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Castelos de Letras

Em torno das minhas leituras!

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#215 MAUGHAM, W. Somerset, O Fio da Navalha

Opinião: 
“- Ela tinha uma alma maravilhosa, ardente, idealista e generosa. Os seus ideais eram magnânimos. Até no final houve uma certa nobreza na forma como procurou a destruição.”

O Fio da Navalha, publicado em 1944, e adaptado ao cinema em 1946 e em 1985, é o terceiro romance que leio do escritor britânico W. Somerset Maugham. Quando li o seu Servidão Humana, soube de imediato que tinha encontrado um dos escritores que me acompanhariam pela vida fora, e cujas obras haveria de ler e reler. Guardei este volume para uma altura de crise, em que precisasse de ter confiança na obra em que pegasse e, se o início foi algo espinhoso, depressa a voz única do escritor me envolveu, e quando dei por mim não conseguia pousá-lo. Há muito que não leio romances em pouco mais de vinte e quatro horas, e devorei as 300 páginas deste nesse mesmo período de tempo. Ainda assim, sei que ficará comigo. É daqueles que haverei de mencionar vezes sem conta.

Embora a sinopse sugira que este romance conta a história do aviador Larry Darrell, por quem um companheiro de aviação dá a vida na I Guerra Mundial, o romance é muito mais do que isso. Maugham conseguiu transportar-me para o período entre guerras sem cair em politiquices nem ao detalhes aborrecidos de estratégia militar. De facto, não dissesse ele, a poucas páginas do fim, que “rebentou a guerra”, e nem nos apercebíamos que o maior conflito armado de sempre, com 70 milhões de baixas, se insinuava nas entrelinhas das receções parisienses das personagens que acompanhamos há duas décadas.

A ação tem início em 1919 na sociedade de Chicago, e ao longo destas páginas o próprio Maugham é uma personagem algo secundária, que transita de núcleo em núcleo e que vai tendo notícias das pessoas a quem nos apresenta. Começamos por conhecer Elliott, um americano que circula nas esferas mais altas da sociedade Europeia, e que insiste que a única cidade civilizada para um homem superior viver é Paris. A partir daí, temos a ponte criada entre os capitalistas americanos, a bolsa, os corretores e o desejo desenfreado de progresso nos anos prósperos que antecedem o crash, e a realeza em decadência na Europa pós-guerra, que vive de superficialidades e de pedantismo. 

Sendo Larry o fio condutor que intriga o nosso narrador – e que ilustre narrador! – ao longo dessas duas décadas, ficamos a saber que o aviador parece ter perdido parte do juízo quando o seu melhor amigo da Força Aérea deu a vida para o salvar de uma ofensiva alemã, e o Larry de antes, com apenas 18 anos, bem posicionado na sociedade, com uma fortuna modesta e de noivado marcado com Isabel Bradley, uma menina de bem, muda. De repente, Larry deixa de se interessar pelo lado mundano da vida, e coloca-se à parte, como observador circunspeto. Procuram ceder-lhe um lugar entre os bem-posicionados de Chicago, pedem-lhe que se junte à construção de um país que se evidencia mais próspero do que o velho mundo, delapidado pela guerra e pelos velhos costumes de repente fora de moda, mas Larry garante, para desconcerto de quem o rodeia, que tudo o que deseja da vida é fazer “nada”, e que deve valer-se do privilégio de ter um bom rendimento para poder dedicar-se a isso mesmo.

Esta é a premissa principal de um livro que, um pouco à semelhança de Servidão Humana, me parece uma senda pessoal, muito espiritual e até mística a certa altura. O que, pela voz metódica e ultrarracional – por vezes também romântica e melancólica – de Maugham, poderia soar a contrassenso. 

descriptionHá várias passagens de grande riqueza humana. Aliás, ler o meu escritor favorito referir-se ao “animal humano”, uma expressão com que tantas vezes nos identifico, por ausência de outra que melhor exemplifique o que pretendo dizer, coloca-me em plena sintonia aquilo que julgo que Maugham sentia e pretendia ilustrar. É este o forte deste romancista. A capacidade de observação, a perspicácia, a tempos a ironia e o humor, a classe, a crítica social - elegante, subtil -, mas também a ausência de pedantismo que lhe permite falar ora de rameiras ora de condessas com a mesma elegância, a mesma dignidade.
 
