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Castelos de Letras

Em torno das minhas leituras!

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#300 ERNAUX, Annie, O Acontecimento

300x.jpgSinopse: Uma jovem de 23 anos, estudante universitária brilhante, descobre que está grávida. Tomada pela vergonha, consciente de que aquela gravidez representará um falhanço social para si e para a sua família, sabe que não poderá ter aquela criança. Mas, na França de 1963, o aborto é ilegal e não existe ninguém a quem possa acorrer. Quarenta anos mais tarde, as memórias daquele acontecimento continuam presentes, num trauma impossível de ultrapassar e cujas sombras se estendem para além da história individual. Escrito com uma clareza acutilante, sem artifícios, este é um romance poderoso sobre sofrimento, justiça e a condição feminina. Escrito por Annie Ernaux em 1999, foi adaptado ao cinema em 2021 por Audrey Diwan, num filme vencedor do Leão de Ouro em Veneza.

Opinião: 

"Sendo a primeira a realizar estudos superiores numa família de comerciantes, tinha escapado à fábrica e ao balcão. Mas nem o liceu nem a licenciatura em letras haviam conseguido contornar a fatalidade da transmissão de uma pobreza da qual a rapariga grávida, tal como o alcoólico, eram símbolos. Tinha sido apanhada na curva, e aquilo que crescia em mim era, de certo modo, o fracasso social."


Foi a minha estreia com Annie Ernaux, e compreendi o elogio de como a sua obra conta a história de um século através de relatos com travo a autobiografia. Ao longo da leitura, senti várias vezes que estava a ouvir a confissão da própria autora. É a sensação que tive ao ler, mesmo porque a personagem está a contar "o acontecimento" a partir de 1999, volvidos 35 anos sobre o seu aborto ilegal, e o tipo de detalhes que recorda parecem fruto de uma imaginação sensível e progidiosa, ou de uma experiência traumática pessoal.

A relevância do livro é tanto social quanto política. É um ensaio relativamente simples - e, no entanto, de uma complexidade angustiante - sobre o significado de uma gravidez indesejada. Neste caso, o regresso à pobreza, hesito em dizer "estatuto", mas "estatuto" não significa apenas privilégio, tantas vezes significa segurança económica, aceitação social, respeito, reconhecimento. Também nos recorda das trevas que as mulheres tiveram de desbravar - ainda há 50 anos - para poderem interromper voluntariamente uma gravidez em segurança. A brutalidade dos métodos, a clandestinidade, a dor e o trauma que inflingiam a uma mulher, de resto, saudável. O risco, a sujeição. O julgamento social, a crítica direta, o crime.

Por outro lado, o pai da criança, e o facto de lavar completamente as mãos do assunto. De não estar obrigado a prestar nenhum apoio àquela mulher, de não fazer nenhum esforço para a ajudar num momento de desespero, porque não é nada com ele. Um retrato nítido do que significa o machismo e a sociedade patriarcal. O homem isento de culpa e responsabilidade, a mulher atormentada pelo julgamento moral e a pôr a própria vida em risco para manter o que conquistou e as perspetivas de futuro.

Ainda bem que o mundo evoluiu, desde aí. Era necessário.
Uma pequena obra com muito pano para reflexão. Fiquei com vontade de ler mais livros da autora.

Classificação: 5/5*****