#268 REIS, João, Quando Servi Gil Vicente
Sinopse: Gil Vicente, figura insigne do Teatro e das Letras portuguesas, de vida incerta e misteriosa, mas alvo de admiração e honrarias ao longo dos séculos. Menos afamado, talvez, seja seu servo, Anrique de Viena, homem humilde e leal que conheceu em batalha o mundo, e que regressou para o lado de seu senhor, para o acompanhar no inverno de sua vida e o ajudar na escrita da sua última peça. E através da pena de Anrique, ágil e dedicada, veremos o mestre como nunca antes foi visto: completa e profundamente humano.
Irónico, divertido e comovente, Quando Servi Gil Vicente é um exercício extraordinário de estilo e invenção que, prestando homenagem a um dos maiores autores portugueses, nos permite acesso àquilo que, para o bem e para o mal, poderia muito bem ser Gil Vicente no seu tempo e mundo.
Opinião: A vida de Gil Vicente é, acima de tudo, uma incógnita. Trata-se daquelas biografias ou x, ou y, e o autor valeu-se dessa escassez de factos sobre a vida do dramaturgo para ficcionar. Dizia eu, ainda antes de ler este livro, que João Reis é o melhor escritor contemporâneo português no momento (dos que li, como é evidente). Digo-o porque me parece que vai vencer o teste do tempo, os seus livros terão sempre significância, ou pelo menos alguns deles sim.
Nesta pequena (grande) obra de 200 páginas, o leitor é puxado para dentro de um rodopio de acontecimentos, e no fim é cuspido para fora - esta opção pelo fluxo de consciência oferece sempre uma experiência de submersão. Não é facil entrar no ritmo, parece que aterramos na cabeça de alguém, e esse alguém assume que sabemos uma série de coisas que desconhecemos, e a história vai escorrendo, e aquela voz torna-se mais e mais familiar, e de repente entendemos tudo o que diz e como o diz, e é como compreender outra língua.
A Lisboa do século XVI era um sítio insalubre, prenhe de vigaristas, oportunistas, beatos e peneiras. As crianças e cães vagueavam pelas ruas em bandos, igualmente indisciplinados. O rio estava povoado de embarcações que chegavam dos sítios mais exóticos, os Painéis de São Vicente ornamentavam a capela-mor da Sé e a Inquisição estava prestes a chegar para silenciar os atrevidos. A excelência do romance dá-lhe cor, som, cheiro e sabores. Já JRS diz que o objetivo neste seu último livro era que o leitor percepcionasse Auschwitz com os sentidos... Não sei se aqui o autor pretendia que Lisboa ganhasse vida, mas conseguiu-o como só nos bons livros se consegue. Adorei descobrir expressões da época, ou encontrar a Língua Portuguesa mais próxima do ramo a partir do qual se distinguiu da castelhana - perro ainda era um cão, e a profissão de perreiro era espantar os vadios das igrejas. Não é fascinante?
O narrador é Anrique de Viena - e ele há-de explicar-vos porque é assim apelidado -, um mentiroso, aventureiro, pinga-amor, violento, mas acima de tudo dedicado servo de Gil Vicente. O que me tocou acima de tudo, na narrativa, além dessa imersão na Lisboa antiga, foi a noção de como este país já seria um pouco como é agora. Ou seja, o génio de Gil Vicente é menosprezado, embora o próprio, segundo o retrato, pareça ter vistas curtas e sonhos de grandeza. Tal como Camões, outro português viu parte do seu trabalho perdido, e acabou a vida como um renegado, na miséria e no oblívio, enterrado em parte incerta. Gil Vicente era também joalheiro, terá, entre outras peças, talhado a famosa Custódia de Belém - que, no século XIX, o rei D. Fernando II por acaso resgatou a um antiquário. Essa peça-mor da joalharia nacional está exposta no MNAA e é o que de mais palpável nos chegou das mãos do mestre.
Narrado com humor, sensibilidade e um ritmo muito próprio do estilo do autor, Quando Servi Gil Vicente é, acima de tudo, um livro sobre relações humanas, sobre as dificuldades de extrair génio - arte - a homens em situações desfavoráveis, e retrata muito bem os vícios de ser-se português (a fanfarronice, a preguiça, a soberba, a gula, a negação, a implicância por desporto)...
Vale muito a pena.
Classificação: 5/5*****