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Castelos de Letras

Em torno das minhas leituras!

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#246 DOSTOIEVSKI, Fiódor, Os Irmãos Karamazov

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"Só Dante pôs os vários mundos assim em coexistência", diz-nos ainda Bakhtine, "mas em Dante eles não interagiam."


Artigo do Público, aqui

Há imenso para dizer sobre os Os Irmãos Karamazov, seria uma dissertação interminável, que se multiplicaria várias vezes face ao volume real do romance, posto que cada parte, cada capítulo, cada diálogo e cada personagem daria origem a rios de tinta a seu respeito. Posto isto, talvez deva dizer que o que fica, no leitor, desta obra colossal publicada entre 1880 e 1881, isto é, terminada a dois meses da morte do autor, é uma necessidade premente de reflexão. Reflexão sobre todo e cada tema que nos é apresentado ao longo desta narrativa, em que o narrador se assume presente e inclusive condiciona a opinião do leitor. Mas, mais surpreendente do que esta familiaridade que o narrador estabelece com o leitor, é o facto de cada diálogo, de beleza incontornável, oferecer não raramente perspetivas opostas sobre um mesmo assunto, e a argumentação e contra-argumentação serem tão bem articuladas que parece impossível que tenham sido produzidas pela mesma cabeça.

Este é um romance de 768 páginas (na minha edição da Saída de Emergência, que aconselho por ser maleável e muito agradável a nível estético), que explora – de maneira até autobiográfica, segundo defendem alguns autores e críticos – a vida dos Irmãos Karamazóv. São eles Dmitri (Mitya), Ivan, Alexey (Aliocha) e Smerdyakov, este último ilegítimo. Cada um destes irmãos oferece um ângulo da Rússia czarista, empobrecida e raiada de contrastes. Dmitri é impulsivo, apaixonado, violento e movido por um profundo sentimento de injustiça para com o pai Karamazóv. Ivan é um intelectual introspetivo, que busca a solidão para desenvolver ideias revolucionárias e que rejeita a ideia dde Deus. Segundo Ivan, sem Deus tudo seria permitido. É a ele que se atribui o capítulo intitulado O Grande Inquisidor. Freud, que estudou esta obra a fundo para melhor compreender a psique do seu autor e as riquíssimas reflexões psicológicas nela contidas, considera esse trecho o que de melhor se produziu em literatura, e este romance em particular a maior obra da História. Nesse capítulo, Ivan expõe um seu poema em que opõe Jesus Cristo retornado para junto dos homens ao Grande Inquisidor, na Sevilha do século XVI. As reflexões que resultam dessa colisão – um livre pensador e um guardião da igreja – são atuais e pertinentes, e com toda a certeza escandalosas para a época.

"Eu sustento que basta destruir a ideia de Deus no homem, é por aí que deve começar. Oh, raça de cegos que nada compreendem! Quando todos os homens tiverem negado Deus… e eu creio que a época do ateísmo universal chegará (…) o velho conceito do universo desmoronar-se-á por si mesmo, sem canibalismo, desaparecerá a velha moral e tudo começará de novo. Os homens unir-se-ão para arrancar da vida tudo o que ela tiver para dar, mas só para o gozo e a felicidade da terra; enaltecer-se-ão nas asas do seu espírito, animado por um orgulho titânico, e aparecerá o homem-Deus. De dia para dia, ampliando indefinidamente as suas conquistas sobre a natureza através da ciência e da vontade, experimentando um tão íntimo prazer nisso mesmo que se compensarão com juros das suas antigas esperanças de gozos eternos. Todos saberão que são mortais e enfrentarão a morte com orgulho e serenidade de deuses.”


A história desenvolve-se de encontro em encontro, de monólogo em monólogo. É favorecido o encontro privado, onde as pessoas se revelam na sua essência, mas também se dão cenas de ajuntamentos, em que o autor teceu com mestria as nuances dos sentimentos e das ideias de cada interveniente, e ainda bordou com esmero os ímpetos da alma coletiva. Destaco a cena no Mosteiro, ao qual se havia juntado Aliocha (o anjo Aliocha), o presbítero (entidade moral máxima naquela comunidade), Dmitri, com as suas acusações e declarado rancor ao pai, Ivan, observador e racional, e um familiar afastado que se exaspera e choca com as ofensas trocadas entre pai e filho. A cena chega a ser cómica, mas o travo a tragédia eminente está sempre presente.

Aliocha é uma personagem de grande espiritualidade e comedimento, a voz que consola os dissabores das outras personagens e que, apesar de jovem, tem sempre um conselho sábio a prestar. Segundo Freud, deve o nome e parte da sua aura ao facto de que o próprio casal Dostoiesvki havia perdido um filho homónimo (Alexey) com a idade de três anos, pouco antes de dar início a esta empreitada.

É uma obra muito cerebral, mas também apaixonada. Cerebral porque o autor foi abrindo questões cujas respostas iam surgindo oportunamente ao longo da sua extensão. Por outro lado é uma obra de grande emotividade, porque são as paixões que movem os ódios e os amores dos Karamazóv, tantas vezes apontados como “uma família à parte” pelas personagens que com eles se cruzam, mas que, com toda a certeza, são um espelho fidedigno da Rússia do século XIX.

Sabemos que Dostoievski, tendo falecido com apenas 59 anos, viveu uma vida de grandes sobressaltos. O pai seria um tirano, o jovem sofreria de epilepsia, foi submetido a trabalhos forçados na Sibéria, desprezava o czar e a Rússia Imperial, e professava um ténue socialismo, bem como outras crenças que haveria de consolidar ao longo da sua vida.

Os Irmãos Karamazov é um romance de grande espiritualidade e senso filosófico, em que o autor não deixa de se questionar acerca da família, de Deus, da natureza humana e seus consequentes atos e impulsos. Uma obra maior que, um dia, espero encontrar alento para reler. Estou convencida de que, nas suas entrelinhas, virei ainda a deslindar muitas outras conclusões.

 

Classificação: 5/5******