#286 NÉMIROVSKY, Irène, Suite Francesa
Sinopse: Escrito em plena tormenta da História, Suite Francesa descreve quase em directo o Êxodo de Junho de 1940, que reuniu numa desordem trágica famílias francesas de todos os quadrantes, das mais abastadas às mais modestas. Com grande audácia, Irène Némirovsky persegue as inúmeras pequenas cobardias e os fracos gestos de solidariedade de uma população à deriva.
Cocottes abandonadas pelos amantes, grandes burgueses enojados com a populaça e feridos abandonados em quintas entopem as estradas de França bombardeadas ao acaso... Pouco a pouco, o inimigo toma posse de um país inerte e amedrontrado. Como tantas outras, a aldeia de Bussy é então obrigada a acolher o exército ocupante. Exarcebadas pela sua presença, as tensões sociais e as frustrações dos habitantes despertam...
Suite Francesa é, ao mesmo tempo, um brilhante romance sobre a guerra e um documento histórico extraordinário. Uma evocação inigualável do êxodo de Paris após a invasão alemã de 1940 e da vida sob a ocupação nazi, escrito pela ilustre romancista francesa Irène Némirovsky ao mesmo tempo que os acontecimentos se desenrolavam à sua volta.
Embora tenha concebido o livro como uma obra em cinco partes (com base na estrutura da Quinta Sinfonia de Beethoven), Irène Némirovsky só conseguiu escrever as duas primeiras partes, Tempestade em Junho e Dolce, antes de ser presa, em Julho de 1942. Morreu em Auschwitz no mês seguinte. O manuscrito foi salvo pela sua filha Denise; foi apenas décadas depois que Denise descobriu que o que tinha imaginado ser o diário da mãe era na verdade uma inestimável obra de arte, que viria a ser aclamada pelos críticos europeus como um Guerra e Paz da Segunda Guerra Mundial.
Romance assombroso, intimista, implacável, desvelando com uma lucidez extraordinária a alma de cada francês durante a Ocupação (enriquecido e completado pelas notas e pela correspondência de Irène Némirovsky), Suite Francesa ressuscita, numa escrita brilhante e intuitiva, um momento decisivo e marcante da nossa memória colectiva.
Opinião: A fascinante Irene Némirovsky, de origem judia e nascida em Kiev, tinha planos para escrever um Guerra e Paz que narrasse a ocupação de França pelos nazis. Tinha-se naturalizado francesa havia muito, era casada e tinha filhas francesas. No entanto, sentia-se vulnerável devido às suas origens, e retirou-se para o campo com a família. Ali, enquanto esperava que o inimigo a encontrasse, acalentava a esperança de que isso nunca acontecesse. Escrevinhou um esquema geral para o romance colossal que pretendia criar, apontou as suas dúvidas, fez pesquisa, tirou notas acerca das personagens e suas vivências.
Suite Francesa é a minha estreia com a autora. Comecei por ler sobre a sua vida, e comovi-me profundamente. É costume dizer que não se deve confundir o autor com a obra, nem ler a obra influenciado pela figura do autor. Neste caso, a narrativa está tão entrelaçada com a voz da autora que a absorvi sempre ciente de quem a escrevia.
A autora criou um mosaico de diversas personagens na França de 1940. Temos os Michaud, uma família que trabalha num banco e aguarda o regresso do filho da frente, após a derrota francesa, os Péricand, da alta burguesia, ricos e, ainda assim, conscientes dos sacrifícios inerentes à época, os Corte, um coleccionador de loiça de Limoges que escapa à evacuação de Paris para depois ser tolhido pelo blackout (não podiam acender luzes em Paris durante a noite, nem sequer de automóveis, devido aos bombardeamentos dos aliados), etc.
A meio da narrativa surgem Lucille e a sogra, a senhora Angellier, bem como o oficial alemão que estas são obrigadas a alojar em casa. Toda a leitura demonstra uma humanidade profunda e espontânea. A autora não odeia o indivíduo alemão, tal como não enaltece o indivíduo francês. Retrata o primeiro com a sua sensibilidade para a arte, o seu sentido de dever e o seu saudosismo para com a Alemanha natal. Retrata o segundo com o seu snobismo de classe, o seu vício da cuscovilhice e da bebida, a sua mesquinhez ocasional. Em suma: permite-nos compreender que os homens são todos iguais, são os governos que diferem e os lançam uns contra os outros.
A narrativa foi interrompida pela deportação da autora para Auchwitz. O marido, sem fazer ideia do que significava esse lugar, bateu-se durante meses com as entidades alemãs para tentar obter notícias da mulher e trazê-la de volta a casa. Os alemães acabaram por se aborrecer com este católico tão aficcionado de uma judia, e acabaram por o executar nos mesmos moldes.
As filhas do casal fugiram com ajuda de amigos da família, estavam expostas e podiam ser consideradas judias por via da mãe. Dos objetos da casa, levaram apenas uma mala com os escritos da mãe. Décadas depois tiveram coragem de abrir o manuscrito, que julgavam ser um diário íntimo da mãe, e compreenderam que é na realidade uma obra de ficção que poderia ser disponibilizada ao público em geral.
Delicado, por vezes irónico, mas sempre pleno daquela compreensão da humanidade que só quem sofre possui, é uma leitura que vale muito a pena.
Classificação: 5/5*****