#305 FERNANDES, Madalena Sá, Leme
Opinião: Lido no kobo, não esperei gostar tanto deste «Leme».
Por um lado, até cerca de um terço do livro, senti que a questão da violência doméstica, por vezes subtil e até passiva, exigia uma estrutura mais densa, outro peso na narrativa que nunca mais vinha. O livro parece, em certa medida, escrito por uma mulher muito jovem, à qual falta uma certa profundidade. Parece uma voz mais juvenil, sobretudo porque antevemos o seu presente, sabemos que é adulta, mas talvez o livro só funcionasse com esse tom mais pueril.
No entanto, na segunda parte da leitura, que me agarrou pelo colarinho e que li de um fôlego, percebi que isto não é um retrato da vida da personagem, e que era essa tridimensionalidade da vida da personagem que estava em falta, e que eu continuava a procurar. Refiro-me a relatos do quotidiano em que o tal Paulo, o padrasto agressivo, não fosse a personagem principal. Foi então que me mentalizei de que o livro é sim um relato da vida com um padrasto abusivo, e vi-me obrigada a repescar o meu próprio lema, segundo o qual menos é mais. Portanto, a autora contornou a palha e levou-nos direitos ao padrasto tóxico.
Somos conduzidos pela sua infância, pelo casamento doloroso da mãe, pelas marcas que essa relação abusiva deixou nela enquanto criança e jovem. Apesar de, a tempos, o sentir um pouco superficial, houve momentos que me arrebataram por me identificar e/ou conhecer pessoas próximas que conviveram com este tipo de violência. Comoveu-me várias vezes, essa violência dos gestos bruscos, das portas a bater, dos estalidos de língua, dos objetos a voar e dos pontapés nas coisas. Toca ainda o tema da molestação de menores que, embora muito sucinto, é muito representativo dos casos reais.
Aquilo que lhe valeu as quatro estrelas foi, acima de tudo, o desprensiosismo ao contar a história, mas também os capítulos curtos que me iam catapultando de uma reflexão para a seguinte. A narrativa não tem exatamente um fio condutor - isto é, não está organizada cronologicamente, por exemplo -, mas isso também não faria sentido. Viajamos de evento marcante em evento marcante, em que por vezes o que dói é apenas a rotina numa casa que não é refúgio.
Houve dois ou três episódios que me atingiram realmente, (view spoiler), e acho que foi nesses momentos que senti a história como real, em que me recordei de que não estava simplesmente perante uma obra de ficção.
Não diria que é um portento da literatura, mas é uma boa estreia de uma autora portuguesa: uma voz sem floreados, episódios palpáveis, um enredo contemporâneo com o qual é fácil identificar-nos.
Vale muito a pena pela abordagem que faz a esta questão de amarmos e odiarmos aqueles que nos são próximos, e a como isso nos rasga a alma.
Sinopse: Leme é o relato da vivência de uma rapariga que assiste, durante anos, à erosão dos pilares que sustentam as ligações humanas: vê a mãe subjugada à violência do homem com quem mantém uma relação amorosa disfuncional; vive na pele a distorção dos papéis desempenhados por pais e filhos; alimenta-se da solidão para ultrapassar um quotidiano de medo e fúria; disputa um lugar só para si no meio do caos familiar; aprende a reconhecer o consolo das pequenas vitórias; e, por fim, reconstrói-se a si e às suas memórias.
Nenhuma criança conhece de antemão os nomes das coisas, mas todas as crianças reconhecem instintivamente o perigo. Para a protagonista desta história, o perigo tem o nome de um homem, e é sinónimo de obsessão, desequilíbrio, solidão, desamparo, poucas certezas e muitas dúvidas. Leme é um golpe de escrita para regressar à vida. Uma cintilação plena de vida e um soco no escuro que nos engole: eis um livro que aponta diretamente aos limites do bem e do mal.