#255 TOLSTÓI, Lev, Guerra e Paz (Vol. IV)
“(…) Existe nesta conclusão algo de contraditório, uma vez que a série de vitórias dos franceses os levou ao aniquilamento completo e que a série de derrotas dos russos os levou à plena eliminação do inimigo e à libertação da pátria.”
Apesar de classificar este quarto volume com 4 estrelas, o conjunto de “Guerra e Paz” é um inequívoco 5. Não quis fazer a review a quente, porque sabia que precisava de deixar que o significado maior desta obra me penetrasse nos ossos. É-me hoje claro que é daqueles livros que ficarão comigo para sempre, que me apresentou a algumas das personagens mais queridas que jamais encontrei em literatura. Atrevo-me até a dizer que voltarei a lê-lo um dia, apenas para voltar a experimentar as vivências dos russos do início do século XIX, perante a ameaça que constituía “o anticristo”, e para procurar significados que negligenciei nesta primeira leitura.
Tolstoi, numa tentativa de explicar a natureza de Guerra e Paz, dizia não se tratar o livro de um romance, nem de uma crónica histórica, e nem de um poema épico. A mim parece-me um ensaio histórico que, por vezes, toma a forma de romance convencional, outras toma a forma de crónica, e ainda outras soa a poema épico. Diria que a essência do livro – como a concebi – é o despertar da Rússia para as suas especificidades, para o que lhe é genuíno, e a compreensão de que devem desligar-se dos modos europeus e focar-se no seu progresso a nível interno o que, algumas décadas depois, levará à revolução. É também uma tentativa de demonstrar que a Rússia estava fadada a tornar-se na força que viria a deter outra força até aí invencível: o exército de Napoleão; ao tornar-se no único inimigo à altura do imperador dos franceses, a Rússia assume o papel de salvadora da Europa. Segundo o epílogo do autor, o objetivo desta narrativa de quase 1700 páginas (na edição da Editorial Presença) é refletir sobre questões que o intrigavam: o movimento dos povos (como evoluem os povos e a humanidade), como se concentra o poder nuns poucos, e como é que o povo entrega o poder a esses poucos e segue o seu direcionamento. Isto resumido a: como é que Napoleão, um homem só e controverso, conseguiu convencer 600 mil homens a marchar Rússia adentro? Que génio o assistia? Existe livre-arbítrio desses grandes homens, e dos povos? Existe realmente liberdade, ou tudo se desenrola baseado na necessidade?
A história é complexa em todos os seus momentos, mas Guerra e Paz disserta sobre um dos mais difíceis de compreender. A citação acima exposta demonstra esta dualidade de circunstâncias: ora por um lado Napoleão nunca perdeu uma batalha contra os russos, por outro, acabou vencido pelo inverno, pela falta de provisões e por uma ou outra decisão menos acertada (como a de não se acautelar para o inverno quando tinha as provisões ao dispor do seu exército durante a tomada de Moscovo). Por outro, a Rússia foi sempre vencida em combate - além da inferioridade numérica, Napoleão era-lhes superior em estratégia e ferocidade. Mesmo inflamados pela necessidade de defender a mãe Rússia, os russos estavam limitados pela inaptidão militar do seu imperador, pela prudência a tempos exagerada dos seus generais, bem como pela impetuosidade inconveniente de outros. Mas a Rússia triunfou, o invasor desertou após derrotá-la. Como é isto possível? Como é possível que o vencedor da guerra pereça e seja aniquilado por circunstâncias exteriores à guerra que travou? Estava determinado, diz-nos Tolstoi, que a Rússia tinha de ser invadida, tinha de perder em campo e tinha de vencer por vias imprevistas.
Neste último volume encerra-se a viagem de 15 anos das personagens a que nos afeiçoámos, e que agora conhecemos até nas camadas mais obscuras da sua alma: Pierre, Andrei, Nikolai, Natacha e Mária destacam-se como os protagonistas desta odisseia. Vemo-los crescer, sofrer, ultrapassar obstáculos e conhecer o seu destino. Um fatum que o autor insinua que sempre lhes esteve reservado, porque o livre-arbítrio é questionável.
Cada vez estou mais enamorada da Rússia, da história e da cultura da Rússia, com os seus excessos, excentricidades e a humildade digníssima do seu povo. Despeço-me de Guerra e Paz com o sentimento de ter estado sempre a contemplar algo de um esforço tremendo, de uma beleza inegável, em grande medida para além das minhas capacidades. Remexer na história com esta precisão, dissecá-la em todas as suas particularidades… Tolstoi era, sem dúvida, um ótimo analista. E, creio, um ótimo historiador e filósofo. Vale a pena enfrentar esta viagem para nos sentirmos um pouco mais próximos do seu espírito.
Coragem!
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Nota sobre a revisão: apesar de ter lido a 3ª edição deste quarto volume, o mesmo estava pejado de gralhas... Espero que, entretanto, tenham sido corrigidas.