Saltar para: Post [1], Pesquisa e Arquivos [2]

Castelos de Letras

Em torno das minhas leituras!

Castelos de Letras

Em torno das minhas leituras!

#265 FALLADA, Hans, Morrer Sozinho em Berlim

WhatsApp Image 2020-11-15 at 22.35.00.jpeg

”– Música… enfim. Olhe, quando nós trabalhávamos no bom tempo, quando não fazíamos apenas caixões mas também móveis (…) então trabalhávamos em coisas que podiam ver-se! Trabalho de marceneiro da mais bela qualidade (…) que durará cem anos. Mas música… quando para, não fica nada do seu trabalho.
– Fica, Quangel, a alegria que sentem os homens e as mulheres que ouviram boa música fica.”


Opinião: Hans Fallada, pseudónimo do escritor Rudolf Wilhelm Friedrich Ditzen, é o primeiro alemão que me conquista na literatura (tentei Goethe sem sucesso). Quando um livro me arrebata deste modo, vou investigar sobre a vida do seu autor, e sobre Herr Fallada descobri factos maravilhosos. Aos 18 anos, o jovem alemão aventurou-se num duelo encenado, com o objetivo de mascarar dois suicídios – ele e o seu oponente queriam morrer devido às suas tendências homossexuais -, mas Fallada sobreviveu, enquanto o amigo morreu. Foi então internado num hospital para doentes mentais, razão pela qual não chegou a completar os estudos. Esteve várias vezes preso por fraudes e roubos, tentou alistar-se para combater na Primeira Guerra Mundial, mas não atingiu esse propósito devido aos seus problemas com álcool e morfina. Ou seja, até aos 20 anos, Fallada foi um degenerado. Falhou em todos os propósitos – estudar, combater pelo seu país, manter-se longe de brigas, manter-se dentro da lei. Mais tarde, já casado, a primeira mulher tentou divorciar-se e ele tentou matá-la, sendo novamente dado como insano e internado. Poucas semanas antes de morrer, escreveu o seu best-seller Morrer Sozinho em Berlim (no original uma espécie de Everyone dies alone), em apenas 24 dias. O romance é inspirado no casal Otto e Elise Hamper, dois resistentes ao nacional-socialismo durante a II Guerra Mundial, em Berlim.
Parece-me fascinante que tantas vezes autores perturbados ou com ideologistas controversas como este dependente químico (e como Dostoievski, ou Céline, ou Knut Hamsun), acabem por escrever obras de tamanha humanidade e lucidez… Se não tivesse descoberto todos os pormenores a respeito da vida conturbada do autor, julgaria tratar-se de um alemão tradicional, conservador, austero, simplesmente desgostoso com as atrocidades que se passavam no seio da sua pátria.

Morrer sozinho em Berlim, traduzido pela primeira vez para o Inglês em 2009, e transformando-se assim num best-seller instantâneo, passa-se no período entre 1940 e 1943 na Alemanha nazi, e constrói um retrato detalhado dos vários estratos da sociedade alemã nesse período. O mais trágico é a compreensão de que o nacional-socialismo (encabeçado por Hitler) tinha total controlo sobre a população. Goebbels ocupava-se da propaganda, monopolizava as rádios e a imprensa, Göring garantia os sucessos da Luftwaffe e mesmo que os aliados tivessem começado a bombardear o coração da Alemanha, tudo era mascarado de conspirações e de tentativas de enfraquecer a fibra do povo ariano. Os alemães são instigados a pertencerem ao Partido, a enviar os filhos para a guerra, a educa-los no seio das muitas organizações juvenis, e a ambicionar-lhes um posto nas SA, nas SS ou mesmo na Gestapo. Em suma: os alemães alinhados com o regime tornaram-se coniventes com a visão brutal do partido, denunciam vizinhos, espiam, mentem, enganam, roubam. Os restantes alemães são reféns destes, mantém-se calados e na sombra, demasiado assustados para tentar assuntar a verdade, demasiado receosos até para se demitirem dos postos a que o governo os incita a exercerem a sua colaboração com o Estado.

A beleza deste romance de Hans Fallada prende-se com o facto de estarmos aqui perante dois alemães comuns, um casal de meia idade que um dia, ao perder o único filho para a guerra, começa a reparar verdadeiramente em tudo o que os rodeia. Este casal sem graça, de duas pessoas tranquilas e acomodadas, não especialmente corajosas, decide que deve fazer algo pelo seu país, deve procurar resistir de algum modo, boicotar como possam a máquina do Führer. E então começam a escrever e a distribuir postais subversivos que, se capturados, hão de custar-lhes a vida. Compreendemos a dimensão da solidão destes alemães “bons”, que nem com a família podiam trocar uma ideia sincera, uma opinião sobre o rumo que o seu país tomou. Torna-se também claro que os nazis só conseguiram subir ao poder na Alemanha, e manter-se nele, por via da grave crise económica, polícia e social, que se seguiu ao Tratado de Versailles, e também que os alemães que abraçaram a causa do império humilhado, mas povoado de arianos puros, são os miseráveis, os degenerados, os bêbados, preguiçosos e violentos que ganharam voz ao ouvir os discursos boçais de Hitler. São os homens sem coração, mas de ambição desmedida, que por fim podiam expiar as suas inseguranças, os seus traumas de desadaptados, inflingindo as maiores torturas a todos os que pensassem de modo diferente.
Sabemos que os nazis exterminaram judeus, homossexuais, deficientes, mulheres, crianças e velhos por igual, e ainda os prisioneiros de guerra e os resistentes, de quase todas as nacionalidades que se atreveram a confrontá-los, mas neste romance damo-nos conta de como era a vida na Alemanha, mesmo quando a guerra ainda parecia longe. Como era viver sob constante vigilância do vizinho, sob constante cobrança do governo – que exigia donativos, apoio, voluntários para lutar, para construir caixões, máquinas para a guerra, abrigos aéreos, etc. E como foi brutal e inglório o destino dos alemães que não se identificaram com o horror, que não quiseram tornar-se cúmplices, e que por isso foram sujeitos a torturas, indignidades e execuções…

Maravilhoso. Aconselho também o documentário em vários episódios Hitler’s Circle of Evil, da Netflix. Ilustra bem a ascensão ao poder de Hitler e dos seus seguidores, muitos deles referidos nesta obra.

 

Classificação: 5/5*****

 

Sinopse: Morrer Sozinho em Berlim é o mais importante livro escrito sobre a resistência alemã ao nazismo.

Berlim, 1940. A cidade vive sob o jugo de Hitler, cujas tropas avançam vitoriosamente em várias frentes europeias.
Otto e Anna Quangel recebem uma carta que lhes anuncia a morte do filho na guerra. Perante isto, decidem não permanecer de braços cruzados. Otto inicia com a ajuda da mulher uma arriscada denúncia do regime. Em resposta, o inspetor da Gestapo, Escherich, desencadeia uma perseguição impiedosa.
O resultado é um thriller sobre a resistência no centro do poder nazi.

Escrito em 1946, foi traduzido sessenta e cinco anos depois e obteve um enorme êxito junto da crítica e dos leitores e foi adaptado ao cinema por Vincent Pérez.