Opinião:Há algo de muito terno e genuíno nos livros desta autora. À semelhança de “Pequenas Coisas como Estas” a autora tece uma obra pequena, apenas com as personagens e os momentos necessários, sem se perder em divagações. Depois, traça a sua rotina, geralmente numa Irlanda pobre onde o povo labuta arduamente por alimento enquanto é fortemente influenciado pela igreja e está sujeito à intempérie.
Neste «Acolher», nunca chegamos a saber o nome da personagem principal (ou passou-me completamente ao lado), é uma criança, e isso é tudo o que importa saber. Uma criança que, durante as curtas 65 páginas do livro vai conhecer uma rotina diferente da sua, vai ver o mar, vai comer com abundância, vai andar limpa e bem vestida e, acima de tudo, vai experimentar afeto. É comovente essa estranheza da criança carente e negligenciada para com o afeto. A autora até nisso foi sublime, porque é difícil não chorarmos na cena final.
Podia escrever um ensaio de 300 páginas sobre estas 65 da autora, mas basta-me pedir-vos que lhe deem uma, duas horas, e que me digam se este equilíbrio entre rudeza e ternura não é perfeito.
Sinopse:Uma menina vai viver com pais adotivos numa quinta na zona rural da Irlanda sem saber quando regressará. Numa casa desconhecida, de gente estranha, encontra um calor e uma afeição que não sabia existirem e começa lentamente a florescer. Até que a revelação de um segredo a faz compreender a fragilidade da sua vida.
Opinião: Não sei que feitiço me tomou, mas espero que não se fique por aqui. Comecei a ler A Pediatra há dois dias, no Kobo. Todas as minhas leituras têm sido no Kobo. Gostava muito da premissa, mas receei que o facto de a obra ser em PT-BR pudesse desmotivar-me - porque poderia exigir um esforço extra a uma leitora já muito preguiçosa.
No entanto, a premissa tem outra complexidade para além da anunciada, a narrativa é rápida, vertiginosa. Percebemos que estamos perante uma mulher inteligente e altamente qualificada mas com problemas de relacionamento e um certo desiquilíbrio emocional - segundo Cecília, não precisar de ninguém é força, mas creio que se sente a sua carência e a sua solidão nas entrelinhas da sua voz.
Esta pediatra que «não gosta de crianças» é divorciada, vive para o trabalho e a pessoa que tem de mais próxima é a empregada, Deise, que também instrumentaliza a seu bel prazer. No emprego, Cecília é competente, mas não se entrega às crianças, não se enternece com o laço mãe-filho. Simplesmente observa tudo com cinismo, distanciamento, frieza profissional. Achei-a uma personagem muito complexa, irascível, de mau feitio e bastante amargurada com a vida.
O amante, a empregada, o pai que trabalha no mesmo edifício mas que, ainda assim, é sempre mantido à distância, o filho do amante, por quem esta pediatra que «não gosta de crianças» se encanta, sem que o leitor compreenda, sem que ela compreenda.
Acho que Andréa del Fuego criou aqui uma narrativa pujante sobre a atualidade: as lutas interiores e a exaustão de uma vida cheia de exigências em que as mulheres têm de ser exímias em tudo, em que têm de ansiar por ser mães, por uma família, por sucesso profissional e por estarem sempre lindas, perfumadas, frescas. Gostei muito da Cecília, uma mulher claramente à beira do abismo.
Sinopse: Com humor mordaz, o novo romance de Andréa del Fuego apresenta a história de uma personagem muito peculiar: Cecília, uma pediatra nada afeita a crianças.
Cecília é o oposto do que se imagina de uma pediatra – uma mulher sem espírito maternal, pouco apreço por crianças e zero paciência para os pais e mães que as acompanham. Porém a medicina era um caminho natural para ela, que seguiu os passos do pai. Apesar de sua frieza com os pacientes, ela tem um consultório bem-sucedido, mas aos poucos se vê perdendo lugar para um pediatra humanista, que trabalha com doulas, parteiras e acompanha até partos domiciliares. Mesmo a obstetra cesarista com quem Cecília sempre colaborou agora parece preferi-lo. Ela fará, então, um mergulho investigativo na vida das mulheres que seguem o caminho do parto natural e da medicina alternativa, práticas que despreza profundamente. Em paralelo, vive uma relação com um homem casado, de cujo filho ela acompanhou o nascimento como neonatologista. E é esse menino que irá despertar sentimentos nunca antes experimentados pela pediatra.
Opinião: Lido no kobo, não esperei gostar tanto deste «Leme».
