#23 As Cinquenta Sombras Mais Negras
Título oficial: Fifty Shades Darker @ 2017
Realizador: James Foley
Actores principais: Dakota Johnson, Jamie Dornan, Kim Basigner
Classificação IMDb: 4,9
Minha classificação: 2
Realizador: James Foley
Actores principais: Dakota Johnson, Jamie Dornan, Kim Basigner
Classificação IMDb: 4,9
Minha classificação: 2
No Dia dos Namorados, decidi cultivar o meu ladomasoquista e, numa de desportiva, fui com uma amiga ao cinema ver “As CinquentaSombras mais Negras”. O primeiro tinha oferecido bastante material pararisadas, e a minha única expectativa quanto ao filme é que pudesse rir-me doridículo. Começo logo a rir-me pela tradução portuguesa da coisa, que lhe roupa o sentido, se é que tem algum...
De salientar que nunca tinha lido os livros (li apenas 30 páginas doprimeiro, por ser tão mau que o meu cérebro se recusou a prosseguir). Já a ver “Crepúsculo”– outra vez o meu lado masoquista –, o meu cérebro vai ameaçando desligar-se,tipo corte eléctrico. Sofre assim uns apagões e tal, mas ao menos conseguia irlendo as falas sem encontrar defeitos em todas as palavras. Mas nunca me tinha acontecido, durante uma sessão de cinema, sentir-me a ponto de explodir por não poder assinalar todas as absurdidades, e por as minhas pernas terem quase vida própria e quererem sair dali. Felizmente fui com a melhor das companhias, e apesar de sermos as duas mais odiadas da sala - devido às risadas, aos suspiros, aos "oh my God", "ridiculous" e etc., pude respirar a meio da película e despejar na língua inglesa o mal que aquilo me estava a fazer à saúde. Depois mentalizei-me que era só mais uma horinha, e que se estivesse com cólica renal seria pior, e lá assisti à segunda parte também.
Que fenómeno é este que encheu, ontem às 21:40, asala 2 de cinema do Almada Fórum? Fileiras inteiras de mulheres de todas asidades e casais jovens pejavam o cinema de uma ponta a outra, até a Primark estava vazia ontem, porque 70%do público-alvo estava de bilhete em punho dois andares acima. Seis anos depoisde sair o primeiro livro, continuo sem resposta.
Dakota Johnsoncontinua embaraçosamente má no seu papel. Eu entendo, não é fácil ler aquelassaídas “Sim, aceito jantar contigo, mas só porque estou com fome”, ou gaguejara cada três linhas, ou gemer a cada duas, ou soltar gritinhos de surpresa acada vez que muda de direcção ao caminhar.
JamieDornan está bem melhor neste filme, parece que conseguiu ultrapassar opouco à-vontade do primeiro (arrumando falas como “eu não faço amor, eu fodo àbruta”), mas ainda assim teve de passar por dois momentos em que teriam de mepagar muito bem como actriz: o primeiro ao fingir que está a ter pesadelos, a rebolar-se nos lençóis e a gritar “não”, de modo a quea sua cara-metade venha consolá-lo a meio da noite. Só expliquei em queconsiste a cena porque nunca viram isso em lado nenhum. O segundo é quando é obrigadoa debitar estas palavras: “tu ensinaste-me a foder, ela ensinou-me a amar”. De salientar que também está bem melhorfisicamente, é da barba. Está mais confortável no personagem e acaba por ser aúnica coisa menos má do filme, basta imaginarem aquele perfil a dizer-vos ao ouvido“tira as cuecas”, e acabou-se. Está comprado, vamos todas ver o filme. Foi maisou menos isso que aconteceu. Só que não… até isso se dilui no dilúvio deestupidez. Quando o filme começava a aleijar-me demasiado, punha a vista nele e ligava o piloto automático, e lá aguentava até à próxima panorâmica de Seattle.
JamieDornan está bem melhor neste filme, parece que conseguiu ultrapassar opouco à-vontade do primeiro (arrumando falas como “eu não faço amor, eu fodo àbruta”), mas ainda assim teve de passar por dois momentos em que teriam de mepagar muito bem como actriz: o primeiro ao fingir que está a ter pesadelos, a rebolar-se nos lençóis e a gritar “não”, de modo a quea sua cara-metade venha consolá-lo a meio da noite. Só expliquei em queconsiste a cena porque nunca viram isso em lado nenhum. O segundo é quando é obrigadoa debitar estas palavras: “tu ensinaste-me a foder, ela ensinou-me a amar”. De salientar que também está bem melhorfisicamente, é da barba. Está mais confortável no personagem e acaba por ser aúnica coisa menos má do filme, basta imaginarem aquele perfil a dizer-vos ao ouvido“tira as cuecas”, e acabou-se. Está comprado, vamos todas ver o filme. Foi maisou menos isso que aconteceu. Só que não… até isso se dilui no dilúvio deestupidez. Quando o filme começava a aleijar-me demasiado, punha a vista nele e ligava o piloto automático, e lá aguentava até à próxima panorâmica de Seattle.
