#30 LOUREIRO, Célia Correia - Demência
Sinopse: No seio de uma aldeia beirã, Olímpia Vieira começa asofrer os sintomas de uma demência que ameaça levar-lhe a memória aos poucos. Aúnica pessoa que lhe ocorre chamar para assisti-la é a sua nora viúva, Letícia.Mas Letícia, que se faz acompanhar das duas filhas, tem um passado desobrevivência que a levou a cometer um crime do qual apenas a justiça aabsolveu. Perante a censura dos aldeões,outrora seus vizinhos e amigos, e a confusão mental da sogra, Letícia tentarefazer-se de tudo o que perdeu e dos erros que foi obrigada a cometer por amoràs filhas.O passado é evocado quando Sebastião, amigo de infância de Olímpia, surge paraampará-la e Gabriel, protagonista da vida paralela que Letícia gostaria de tervivido, dá um passo à frente e assume o seu papel de padrinho e protectordaquelas três figuras solitárias…
Opinião: Ontem terminei - atarde e más horas - a leitura do meu primeiro romance editado. Este Demênciafoi um trabalho descontínuo desde 2009, e foi culminar em cento e qualquercoisa páginas escritas de um sopro em Julho de 2011. Antes de o escrever, tinhauma ideia diferente para ele. Lembro-me de ir trabalhar para Lisboa, em 2007, aremoer a ideia de uma professora loira e baixa chamada Lavínia, que carregavauma filha pequenina no colo e que era ignorada pela pequena aldeia onde vivia -a aldeia da minha avó, que tão bem conheço - por ter sido obrigada a salvar-sedas maldades de um marido alcoólico e violento. Lembro-me também de carregar naideia uma idosa sem memória, muito à imagem da minha bisavó paterna, queperdesse capacidades a olhos vistos. E depois em 2009 surgiu a ideia de asjuntar a ambas, num enredo em que seria impossível entenderem-se mutuamente. Asogra detesta a nora - apenas está esquecida disso metade do tempo. E lembrei-mede polvilhar isto com duas crianças inocentes, mas espertas, um velhoteadorável (que é a minha personagem favorita, a par com um o Gabriel), e umprofessor céptico, inteligente e ligeiramente mal-humorado.
Agora que acabei de lero livro como leitora, fiquei fascinada. Apesar das gralhas ocasionais - lamentoa revisão do livro, deixou um pouco a desejar mas a verdade é que tanto eu comoa editora trabalhámos incansavelmente para alinhavar essas falhas. Falhas dequem escreveu metade em 2009, a um ritmo, e a segunda metade a um ritmo bemmais acelerado em 2011. Sou muito exigente com o que leio, tanto como com o queescrevo, e a história venceu-me outra vez, e vencer-me-ia sempre mesmo que nãofosse da minha autoria. Fui eu que a escrevi - mas mais do que um eu, Célia,fui eu, portuguesa. As palavras com que me expressei são aquelas, nãoforam traduzidas nem seleccionadas pela editora. São mesmo aquelas -desconcertantes, por vezes, duras, cruas, comoventes, descritivas, desoladoras.São aquelas e não outras.
Apercebi-me de váriasnuances do enredo que nem eu própria tinha tido noção de ter criado. Estouapaixonada com a complexidade do romance, com o puzzle subtil que seforma e que faz sentido no final, estou orgulhosa do modo como tudo se entrelaçae não há pontas soltas.
É um enredo sobre fé -não me tinha apercebido disso - e sobre sacrifícios a todos os níveis. Sobre os motivos pelos quais as pessoas sãolevadas a acreditar numa asserção, ou escolhem acreditar nessa asserção. Os motivos podem ser condicionados,inconscientemente, pelo próprio empirismo, pela racionalidade, pelosestereótipos, pelos preconceitos, pelas ideias pré-concebidas, pelo nossopróprio conhecimento, tantas vezes ignorante ou insuficiente, dos outros e dosfactos. Neste livro há muita gente a formar ideias só porque parecem a maisplausível. O que não significa que esteja correcta. As circunstânciasobrigam a que se adopte determinada versão de um facto, de uma verdadeincontornável, e a humanidade de cada um cimenta-a e acarinha-a, de modo quaseirredutível. Deu-me um prazer enorme alterar estas certezas, assim como me deuagora desmantelá-las ao ler. Sou obrigada a concordar que criei personagenshumanas, quase palpáveis. A complexidade das histórias pessoais, tão ricas, ospassados arrastados ao longo de décadas, de metades de século. As expectativas devida - tantas vezes goradas - os afectos que se acalentam e que ou triunfam oudão em nada, um quê de romantismo nu, cru, presente apenas na medida em que seama com mãos e alma rudes.
Não consigo ir para ogoodreads classificar o meu romance com cinco. Não posso dar-lhe cinco. Comomãe que o deu à luz, não me compete a mim clarividência para avaliar asqualidades do meu rebento. Mas, se me distanciar, posso dizer que lhe daria um4,5 sólido. Não lhe daria o cinco por um motivo plausível: tendo sido eu a mãocriadora, tenho consciência de tudo aquilo que gostaria de mudar. É deste 0,5 que não me consigo distanciar, como mãe. Mudar, mudar,apetece-me criar mais situações, voltar a pegar na Olímpia, na Letícia, nasmiúdas, no Sebastião, no Fernando, no Gabriel, na Pilar e no Pedro e criarnovos diálogos, novas interacções. Pôr os meus autómatos a caminhar em plenaaldeia, a ofenderem-se, a amarem-se, a apoiarem-se e a apedrejarem-se. Ontemtive até desejo de pegar num núcleo qualquer e criar uma segunda parte dahistória.
Quem sabe as memórias daOlímpia, escritas pelo Sebastião? Quem sabe pôr um obstáculo no casamentopontuado de fé da Pilar e do Pedro? Ou fazer crescer a Luz e conceder-lhe a suaprópria história?
Enfim, são tudo quimerasporque tenho outros projectos pela frente. Mas deu-me um prazer enormeescrevê-lo e é agradável saber que, quando estou com pouco apetite paraleituras, é o meu pequeno (não assim tanto) Demência que me pisca o olho daestante e é ele que me distrai. As páginas voam - como leitora, que bebe aspalavras que lê, e não como a escritora que lhes deu voz - nas minhas mãos.
Espero que quem quer queo leia retire este mesmo prazer dele. E que se recorde que o escrevi entre os19 e os 21 anos. Tenho toda uma vida pela frente para conquistar, para mimprópria, mais 0,5 pontos.