Por um lado, até cerca de um terço do livro, senti que a questão da violência doméstica, por vezes subtil e até passiva, exigia uma estrutura mais densa, outro peso na narrativa que nunca mais vinha. O livro parece, em certa medida, escrito por uma mulher muito jovem, à qual falta uma certa profundidade. Parece uma voz mais juvenil, sobretudo porque antevemos o seu presente, sabemos que é adulta, mas talvez o livro só funcionasse com esse tom mais pueril.
No entanto, na segunda parte da leitura, que me agarrou pelo colarinho e que li de um fôlego, percebi que isto não é um retrato da vida da personagem, e que era essa tridimensionalidade da vida da personagem que estava em falta, e que eu continuava a procurar. Refiro-me a relatos do quotidiano em que o tal Paulo, o padrasto agressivo, não fosse a personagem principal. Foi então que me mentalizei de que o livro é sim um relato da vida com um padrasto abusivo, e vi-me obrigada a repescar o meu próprio lema, segundo o qual menos é mais. Portanto, a autora contornou a palha e levou-nos direitos ao padrasto tóxico.
Somos conduzidos pela sua infância, pelo casamento doloroso da mãe, pelas marcas que essa relação abusiva deixou nela enquanto criança e jovem. Apesar de, a tempos, o sentir um pouco superficial, houve momentos que me arrebataram por me identificar e/ou conhecer pessoas próximas que conviveram com este tipo de violência. Comoveu-me várias vezes, essa violência dos gestos bruscos, das portas a bater, dos estalidos de língua, dos objetos a voar e dos pontapés nas coisas. Toca ainda o tema da molestação de menores que, embora muito sucinto, é muito representativo dos casos reais.
Aquilo que lhe valeu as quatro estrelas foi, acima de tudo, o desprensiosismo ao contar a história, mas também os capítulos curtos que me iam catapultando de uma reflexão para a seguinte. A narrativa não tem exatamente um fio condutor - isto é, não está organizada cronologicamente, por exemplo -, mas isso também não faria sentido. Viajamos de evento marcante em evento marcante, em que por vezes o que dói é apenas a rotina numa casa que não é refúgio.
Houve dois ou três episódios que me atingiram realmente, (view spoiler), e acho que foi nesses momentos que senti a história como real, em que me recordei de que não estava simplesmente perante uma obra de ficção.
Não diria que é um portento da literatura, mas é uma boa estreia de uma autora portuguesa: uma voz sem floreados, episódios palpáveis, um enredo contemporâneo com o qual é fácil identificar-nos. Vale muito a pena pela abordagem que faz a esta questão de amarmos e odiarmos aqueles que nos são próximos, e a como isso nos rasga a alma.
Sinopse:Leme é o relato da vivência de uma rapariga que assiste, durante anos, à erosão dos pilares que sustentam as ligações humanas: vê a mãe subjugada à violência do homem com quem mantém uma relação amorosa disfuncional; vive na pele a distorção dos papéis desempenhados por pais e filhos; alimenta-se da solidão para ultrapassar um quotidiano de medo e fúria; disputa um lugar só para si no meio do caos familiar; aprende a reconhecer o consolo das pequenas vitórias; e, por fim, reconstrói-se a si e às suas memórias.
Nenhuma criança conhece de antemão os nomes das coisas, mas todas as crianças reconhecem instintivamente o perigo. Para a protagonista desta história, o perigo tem o nome de um homem, e é sinónimo de obsessão, desequilíbrio, solidão, desamparo, poucas certezas e muitas dúvidas. Leme é um golpe de escrita para regressar à vida. Uma cintilação plena de vida e um soco no escuro que nos engole: eis um livro que aponta diretamente aos limites do bem e do mal.
Sinopse: Em finais dos anos 70, no Caniço, uma cidade costeira na ilha da Madeira, todos conhecem Ana Clara, a estranha rapariga que não fala e que passa os dias à janela.
Quando Anita Fontoura a vê, também ela presa na sua janela de solidão imposta pelo marido, desenvolve-se entre as duas vizinhas uma amizade inesperada.
Décadas mais tarde, de regresso à ilha para enterrar Anita, a sua filha Oti reencontra-se com Ana Clara, sua madrinha, para tentar compreender a história da família, das mulheres Fontoura, da fuga das duas para Lisboa e daquela mãe que foi tão difícil amar.
Este é um romance sobre liberdade e coragem, sobre forjarmos nosso próprio caminho, sobre gritos no silêncio. Duas mulheres enclausuradas que o destino uniu e que, juntas, encontraram uma forma de voar.