É do livro, entende-se à terceira linha. É aescritora que não tem talento, pertinência, tacto, substância, profundidade. Acreditoplenamente nela quando diz que ia escrevendo o livro no seu Blackberry, porque a preguiça está lá equalquer pessoa sabe como se tem de abreviar a lista de compras quando usamos obloco de notas do telemóvel. Podia ter podido a coisa depois, mas pareceque não se deu ao trabalho.
A ideia do ciúme e da posse levados ao extremo éperigosa. A ideia de que uma mulher possa virar as costas a compromissos detrabalho porque o namorado tem ciúmes do seu chefe, pior ainda. E que aescritora acabe por mostrar que o namorado tinha motivos (quando nenhum tinhasido apresentado) para desconfiar do chefe *porque o chefe acaba por se atirarà rapariga* é a gota de água. O facto de este sétimo sentido do Grey acerca dequem quer comer a sua namorada desinteressante, se provar assertivo é um livrepasse para que os homens deem ordens às mulheres sob o pretexto do “vais ver,acredita em mim”. Não sendo linear, porque conheço inúmeras mulheresinteligentes, independentes e capazes, mas não são elas as que metem um dia defolga para ir ver este filme. E essas não se sabem proteger, e os homens aolado delas, ao ouvido dos quais elas explicavam que ele tem um trauma deinfância (que ninguém que não tenha lido o livro entende – como eu), começam aachar que como as mães lhes bateram com a concha da sopa, agora podem usar-sede violência para com as namoradas, porque elas estavam ali a rir-se, a torceras pernas e a soltar longos suspiros enquanto o Grey aplica umas palmadas bemenergéticas nas nádegas da Miss Steele. Para quem nada entende do franchising, há palmadas e palmadas. E estasnão são do tipo palmadita, são mais do tipo que a pessoa não se consegue sentarno dia seguinte.
Supondo que o cinema e as artes não influenciam assimtanto as pessoas, e que a cena da manteiga em "O Último Tango de Paris" não impulsionou a prática de sexo anal, ficamossó com uma história estúpida, vazia e cheia de incongruências. Uma escritapreguiçosa e desinspirada, em que cada conflito é uma preparação para a cena desexo seguinte, e em que o protagonista é dono do mundo, viaja em colunas decarros para ir a uma festinha em casa da mãe, refugia-se num barco quando achaque a casa está a ser ameaçada e mantém dossiers acerca de todas as gajas comquem privou. Uma história impossível sobre um homem que compra a empresa onde anamorada trabalha, só porque é maluco, e em que lhe enfia dinheiro pela goelaabaixo, quer ela queira, quer não. E ela, claro está, não quer.
De tudo o que me irritou nisto das CinquentaSombras de $, o pior é a fingida aura de sucesso e de independência daprotagonista, sendo que toda a gente a aborda para lhe dizer que o Christiangosta de mandar e que as mulheres lhe sejam submissas, e que ela não é o tipode mulher que se deixa controlar. Certo. Elanão é o tipo de mulher que se deixa controlar. Quando, nestas quase trêshoras de dois filmes assistidos, é que a personagem feminina tomou umainiciativa? Fez uma pergunta pertinente? Tomou uma decisão? Uma mulher quedeixa de cumprir compromissos de trabalho por ordem do namorado, que dá doisminutos de luta só para não ser demasiado óbvio que é unidimensional, paradepois ceder sempre? Ah, está bem. No fim do primeiro, quando ele a espanca eela lhe diz que aquilo não é para ela. (Porém, contudo, no seguimento…) Deresto, da pouca vida que E.L. James soprou a esta personagem, só lhe restagaguejar e falar para dentro, por sorte com toda a gente ao redor muito interessadaem escutar o que ela tem a dizer. Nunca a expressão “mosquinha morta” seaplicou melhor.
Por último a questão do ardente, escaldante,alucinante, inigualável sexo entre as personagens principais…
O que vejo é uma história escrita por mulheres e paramulheres, em que o homem cumpre as suas fantasias, certo, mas visualmente o quese vê, o que se ouve, o que se respira são as fantasias de uma mulher. Engraçado que a câmara, como é hábito, esteja focada no corpo feminino, mas é um erro de marketing. O olhar deste lado é de mulheres, pelo que surge assim mais uma coisa para corrigirem. Entendo que depois de um século a explorarem o corpo das mulheres no cinema, a favor dos homens, agora tenham de admitir que as mulheres também têm dinheiro no bolso para gastar, por isso basta mudarem a câmara das pernas da Anastasia para os abdominais do Jamie Dornan, como na cena em que ele está a fazer ginástica em casa, para verem o que são as gajas a gritar mais alto ainda.
