#309, GILMAN, Charlotte Perkins, The Yellow Wallpaper
"I verily believe she thinks it is the writing which made me sick!”
Ouvi o audiobook do projeto LibriVox no Spotify durante uma viagem Évora-Almada, no entanto, penso que o audio nem sequer chegue a 40 minutos. É a prova de que não é preciso um calhamaço para uma obra nos ficar gravada na alma.
Quis conhecer esta obra de Charlotte Perkins Gilman (1860-1935) porque, ultimamente, o livro tem vindo ter comigo por vários atalhos. Volta e meia vem à baila, sobretudo no âmbito da cadeira de Mestrado de Literatura que estou a frequentar, e decidi dar-lhe uma oportunidade. Ouvi-o enquanto chovia fora do autocarro e sem saber nada da autora nem do contexto (sequer o ano de publicação), porque receei que pudesse influenciar-me. Já entendi que as obras acabam por ter mais valor quando há algo de interessante, de curioso, de revolucionário em torno da sua execução ou da vida do/a autor/a. Contudo, acho que as obras devem valer por si próprias sem necessidade de introduzir referências pelo meio, mas achei tão interessante o percurso e os princípios da autora que vou começar por partilhar alguns pormenores da sua vida nesta review.
"Charlote Perkins Gilman foi uma escritora, filósofa e reformista norte-americana" segundo a página History of Women Philosophers and Scientists, cuja obra mais importante é esta, um conto autobiográfico publicado em 1892. A obra remete para o período da sua vida em que, após dar à luz a sua única filha, e sofrendo daquilo que provavelmente hoje sabemos ser uma depressão pós-parto, foi incentivada pelo Dr. Silas Weir Mitchell, especialista em doenças nervosas, a adoptar um regime de repouso intenso para ultrapassar a sua "exaustão nervosa". Esse regime completamente vazio de estímulos e de atividade, bem como de sociabilização fora do seu círculo doméstico, quase enlouqueceu a autora. Em 1894 divorciou-se depois de concluir que a vida doméstica não lhe trazia felicidade.
Teve (alegadamente) pelo menos duas relações sérias com mulheres, e voltou a casar-se em 1900, com um primo. Ao contrário do primeiro casamento, esse segundo foi uma união feliz.
Feminista, lutou pela emancipação sobretudo económica das mulheres, deu várias palestras em defesa dos seus direitos e combateu os princípios nocivos da medicina perpetuada por entidades masculinas quanto àquilo que eram considerados "males femininos".
Publicou várias obras, entre as quais poemas e não-ficção, destacando-se talvez Herland, uma utopia baseada numa sociedade exclusivamente feminina. Ao ser diagnosticada com cancro, a autora optou por ser ela a decidir quando e como iria acabar a sua vida. Escusado é dizer que não recebeu qualquer tipo de reconhecimento/louvor pelo seu trabalho enquanto viveu, nem no campo da literatura nem da pintura.
Quando ao livro, que ouvi num sotaque adorável de uma narradora que vestiu tão bem a pele da personagem (sem nome), é sublime em todas suas suas subtilezas sendo que, ao mesmo tempo, é brutalmente honesto sobre o mundo interior feminino e a condescendência com que eram tratadas, num estranho binómio condescendência e/ou violência.
A personagem principal fala com o leitor através de escritor secretos, um refúgio durante o seu isolamento numa casa onde irá viver com o marido, o bebé e uma criada durante 3 meses. Logo de início, manifesta o seu desconforto perante o papel de parede amarelo que reveste o quarto onde o marido a "confina" para o seu regime de repouso intensivo. A partir daí, tudo o que manifesta é perturbador, mesmo porque se torna claro, desde início, que esta mulher escreve numa tentativa desesperada de tentar manter a sanidade, de tentar dialogar com alguém (o vazio? o papel de parede?) que a ouça porque, perante o marido, que é médico, e portanto uma autoridade incontestável, e a criada. Segundo a própria:
"I must say how I feel"
Vemo-la proibida de ler, de escrever, de pintar num pincel, porque todas essas atividades inquietam as mentes femininas, a desabafar sozinha, às escondidas, sem o conforto de um livro ou sequer de um amigo ou familiar, porque acaba por ser também o marido a decidir quem lhe faz bem.
Sente-se culpada pela sua condição, por não conseguir amar o bebé como deveria, por se sentir cansada, preguiçosa, sonolenta durante o dia e incapaz de dormir à noite, incapaz de se expressar por receio de represálias do marido, que apenas quer o seu bem, passa muito tempo sozinha e, quando o marido a visita, minimiza as suas ideias - inclusivamente quanto a si própria e ao seu estado de espírito/saúde -, adia conversas importantes, impedindo-a de expressar os seus sentimentos. Finge dormir quando o marido lhe exige horas intermináveis de repouso, obrigando-se a usar uma máscara até para ocultar aquilo que seriam necessidades básicas, como ter sono/não ter. A dada altura, usa a palavra suicídio, noutra, fala em saltar da janela, noutra ocasião imagina-se a queimar a casa por completo para se livrar do papel de parede e do seu cheiro. O final é igualmente interessante, abre as portas a muita discussão.
Uma voz narrativa poderosa, apesar da ternura, da fragilidade, da condição de humano debilitado inerente.
Fiquei assombrada com este livrinho pequenino (e barato!) disponível gratuitamente em inglês em vários suportes legais, e também em português em várias edições relativamente recentes. Ainda bem que não o deixamos morrer.