Opinião: EmVertigens, a Valentina Silva Ferreira dá-nos a conhecer um leque de mulheres inesquecíveis. Ainda que as protagonistas sejam, indiscutivelmente, Ana Clara e Anita Fontoura, senti por várias vezes que o verdadeiro protagonista é o sagrado feminino - o ser mulher, as ligações entre as mulheres, a doçura, a força, a resiliência das mulheres e o seu estatuto, à época, de cidadão de segunda.
A minha maior surpresa foi para com a voz narrativa desta jovem autora madeirense. Nunca tinha lido nada da Valentina e, ao abrir o seu livro, senti-me perante um talento colossal. Uma voz poderosa mas que não se esforça, não se afeta. Uma voz acessível mas muito, muito lírica, que polvilha a historia de misticismo. Não conheço muitos livros assim de autores portugueses e, tendo de o aproximar de um estrangeiro, diria que há um quê de Gabriel Garcia Márquez no modo como as vidas das mulheres Fontoura são contadas. Embora sem cair no realismo mágico, há ali uma série de apontamentos memoráveis, de sentido de continuidade, que me remeteu para o universo das goiabas e dos trópicos.
MasVertigensé ainda mais do que isso. É um livro primorosamente escrito que nos traz a Madeira, os madeirenses, a clausura da ilha lado a lado com a sua beleza fatalista. É um livro excepcionalmente envolvente, que merece a distinção como semifinalista do Prémio Oceanos, e que promete um futuro pleno de luz à sua autora.
Opnião: "(...) É cada vez mais difícil lidar com um corpo que falha. Mais comprimidos, mais uma operação, um coração mecânico, uma válvula aqui, uma placa de titânio ali, a carne macerada, os ossos em franca erosão, tudo preso pela ciência da longevidade e por peças impressas em máquinas 3D, como se a morte não fosse parte da vida, mas, antes, uma sentença adiável, até se atingir o limite do conhecimento humano, que, como se sabe, é impossível, visto que este é como o universo e a estupidez..."
Depois de um longo jejum de leitura - só tenho lido o que estou a traduzir -, decidi apostar no último livro da Filipa Fonseca Silva, porque a sinopse promete uma viagem a lugares que nunca tinha explorado na literatura: a sexualidade geriátrica.
Ultrapassada uma certa resistência inicial, e auxiliada pelo tacto da autora, que nos conduz por esse mundo em que nunca me tinha permitido pensar com sensibilidade e um toque de humor, aventurei-me na viuvez da Helena.
A Helena é uma octogenária que, apenas depois da morte do marido, começou a saciar a sua curiosidade quanto ao mundo do sexo. Na exploração da sua sexualidade, tem o seu primeiro orgasmo aos 70 anos, e essa descoberta desperta-a para tudo aquilo que nunca fez e que não quer morrer sem fazer. E se eu morrer amanhã? torna-se o seu lema e, na sua jornada de descoberta, acaba por ter ainda algumas coisinhas a ensinar aos filhos e à neta. Gostei acima de tudo da relação da Helena com a neta, mas também da abordagem ao sexo como um ato de companheirismo, de confiança, de exploração e de partilha sem preconceitos. Gostava tanto que a Helena fosse minha avó <3
Acabei este livro abraçada a um presente inesperado: a minha vida não vai acabar aos 50, nem aos 60. Se calhar, nem aos 90. Aconselho vivamente este livro para refletirmos com leveza - mas pertinência - em assuntos que nunca nos ocorreram, e que agora vão lançar um novo prisma sobre a vida e as suas infinitas possibilidades.
Sinopse: Helena é uma viúva de setenta e nove anos aparentemente pacata. Vive com o gato num apartamento, independente dos filhos e netos adultos, gozando de ótima saúde física e mental. Até ao dia em que, por acidente, pega fogo à sala de estar.
Obrigada a mudar-se para casa da filha, que começa a questionar a sua sanidade, acaba por revelar um segredo que deixará toda a família boquiaberta: afinal, tem uma vida sexual ativa. Muito ativa.
A partir desta confidência, Helena conta-nos as suas aventuras amorosas e o lema de vida que adotou desde a morte do marido, com quem partilhou mais de quatro décadas de descontentamento.
E se eu morrer amanhã? é um romance hilariante, que nos leva a refletir sobre os preconceitos em relação às mulheres mais velhas e o enorme tabu em torno da sua sexualidade. É também uma luz de esperança, iluminando a ideia de que nunca é tarde para descobrir o que nos faz feliz.