Dia dos Namorados de 2015 é outrachaga que os homens terão de carregar…
PS –Li 33 páginas do livro: tão mau, mas tão mau, que fui incapaz de forçar-me amais. E olhem que gosto de romances picantes (desde que haja algumacomplexidade nas personagens ou algum esforço da autora perante a história queconstrói). Não vou ao cinema ver o filme, não darei dinheiro para tal causa erecuso-me a fazer parte da histeria colectiva que ficou com a patareca aossaltos para estar lá no dia da estreia.
Masvou vê-lo, ah se vou! Os meus dedinhos tremem só de imaginar as atrocidades queterei a dizer depois. Muahahahahahah!