#248 CARVALHO, Rodrigo Guedes de, Margarida Espantada
Opinião: (Em e-book)
As famílias amaldiçoadas...
Já Tolstoi escreveu, a abrir o seu aclamado romance "Anna Karenina", que “As famílias felizes são todas iguais, as infelizes são-no cada uma à sua maneira.” Devo confessar duas coisas: primeiro, que este é o primeiro romance que leio da autoria do Rodrigo Guedes de Carvalho, segundo que o primeiro ponto se deve apenas ao meu enorme receio de, admirando-o tanto como profissional, me decepcionar amargamente com a literatura que lhe sai das mãos.
Avanço com uma terceira confissão: até meio da leitura, estava convencida que lhe daria um quatro, na melhor das hipóteses. E apenas porque, entre uma escrita que não aprecio por aí além, por quebrar com aquilo que diria ser "a escrita clássica", aquela mais polida onde certos vocábulos e maneirismos não têm lugar, surgem relances de pensamentos admiráveis. De vez em quando parava para digerir um ou outro trecho do livro. As temáticas ali contidas foram-se enredando mais e mais numa narrativa que, de início, prometia alguma simplicidade (até porque se trata de um livro relativamente pequeno). No final, fiquei com a sensação de ter conseguido acompanhar a premissa que o autor se propôs a defender ao escrever esta obra, que acredito que lhe tenha vindo dos recantos mais obscuros da sensibilidade.
"Margarida Espantada" é uma história de família, daquelas que sempre me fascinam. Uma das minhas temáticas favoritas na arte (e, sobretudo, na literatura) é essa evidência de que as famílias são um fluxo orgânico vindo lá de trás, não se sabe bem de onde, com uma carga em parte exposta, em parte oculta, e que se dirige sabe-se lá aonde. Mexendo apenas com duas gerações de uma família que parece amaldiçoada (os Duval), o autor fez um retrato intimista daquilo que terá sido a infância dos quatro irmãos num casarão em Colares, e de como esses acontecimentos os moldaram na relação uns com os outros, na relação com os pais, nas perspectivas de futuro e no modo como eles mesmos se jogaram à vida.
O romance aborda questões delicadas, como violência doméstica, alcoolismo e doenças mentais. Pode parecer uma carga demasiado pesada para um livro tão pequeno, e é-o, mas é nisso que o livro se supera: faz com que tudo isto seja uma só coisa - a maldição das famílias infelizes, em que o sofrimento e as frustrações levam a vícios, que por sua vez levam a violência, que por sua vez molda carácteres, causa psicoses, destrói gerações.
Um dos maiores desafios que experiencio ao ler livros de autores nacionais, é o de me abster do facto de aquilo se tratar de um livro - isto é, o trabalho de alguém, e de me concentrar na história que me proponho viver ao escolher lê-lo.. Até meio do romance, tinha muito presente que aquilo era tudo saído da mente do RGC, chegava a ouvir entoação da sua voz a recitar-mo - cheguei a irritar-me com os nomes das personagens - Margarida Rosa, Maria do Carmo, Ana Teresa, Manuel Afonso, António Carlos, Isabel Rita, Sara Lúcia, Aida Vanda e tantos outros com primeiro e segundo nome, todos eles desencontrados, que a cada novo nome me vinha a irritação de pensar que este narrador podia ter escolhido uns nomes mais aleatórios, só para eu acreditar que estas pessoas existem mesmo.
O livro ganha alento no último quartel: foi aí que se encerrou abruptamente, atrevendo-se a deixar pontas soltas para o leitor unir (como leitora, adoro que um autor me considere capaz de somar 2 + 2), e tornou-se muito sensitivo, muito angustiante. Acredito até que funcionaria bem na prateleira dos thrillers: para mim isto seria um thriller bem escrito. Prefiro mistérios em torno de famílias com sumo em torno das vítimas e dos criminosos do que aqueles episódios do CSI por escrito em que a génese do romance é a vida privada (tantas vezes até romântica) dos investigadores. Aqui, o autor deu-se ao trabalho de criar bons retratos psicológicos das vozes que povoam o seu romance, e de torná-las tanto vítimas quanto perpetuadores; em suma - humanos. De salientar ainda que é assim que, pessoalmente, distingo os bons romancistas: a pertinência dos espaços imaginados pelo autor, a escolha do local onde a história se desenrola, influenciada pelas características do ambiente onde se vê inserida... Pronto, é isto. "Margarida Espantada" só poderia passar-se em Sintra, e em nenhum outro lugar.
Um livro que explica bem esse dominó que é a vida das pessoas. Chamemos-lhe karma, Samsara, tudo o que vai, volta. Toda a dor infringida paga-se, e todas as famílias onde há maus fígados acabam por se precipitar para a própria extinção.
