#272 HEMINGWAY, Ernest, Paris é Uma Festa
Sinopse: Em 1921, um jovem Ernest Hemingway chega a Paris decidido a abandonar o jornalismo e a iniciar carreira como escritor. De bolsos vazios e com a cabeça povoada de sonhos, percorre as ruas de uma cidade vibrante nos dias de pós-Primeira Guerra Mundial, senta-se nos seus cafés para escrever, recolhe-se em retiros apaixonados com a sua primeira mulher, Hadley, e partilha aprendizagens e aventuras com algumas das mais fulgurantes figuras do panorama literário da época, como Ezra Pound, F. Scott Fitzgerald ou a madrinha desta - por si apelidada - «geração perdida», Gertrud Stein. Situada entre a crónica e o romance, Paris é uma Festa é a memória destes anos e a obra mais pessoal e reveladora de Hemingway. Deixada inacabada pelo autor, seria publicada postumamente, em 1964.
Opinião: Esta é a quarta obra que leio de Ernest Hemingway, o controverso Nobel americano. Comecei por “Na Outra Margem, Entre as Árvores”, um livro dos anos 50 que considerei profundamente misógino. De seguida, li “O Velho e o Mar”, e não consegui deslindar-lhe a prometida profundidade. Foi em “O Adeus às Armas” que o autor me conquistou por fim, e agora com “Paris é uma Festa” a minha admiração pela obra de Hemingway consolida-se.
Parece-me transversal na obra de Hemingway que o autor fazia questão de escrever de um modo claro – sem demasiado palavreado e, segundo ele diz a determinada altura nesta obra, tem alguma aversão ao adjetivo – e também com muitos diálogos. Os temas são, quase sempre, relacionados com a experiência pessoal do autor. Sabemos que viveu em Cuba, e daí devolve-nos “O Velho e o Mar”. Combateu na Primeira Guerra Mundial e conta-nos a sua experiência em “O Adeus às Armas”. Viveu em Paris nos anos 20, onde se cruzou com inúmeras figuras de relevo no campo das artes, e este livro, meio crónica, meio romance, permite-nos acompanhá-lo na sua rotina de escritor pelas esplanadas de uma das cidades mais inspiradoras do mundo.
Nos anos 20, quando viveu em Paris com a primeira mulher e o filho, Hemingway era apenas um contista. Tinha abdicado do jornalismo para se dedicar apenas à escrita, e lutava por escrever um romance. Engraçado ver um futuro Nobel a debater-se com a escrita de um romance, mas é assim que o autor o descreve. Acompanhamo-lo sentado nos cafés e nas esplanadas da cidade, com o seu caderno e o lápis, a trabalhar no esboço de “O Sol Nasce Sempre”. Com ele cruzam-se James Joyce – a quem admira e vê como uma estrela -, Ezra Pound, T.S. Elliot, Scott Fitzgerald e tantos outros. A riqueza do livro – talvez sobretudo para uma escritora – seja esse vislumbre dos escritores sem fundos, a dormir em quartos alugados e a ansiar por um pagamento de um artigo que escreveram há imenso tempo, ou por um prémio literário que os salve da vida de artistas desgrenhados e desfavorecidos. Por ex., conta-nos que T.S. Elliot era um ótimo poeta que se refugiava sempre no mesmo banco, fizesse chuva ou sol, e que ele próprio e outros tantos uniram-se numa fundação chamada Bel Esprit para o resgatarem daquele banco com fundos comuns. Acontece que T.S. Elliot lá viu o seu trabalho reconhecido e foi premiado com uma boa soma de dinheiro, acabando por sair sozinho do banco.
Mas o livro é valioso por muito mais do que esta janela para a vida de escritores que se consagraram e venceram o teste do tempo (Joyce, que terá cegado no fim da vida, devido a sífilis, e Scott Fitzgerald, que bebia demasiado e era um tanto hipocondríaco e inseguro). “Paris é uma Festa” vale muito pelo retrato da Paris que se reconstrói após a Primeira Guerra Mundial, e que floresce por via de artistas como Picasso, Cézanne, Miró e tantos outros, que Hemingway conhece e admira. Nesta Paris do pós-guerra, vemos já as sementes que hão de arrastar a Europa para a Segunda Guerra. Fala-se em inflação, em estropiados, em militares esquecidos após terem perdido um ou mais membros pela pátria.
”Alguns usavam a fita da Croix de Guerre na lapela. Outros, ainda, ostentavam o amarelo e o verde da Médaille Militaire. Eu punha-me a observar a maneira como eles venciam a deficiência dos membros e atentava na qualidade dos seus olhos artificiais e na maior ou menor eficiência com que lhes haviam reconstruído os rostos. (…) Nesse tempo, não tínhamos confiança em ninguém que não estivesse estado na guerra; aliás, não confiávamos totalmente em ninguém, e achávamos que, na verdade, Cendrars poderia bem mostrar-se menos exibicionista quanto à falta do braço.”
Imaginar a Paris dos anos 20 com um cabreiro acompanhado de um cão pastor a tocar uma gaita de foles e a chamar os parisienses à porta de púcaro, caso quisessem leite de cabra, é precioso. A Paris onde se pescava ao longo do Sena também me parece fascinante. Em cem anos, como as coisas mudaram!
Um Hemingway em fim de vida, que não chegou a terminar esta obra nem a vê-la publicada, leva-nos de volta no tempo, e recorda-nos qual a ferramenta essencial para se criar em qualquer ramo artístico: viver.
Classificação: 4/5*****