Destaco dois momentos de Nirvana que servem para exemplificar momentos de clarividência de duas personagens – uma delas o próprio Larry, a outra um homem de negócios que de repente, perante o crash da bolsa, se vê despojado de tudo o que lhe era caro. Foram passagens de tamanha beleza, tamanha carga emocional… Maugham encheu-me o peito e depois esvaziou-o com um grande suspiro com essas passagens, mas eu já não me sentia a mesma depois de as ler. São sítios próximos a outros que experimentei em meditação ou em momentos em que contemplei a natureza, e por isso os senti na pele com a nitidez de um arrepio.

A tempos claustrofóbica, a sua descrição da alta sociedade americana e europeia parece-me bastante detalhada, e soa-me desgastante. Tantas receções, cocktails, jantares, idas ao teatro… Enfim, tanto ócio, tanto hedonismo, tanta hipocrisia, tanta superficialidade e, ainda assim, tanta grandeza e humanidade nesses simples humanos, Comuns Mortais como o autor os nomeia, cai-me sempre enternecedora; é-me palpável.

Cheguei a meio do livro sentindo-me íntima não só do nosso escritor deambulante, mas também de toda e cada uma das personagens, e a cada vez que o autor se cruzava numa das suas viagens – Paris, Marselha, Mónaco, Londres – com essas pessoas que, desconfio, são bem reais, mas às quais ele terá prestado a cordialidade de alterar os nomes, dei por mim a beber avidamente das atualizações das suas vivências, das reviravoltas das suas expetativas e desencantos.

Larry, como caminho sinuoso e de poucas palavras que constitui em simultâneo a maravilha e o mistério deste romance, constitui um contraste gritante para com o borrão cinzento dos tais Comuns Mortais. É como se fosse uma obra de Picasso no marasmo bucólico de uma exposição de nenúfares. É com as suas viagens, a sua abordagem à vida, ao mal e aos outros, que o livro de facto se supera, e é das suas parcas palavras que tirei as principais lições de O Fio da Navalha.

Destaco também a elegância desta edição da Asa, que me parece irrepreensível e sem dúvida muito adequada ao conteúdo sublime deste romance. A isto junta-se a grande competência da tradução, que me pareceu elevar um livro já de si de extrema elegância e por vezes até poético.
A ler no momento certo.

Classificação: 5*****

Sinopse: Quando um amigo e colega de combate morre ao tentar salvá-lo, a vida de Larry Darrell muda para sempre. Para o jovem aviador americano, a morte passa então a ter um rosto. O inexorável mistério da morte leva-o a questionar o significado último da frágil condição humana e a embarcar numa obstinada e redentora odisseia espiritual. Ao recusar viver segundo as convenções impostas pela sociedade para buscar o sentido da vida (que encontrará, certa manhã, algures na Índia), Larry torna-se simultaneamente uma frustração para os que o rodeiam - principalmente para Isabel, a namorada, e Elliott, tio desta, que cultivam acima de tudo a aceitação e o prestígio sociais - e a personificação de um ideal de espiritualidade e não-compromisso. Por duas vezes adaptado ao cinema, O Fio da Navalha é um romance intemporal. As ansiedades e dúvidas de Larry são também as nossas; continuamos até hoje a buscar um sentido para a nossa existência. Para encarnar essa luta contra o destino, Somerset Maugham criou um dos mais fascinantes personagens do seu vasto legado literário. Da Primeira à Segunda Guerra Mundial, passando pela Grande Depressão, ele leva-nos, através das sociedades francesa, americana e inglesa, à verdade mais recôndita da alma e do sentimento humanos.