E em que consistem essas fantasias de mulher que o Mr. Grey cumpre com tanto entusiasmo? São as de umhomem que tome iniciativa, que se mexa, que paire acima dela, que lhe dê ordens(geralmente relacionadas com a roupa interior dela, não com a sua carreira), que mostre que a deseja,que se aplique em dar-lhe prazer. Pelo menos pelo filme, não parece que a Steele dê grande retorno ao pobre homem. Uma vez mais, a sua falta de iniciativa a impor-se, e também nunca a vemos empenhada em satisfazê-lo a ele. Neste sentido, não me parece que os casais possam beneficiar muito desta promessa de sexo fantabulástico. Se a mulher não se mexer, e se o homem for como muitos, à espera de ser atendidos, não me parece que as brincadeiras vão muito longe, pelo menos sob o signo das Cinquenta Sombras. Lá está: escrito por mulheres e para mulheres, num universo onírico em que o homem não busca nada e dá tudo, ou, mais perfeito ainda, em que o homem descobre nos gemidos (ainda que de dor) da mulher a sua própria satisfação, e não precisa de mais nada.
Há coisas que sinceramente preferia nãosaber do universo íntimo destes dois personagens monocromáticos. É que isto não é bem pornografia, mas também não é bem a típica história“rapaz conhece rapariga”, e por várias vezes pensei “já estou a saber demais”. Nãoquero saber em que posições eles fazem sexo – o que é esquisito, porque oassunto interessa-me. Eles é que não. Este casal tão pouco nítido, emnada palpáveis, nem através da prometida quebra detabus ganha cor. Fica por ali, fora da sala de cinema, sem alma nem contornosreais. Como o meu cérebro, que também se recusou a entrar na sala e que só me voltoua falar hoje de manhã.
A cada vez que ele dizia que aquela casa também era dele, e a outra propriedade, e as jóias, e os carros, e as empresas, só me perguntava como tudo isto, esta inverosimilhança flagrante, pode apelar a todas as raparigas que estavam sentadas na sala de cinema, e como os seus homens, quem sabe de ordenado mínimo em carteira, podem sentir-se excitados perante uma história de um tipo novo, bom de cama e podre de rico, que faz o que quer de uma miúda descompensada.
Para entenderem o quão má a coisa é, deixo uma listade inconsistências. Só não escrevo mais porque não estou desempregada:
Portanto atenção spoiler alert:
- A rapariga passa a vida metida na casa dele, mas quandovai a casa para buscar algumas coisas, é na escova de dentes que pega – porca!
- Há uma antiga submissa do Grey à solta, apostada emassassinar a sonsinha de serviço, e apesar de ser uma pessoa frágil e desequilibrada,consegue infiltrar-se na garagem do Grey, cuja casa é tipo uma fortaleza, masnunca explicam como;
- Quanto à mesma rapariga, o Grey diz que tem “o seupessoal” em cima do acontecimento para a encontrar, mas a rapariga entra nacasa da Anastasia na boa – sem chave, sem arrombar a porta, sem partir uma janela,para vê-los dormir. Como? Fica por nossa conta.
- Ainda quanto à mesma rapariga, que é o grandeconflito e suspense do filme, o pessoal do Grey continua em cima dela, mas umavez mais ela entra tranquilamente na casa da Anastasia, sem que se saiba comoposto que não há nada arrombado nem fora do sítio, para a surpreender com outradas suas inspirações. Acham que nos explicariam porquê? Que se lixe a lógica;
- O matulão despenca-se com grande aparato num helicópteroacompanhado de uma assistente (julgo), acham que morre? Não, primeiro ésocorrido não se sabe por quem, faz todo o caminho de Portland para Seattle nãose sabe como, chega todo desgrenhado a casa sem que uma equipa de socorrostenha notificado a família de que está inteiro, e apresenta-se em casa a dizerque perdeu o telemóvel e por isso não pode ligar, enquanto a televisão notificaa sua provável morte e a família chora reunida;
- Acham que, no seguimento do acidente, o homem foidescansar e quem sabe reflectir sobre a vida? Não, foi fazer aquilo que pagámospara vê-lo fazer;
- Acham que uma pessoa com sangue na fronte vai aohospital ou fica em repouso? Nope, otodo-poderoso Grey vai à sua festa de aniversário, com direito a foguetes, e aempregada que se despencou com ele está lá, sem uma entorsezita que seja;
- Christian Grey, com tantas empresas einvestimentos, que toca piano e pilota helicópteros e barcos, que viveu umavida de horror e traumas que o marcaram para sempre, tem que idade? Este bilionário(milionário está fora de moda, a E.L. James quis fazer tudo em grande) que nomeio de todo o seu sucesso ainda tem tempo para dar uns tautaus às moças comchicotes e fivelas e coleiras na sua sala vermelha, tem que idade, vá? Umpalpite? Trinta e cinco, como eu pensava? Não, não, senhores. Tem vinte e sete.Now deal with it;
- Está sempre lua cheia em Seattle, espero que a NASAjá esteja em cima do acontecimento.
Para terminar, concordo com o anónimo – estou avarrer a internet à procura dessa crítica, mas não encontro –, que diz que acoisa mais profunda sobre o filme são o cordão de bolas metálicas que aAnastasia Steele usa. Agora deixo-vos a reflectir onde.