Já Tolstoi escreveu, a abrir o seu aclamado romance "Anna Karenina", que “As famílias felizes são todas iguais, as infelizes são-no cada uma à sua maneira.” Devo confessar duas coisas: primeiro, que este é o primeiro romance que leio da autoria do Rodrigo Guedes de Carvalho, segundo que o primeiro ponto se deve apenas ao meu enorme receio de, admirando-o tanto como profissional, me decepcionar amargamente com a literatura que lhe sai das mãos.
Avanço com uma terceira confissão: até meio da leitura, estava convencida que lhe daria um quatro, na melhor das hipóteses. E apenas porque, entre uma escrita que não aprecio por aí além, por quebrar com aquilo que diria ser "a escrita clássica", aquela mais polida onde certos vocábulos e maneirismos não têm lugar, surgem relances de pensamentos admiráveis. De vez em quando parava para digerir um ou outro trecho do livro. As temáticas ali contidas foram-se enredando mais e mais numa narrativa que, de início, prometia alguma simplicidade (até porque se trata de um livro relativamente pequeno). No final, fiquei com a sensação de ter conseguido acompanhar a premissa que o autor se propôs a defender ao escrever esta obra, que acredito que lhe tenha vindo dos recantos mais obscuros da sensibilidade.
"Margarida Espantada" é uma história de família, daquelas que sempre me fascinam. Uma das minhas temáticas favoritas na arte (e, sobretudo, na literatura) é essa evidência de que as famílias são um fluxo orgânico vindo lá de trás, não se sabe bem de onde, com uma carga em parte exposta, em parte oculta, e que se dirige sabe-se lá aonde. Mexendo apenas com duas gerações de uma família que parece amaldiçoada (os Duval), o autor fez um retrato intimista daquilo que terá sido a infância dos quatro irmãos num casarão em Colares, e de como esses acontecimentos os moldaram na relação uns com os outros, na relação com os pais, nas perspectivas de futuro e no modo como eles mesmos se jogaram à vida.
O romance aborda questões delicadas, como violência doméstica, alcoolismo e doenças mentais. Pode parecer uma carga demasiado pesada para um livro tão pequeno, e é-o, mas é nisso que o livro se supera: faz com que tudo isto seja uma só coisa - a maldição das famílias infelizes, em que o sofrimento e as frustrações levam a vícios, que por sua vez levam a violência, que por sua vez molda carácteres, causa psicoses, destrói gerações.
Um dos maiores desafios que experiencio ao ler livros de autores nacionais, é o de me abster do facto de aquilo se tratar de um livro - isto é, o trabalho de alguém, e de me concentrar na história que me proponho viver ao escolher lê-lo.. Até meio do romance, tinha muito presente que aquilo era tudo saído da mente do RGC, chegava a ouvir entoação da sua voz a recitar-mo - cheguei a irritar-me com os nomes das personagens - Margarida Rosa, Maria do Carmo, Ana Teresa, Manuel Afonso, António Carlos, Isabel Rita, Sara Lúcia, Aida Vanda e tantos outros com primeiro e segundo nome, todos eles desencontrados, que a cada novo nome me vinha a irritação de pensar que este narrador podia ter escolhido uns nomes mais aleatórios, só para eu acreditar que estas pessoas existem mesmo.
O livro ganha alento no último quartel: foi aí que se encerrou abruptamente, atrevendo-se a deixar pontas soltas para o leitor unir (como leitora, adoro que um autor me considere capaz de somar 2 + 2), e tornou-se muito sensitivo, muito angustiante. Acredito até que funcionaria bem na prateleira dos thrillers: para mim isto seria um thriller bem escrito. Prefiro mistérios em torno de famílias com sumo em torno das vítimas e dos criminosos do que aqueles episódios do CSI por escrito em que a génese do romance é a vida privada (tantas vezes até romântica) dos investigadores. Aqui, o autor deu-se ao trabalho de criar bons retratos psicológicos das vozes que povoam o seu romance, e de torná-las tanto vítimas quanto perpetuadores; em suma - humanos. De salientar ainda que é assim que, pessoalmente, distingo os bons romancistas: a pertinência dos espaços imaginados pelo autor, a escolha do local onde a história se desenrola, influenciada pelas características do ambiente onde se vê inserida... Pronto, é isto. "Margarida Espantada" só poderia passar-se em Sintra, e em nenhum outro lugar.
Um livro que explica bem esse dominó que é a vida das pessoas. Chamemos-lhe karma, Samsara, tudo o que vai, volta. Toda a dor infringida paga-se, e todas as famílias onde há maus fígados acabam por se precipitar para a própria extinção.
Sinopse: Margarida Espantada é sobre família. Sobre irmãos. É sobre violência doméstica e doença mental. É um efeito dominó sobre a dor. A literatura é um jogo do avesso. Os bons romances são sempre sobre amor, e os melhores são os que fingem que não são. Não devemos recear livros duros. As histórias que mais nos prendem trazem uma catarse que nos carrega as mágoas, personagens que apresentam as suas semelhanças connosco. Gosto da ficção que é número arriscado de circo, com fogo e espadas, que nos faz chegar muito perto da queimadura que não vamos realmente sentir. Mas reconhecemos.
Classificação: 5/5*****