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Castelos de Letras

Em torno das minhas leituras!

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#260 MÃE, Valter Hugo, O Filho de Mil Homens

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Opinião: Tenho de atribuir duas estrelas, porque significa it's ok enquanto 3 já significa I liked it


Foi a minha estreia com Valter Hugo Mãe, um autor que encontro muito pelo mundo dos livros, mas que até agora não me despertou grande curiosidade. Li algumas reviews de utilizadores com gostos semelhantes aos meus, folheei "A Desumanização", não consigo estar desinformada sobre títulos e às vezes até sinopses de livros que saem, e sempre me pareceu que não era para mim. Mas um amigo insistiu que devia lê-lo, e decidi ir até à biblioteca conseguir um exemplar de qualquer uma das suas obras e assim poder opinar com conhecimento de causa.

Uma das surpresas é que a capa da edição da Alfaguara (o homem em chamas) sugeria uma história poderosa, adulta, séria. Eu gosto muito de austeridade na escrita, mesmo o humor que surge num ambiente soturno tem outro gosto. A história não é nada disto, embora tenha rasgos de crueldade e outros de ingenuidade, e o contraste dos dois - promovido por um narrador que se expressa de modo peculiar - resulta nesta voz única em que mal se distinguem as personagens por si sós. Crianças, adultos e velhos, todos pensam do mesmo jeito, e com níveis de maturidade por vezes desadequados da sua faixa etária.

Que dizer desta história sem tempo nem espaço? As personagens têm nomes esquisitos, coisa a que começo a habituar-me no caso de alguns criadores portugueses. Temos o Crisóstomo, o Gemúndio, o Antonino e a Mininha (não me importava que os nomes esquisitos se tivessem ficado pelo imaginário do Saramago, e do seu Baltazar e Blimunda). A somar aos nomes, a personalidade das personagens: todos apanhados de uma certa loucura que procura elevar os rasgos de clarividência que lhes assista os pensamentos ou os diálogos. Depois é essa falta de tempo que me incomoda: que tempo é este em que a mentalidade é tão fechada, em que as pessoas atravessam montes a pé para chegar ao mar, mas há carros, hospitais e outras inovações que tais? E que espaço é este, que se estende da terra ao mar, e na terra naturalmente que o povo é lavrador, e no mar é pescador, e são todos remediados? É Portugal, julgo que seja Portugal. Diria um Portugal meio dos anos 30, ainda que nem o tempo nem o espaço cumpram nenhum propósito na narrativa. Tenho imensa pena, porque o tempo é um dos fatores que me leva até aos livros, e o espaço é outro logo a seguir.

Apesar de em jeito de romance, senti a história como uma espécie de compêndio de contos entrelaçados. Há homens tristes por não terem filhos e que enganam a tristeza com bonecos que se sentam no sofá, há anãs, há galinhas gigantes, há humanização de objetos (travessas e flores que se espantam) e há uma aura de surrealismo que nunca se cumpre, porque a força do surrealismo é a profundidade das raízes no real. Como num quadro de Magritte, a propósito meu pintor favorito, em que a composição é perfeita mas a imagem é desfasada do mundo físico. Perfeita, mas irreal. De contornos reais, mas a flutuar num céu azul de nuvens brancas. Surrealismo regado a mais surrealismo não me prende. As personagens acabam por não ser palpáveis - embora surja uma Isaura que é mais nítida do que as restantes -, as ações parecem-me dúbias e os encontros forçados. Fez-me especialmente impressão o modo como os menores são trocados de mão em mão, porque neste recanto do mundo sem tempo a lei também não existe. E temos de aceitar que tudo poderia passar-se assim, ou ficamos incapazes de produzir uma emoção quanto ao texto.

Parece que é um livro sobre a paternidade, mas não o senti assim. Achei que era um livro sobre superarem-se diferenças. A temática da aceitação do diferente - a mulher estranha, o velho solitário e desesperado, o maricas - é muito mais forte do que as relações interpessoais no livro. Ou melhor, as relações desenvolvem-se sobre essa superação da diferença, o que é algo positivo. O livro acaba por estar bem organizado - ainda que padeça de uma inesperada simplicidade -, e o português vem enrolado e desenrolado em floreados em certos trechos, por vezes sacrificando o significado à forma.

Destaco esta afirmação como o único momento em que o livro me agarrou realmente:

«Quando se conhece alguém, procuram-se as exuberâncias dos gestos (...) como para fazer exuberar o amor, mas o amor é uma pacificação com as nossas naturezas e deve conduzir ao sossego.»

Não me alongo mais, termino esclarecendo que o livro é, para mim, uma obra de art naïf, um quadro de figuras simplificadas e muito coloridas, num cenário primitivo de terra e animais. O meu gosto pessoal revê-se mais na intriga por detrás do surrealismo de Magritte.

Sinopse: Esta é a história de Crisóstomo que, chegando aos quarenta anos, lida com a tristeza de não ter tido um filho. Do sonho de encontrar uma criança que o prolongue e de outros inesperados encontros, nasce uma família inventada, mas tão pura e fundamental como qualquer outra.
As histórias do Crisóstomo e do Camilo, da Isaura do Antonino e da Matilde mostram que para se ser feliz é preciso aceitar ser o que se pode, nunca deixando contudo de acreditar que é possível estar e ser sempre melhor. As suas vidas ilustram igualmente que o amor, sendo uma pacificação com a nossa natureza, tem o poder de a transformar.
Tocando em temas tão basilares à vida humana como o amor, a paternidade e a família, O filho de mil homens exibe, como sempre, a apurada sensibilidade e o esplendor criativo de Valter Hugo Mãe