#247 HESSE, Herman, Siddhartha
Sinopse: Siddhartha, filho de um brâmane, nasceu na Índia no século VI a.C. Passa a infância e a juventude isolado das misérias do mundo, gozando uma existência calma e contemplativa. A certa altura, porém, abdica da vida luxuosa, protegida, e parte em peregrinação pelo país, onde a pobreza e o sofrimento eram regra. Na sua longa viagem existencial, Siddhartha experimenta de tudo, usufruindo tanto as maravilhas do sexo, quanto o jejum absoluto. Entre os intensos prazeres e as privações extremas, termina por descobrir «o caminho do meio», libertando-se dos apelos dos sentidos e encontrando a paz interior. Em páginas de rara beleza, Siddhartha descreve sensações e impressões como raramente se consegue. Lê-lo é deixar-se fluir como o rio onde Siddhartha aprende que o importante é saber escutar com perfeição.
Opinião: Este foi o primeiro livro que li da autoria de Herman Hesse, naturalizado suíço e vencedor do Prémio Nobel da Literatura em 1946.
Hesse aproximou-se da cultura e filosofia oriental durante uma viagem à Índia, em 1911, e essa viagem marcou profundamente os seus trabalhos. De salientar que viveu as duas Guerras Mundiais, com toda a carga emocional a elas associada.
Não consigo pronunciar-me acerca de Siddhartha sem evocar as minhas crenças espirituais; isso é um dos contributos do livro para o leitor - a ideia de que a espiritualidade é algo que vem de dentro, que se busca em nós e no Samsara (uma espécie de energia que une todos os seres vivos e que funciona como fluxo constante da vida, fazendo com que passado, presente e futuro sejam um só). Eu não acredito em religiões - acho que as religiões servem o único propósito de controlar as massas, e outras servem apenas os homens e a sua ganância. Há "igrejas" que são, na realidade, empresas com objectivos estabelecidos que visam enriquecer uma cúpula de privilegiados. Sou obrigada a mencionar o Edir Macedo e a corja de cães gulosos da IURD, que sugam a alma e a paz aos desgraçados que por lá aparecem para ouvir o Evangelho. Em Mateus (19; 24), encontramos a célebre citação de Jesus: "é mais fácil fazer passar um camelo pelo buraco de uma agulha do que um rico chegar ao Reino dos Céus", e acredito que esta simples ideia tenha dado azo a muito debate. Não concordo com ela numa visão socialista (todos os ricos são maus), mas sim numa visão céptica, em que nem sempre quem é rico é-o por mérito próprio ou através do próprio suor. Este tipo de doutrina não interessa aos cães gulosos, mas é aquilo que de mais significativo encontramos sobre aquilo que seria a filosofia de Cristo. Isto e o não pedir nada, porque me parece que na Bíblia as maiores bênçãos chegavam para os humildes, para os que se arrependiam, para os que nada pediam (tantas vezes nem sequer perdão, pois que Maria Madalena está perdoada antes sequer de abrir a boca).
Neste ponto esclareço que, para mim, Jesus é quando muito uma figura política, alguém cuja visão permitiu compreender as injustiças sofridas pelo povo Judeu às mãos dos seus opressores (no momento histórico em que viveu, referia-se aos romanos).
Siddhartha é um pequeno romance (ou "poema indiano") de aproximadamente 140 páginas, ao longo das quais acompanhamos o curso da vida de um filho de brâmane, portanto um sacerdote de bom estatuto na organização social hindu. Este jovem brâmane, de nome Siddhartha, decide não se cingir a uma doutrina, nem sequer à que o seu pai pratica, e ir pela Índia em busca de si mesmo. Juntando-se aos samanas, peregrinos no limiar da pobreza, que vivem de meditação e esmolas, aprende a jejuar, a pensar e a esperar, e com outras entidades aprenderá outras tantas lições importantes sobre si mesmo e o universo.
"Ninguém conseguirá a libertação através de doutrinas! Com ninguém, ó Venerável, conseguirás partilhar e dizer o que te aconteceu na hora da tua iluminação! (...) Esta é a razão pela qual prossigo a minha peregrinação (...) para abandonar todas as doutrinas e todos os mestres, para alcançar sozinho o meu objetivo ou para morrer."
O que me parece mais valioso nesta odisseia do jovem Siddhartha é a ideia, tantas vezes controversa, de que a espiritualidade é algo de profundamente pessoal, e que ninguém tem como viver essa viagem pelo outro. Em suma: de nada adianta sentar e escutar aquilo que um Homem esclarecido tenha concluído da sua própria busca espiritual, porque qualquer explicação será oca se não a vivenciarmos. De nada adianta idolatrar alguém só porque reconhecemos nessa pessoa alguma santidade, ou um espírito esclarecido, e vivermos à sombra dos seus ensinamentos. Por muito que a sua doutrina seja verdadeira, continua a ser a verdade daquela tal pessoa, e os significados profundos só fazem sentido para o indivíduo quando é ele a descodificá-los, ao seu ritmo e à luz dos seus próprios sacrifícios e experiências.
Eu sempre senti que a ideia de Deus, de sacralidade, de certo e de errado, vem de dentro de nós. Nunca consegui seguir uma doutrina, acenar em concordância com a leitura de textos ditos sagrados, ou seguir as restrições que tantas religiões impõem. Tantas vezes essas restrições às liberdades individuais são inclusive fruto do preconceito do Homem que interpreta "as escrituras", e não a génese daquilo que está escrito. Creio que, ao entregar-se a uma religião, ao admitir castrar a própria liberdade, o próprio pensamento, a própria capacidade de contemplação, por direccionamento de outrem - que julga ter um conhecimento superior sobre o mundo e o além - o transformamos na nossa consciência. A nossa consciência deve partir de reflexões profundas e de lições apenas por nós vividas.
O livro é muito prolífero neste tipo de reflexão, creio que não ofende nenhum credo - apenas direcciona, com naturalidade, o Homem a descobrir-se a si mesmo e às verdades que o satisfazem espiritualmente.
Recomendo!
Classificação: 4****/*