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Castelos de Letras

Em torno das minhas leituras!

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#271 LAXNESS, Halldór, Gente Independente

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Opinião: “Gente Indepedente” é um romance épico da autoria do Nobel islandês Halldór Laxness, em que a saga de um homem pode tornar-se a saga de toda uma nação. Ignorava a sua existência até ter dado uma espreitadela à lista de 100 melhores livros de todos os tempos do The Guardian, e chamou-me à atenção entre Eneida e o Velho Testamento.

A Islândia de 1900 é um local inóspito, uma nação em equilíbrio sobre 1000 anos de provações: houve erupções, fomes e guerras, mas a ameaça constante continuam a ser as distâncias, o isolamento e a necessidade de importar do estrangeiro bens essenciais como centeio, trigo, ou mesmo o café que lhes aquece as jornadas de trabalho.

"O que é a alma? Se cortarmos a cabeça a um animal, a alma sai da espinha dorsal a voar e desaparece no céu como uma mosca? (...) Um homem quantas almas tem? Lázaro voltou a morrer numa outra altura? E porque razão as almas se comportam com cortesia perante os altos funcionários do Estado, enquanto molestam os pequenos agricultores dos vales?"


À luz dos grandes, o nosso homem independente, Bjartur de Casas de Verão, é apenas um agricultor, um pequeno camponês que vive das ovelhas e da sua obsessão por possuir um pedaço de terra e ser autossuficiente. Porém, na Islândia de 1900, o progresso que vem de além-mar debate-se com as rimas, as sagas e as superstições de um povo que luta diariamente pela sobrevivência, e Bjartur é demasiado obstinado para confiar na modernidade ou nos outros em geral.

"Fenómenos sobrenaturais são sumamente desagradáveis por uma razão: eles abalam o conhecimento do mundo que serve de alicerce à existência humana, e deixam a alma a flutuar no ar, onde ela não pertence."


Bjartur é controverso, por vezes cruel, indecifrável e intransigente. Obriga os filhos a trabalharem a terra desde tenra idade, 16 horas por dia atolados na lama das charnecas, e a destruírem as mãos nas ferramentas agrícolas, tudo em nome de uma independência que apregoa como o mais elevado dos valores: a autêntica dignidade do homem. E é neste contraste entre a dureza das circunstâncias, a aspereza de Bjartur e a miséria generalizada, que a beleza das flores, dos fiordes, dos sonhos, das rimas e das meninas de mãos delicadas e olhos estrábicos se tornam impossivelmente comovedoras. Ainda que a Islândia os massacre, eles lutam e sonham, e nunca se vergam. Limitam-se a aguentar, divididos entre a gula dos capitalistas, a perfídia dos bancos e as promessas dos socialistas. A narrativa avança demorada, Laxness oferece-nos a perspetiva de cada personagem de modo singular, coloca-nos no seu corpo e faz-nos caminhar nos seus sapatos por aquelas estradas que oferecem vislumbres distantes de mar, de montanhas azuis e de geiseres. Acabamos por conhecer o bater do coração e a torrente de pensamentos de cada islandês aqui retratado, sofremos com os seus dilemas e a sua teimosia, e regozijamo-nos com os seus triunfos. Por entre discursos políticos, a ambição dos merceeiros e a qualidade do café, somos brindados com relances do mais belo que existe na natureza humana e no modo como molda e é moldada pelo ambiente.

A Islândia de Bjartur é uma ilha gelada onde as ovelhas e os cães têm as barrigas cheias de lombrigas e ténias, e os dorsos mordidos por pulgas, mas ainda assim há tanta beleza no espírito indomável do homem que tudo suporta e tudo supera…

Podemos considerar que os tempos vergaram Bjartur das Casas de Verão? Podemos acreditar que os fantasmas dos fundadores da Islândia e das bruxas que a povoaram mastigaram o seu sonho de independência e derrubaram o seu casebre de turfa? Podemos considerar que o vale onde ergueu Casas de Verão não lhe era nada, mas um mero meio para atingir a autossuficiência, e que perante as exigências do corpo a paisagem é secundária e até olvidável?

"Ser pobre é exatamente aquele peculiar estado do homem de não poder desfrutar das condições excepcionais. Ser um agricultor pobre consiste em nunca poder tirar proveito das vantagens que os políticos oferecem ou prometem, e estar à mercê dos ideais que apenas fazem os ricos mais ricos e os pobres mais pobres."


Não sei se é o livro do século, mas sei que é um livro inesquecível, um livro que me trouxe novo conhecimento sobre aquilo de que a nossa espécie é capaz de suportar. Voltarei a ler Laxness, agora com a fé inabalável de estar perante um dos grandes pensadores e artistas do século XX.

Sinopse: Este romance de Laxness, Nobel da Literatura, tem lugar na Islândia, no início do século XX, numa sociedade de servidão e num país com uma natureza inclemente. É a saga de Bjartur, um homem obstinado, inquebrável e inesquecível.
Bjar­tur vive no limiar da auto-suficiência e conta apenas com a sua obstinação e força interior, rejeitando qualquer caridade. Vive num vale com reputação de assombrado, só confia no seu rebanho, no seu cão e no seu cavalo. Se alguém toca o seu coração é Asta, a sua filha, mas tudo muda quando ela o desilude e magoa os seus enraizados princípios de honra…
A determinação de Bjartur e a sua luta pela independência são genuinamente heróicas, assustadoras e chegam a ser cómicas.
Gente independente é uma história épica, ao mesmo tempo trágica e bela. É uma imensa viagem por um mundo onde as almas são levadas até ao precipício e só os mais duros resistem. Um romance imbuído de sentido de humor, de uma crueldade que roça o violento e de uma profunda humanidade. Um romance que continua a comover gerações de leitores.

 

Classificação: 5/5*****