Opinião: Há, na natureza humana, uma espécie de competição passiva entre mãe e filha, em certos núcleos. Muito se tem falado de crianças criadas por mães narcisistas, creio que Irene Nemirovsky, inspirada na sua própria relação com a mãe, nos ofereça um conto sublime em torno do assunto. É simples, curto, contém apenas o essencial. Ainda assim é intenso, com personagens cheias de nuances e de motivações. Antoinette tem 14 anos e é quase uma mulher. Os pais, um judeu convertido e uma ex funcionária de banco, são novos ricos graças a uma jogada na bolsa. Desesperados por impressionar a classe a que tanto desejaram pertencer, negligenciam a filha única. Vivem de aparências, e procuram moldar Antoinette a um estilo de vida em que, acima de tudo, importa impressionar.
Antoinette vinga-se dos pais da melhor forma, em especial da mãe que lhe é abertamente hostil. Lembrou-me, com melancolia, a intensidade das novelas de Stefan Zweig. Gostei muito.
Sinopse:Os Kampf, acabados de transpor o limiar da opulência devido a uma miraculosa jogada de Bolsa, decidem dar um baile para se lançarem na sociedade. Antoinette Kampf tem catorze anos e sonha estar presente na grande ocasião, mesmo que por breves instantes. No entanto, Mme. Kampf toma a irrevogável decisão de não permitir a presença da filha, já suficientemente crescida para atrair sobre si olhares de eventuais admiradores. Antoinette, revoltada e em desespero, vai vingar-se com naturalidade e sem premeditação. Os temores trágico-cómicos de arrivistas que recebem pela primeira vez pessoas que desprezam e que nutrem por eles o mesmo tipo de sentimento, a rivalidade mãe-filha que finalmente se manifesta a pretexto de uma frivolidade, a amarga solidão de uma criança que já deixou de o ser, tudo isto nos é oferecido por este livro fascinante e perturbador. O Baile foi adaptado ao cinema, com Danielle Darrieux no principal papel.
Sinopse:Na biblioteca do faraó Ramsés II estava escrito por cima da porta de entrada: «Casa para terapia da alma». É o mais antigo mote bibliotecário. De facto, os livros completam-nos e oferecem-nos múltiplas vidas. São seres pacientes e generosos. Imóveis nas suas prateleiras, com uma espantosa resignação, podem esperar décadas ou séculos por um leitor.
Somos histórias, e os livros são uma das nossas vozes possíveis (um leitor é, mal abre um livro, um autor: ler é uma maneira de nos escrevermos).
Nesta deliciosa colheita de relatos históricos e curiosidades literárias, de reflexões e memórias pessoais, Afonso Cruz dialoga com várias obras, outros tantos escritores e todos os leitores.
Este é, evidentemente, um livro para quem tem o vício dos livros.
Opinião: Este 3 é, na realidade, um 2,5, arredondado para 3 para a) não dizerem que sou má e b) fazer jus à escrita, que é bastante competente. Mas nunca passa disso: uma tecelagem de assuntos em torno de livros e da leitura, alguns mais interessantes do que outros (gostei da história do prisioneiro leitor), e da associação dos gatos aos leitores e aos escritores. Como li, ainda este ano, Manual de Sobrevivência de Um Escritor ou o Pouco que Sei Sobre Aquilo Que Faço, de que até gostei e que considero superior a este (em termos de associações, de tom, de referências a outros escritores e ao papel dos livros), este livro pareceu-me mais do mesmo. Não me trouxe nada de novo e até me fez torcer o nariz nalgumas partes. Tal como quando se lê que o mundo precisa de pessoas que prefiram cultura a pão (ou uma variante disto), e quando li que um escritor é um ser humano com uma ferida permanentemente aberta, e que isso é também o que define o ser-se humano... ter-se uma ferida aberta? Como assim? O humanos sem dores não são... humanos?
Enfim, eu percebo o esforço para se ser "poético", aliás, muito se fala aqui de poesia e de como é essencial à vida. Fala-se também da diferença, uma vez mais, entre ler qualquer coisa, ler desatento, ou ler "arte", e ler com atenção. Há imensas referências a autores já muito consagrados, como Henry Miller, Kundera, Rilke, e acredito que todos sejam igualmente apaixonados por leitura e escrita, mas continuo à espera que se olhe para isto dos livros de outro modo. Não como um clube de VIPs admirados uns pelos outros, mas com o assombro de quem descobre em cada novo escritor uma nova mente, com novas ideias.
Em suma, o tom delicodoce que vislumbrei ao ler Flores, uma tentativa superficial de enaltecer a arte de escrever e as suas mentes, uma predileção por palavras esquisitas e terminologia inventada que me deixa sempre de pé atrás, uma tentativa gorada desta leitora de encontrar algo de pertinente neste livro sobre livros. Diria que é um livro um tanto "preguiçoso", com muitas citações, do género "mini-tese" acerca de.
No entanto, lê-se muito bem. Há muito tempo que não lia um livro numa tarde!
Sinopse: Escrito em plena tormenta da História, Suite Francesa descreve quase em directo o Êxodo de Junho de 1940, que reuniu numa desordem trágica famílias francesas de todos os quadrantes, das mais abastadas às mais modestas. Com grande audácia, Irène Némirovsky persegue as inúmeras pequenas cobardias e os fracos gestos de solidariedade de uma população à deriva. Cocottes abandonadas pelos amantes, grandes burgueses enojados com a populaça e feridos abandonados em quintas entopem as estradas de França bombardeadas ao acaso... Pouco a pouco, o inimigo toma posse de um país inerte e amedrontrado. Como tantas outras, a aldeia de Bussy é então obrigada a acolher o exército ocupante. Exarcebadas pela sua presença, as tensões sociais e as frustrações dos habitantes despertam...
Suite Francesa é, ao mesmo tempo, um brilhante romance sobre a guerra e um documento histórico extraordinário. Uma evocação inigualável do êxodo de Paris após a invasão alemã de 1940 e da vida sob a ocupação nazi, escrito pela ilustre romancista francesa Irène Némirovsky ao mesmo tempo que os acontecimentos se desenrolavam à sua volta. Embora tenha concebido o livro como uma obra em cinco partes (com base na estrutura da Quinta Sinfonia de Beethoven), Irène Némirovsky só conseguiu escrever as duas primeiras partes, Tempestade em Junho e Dolce, antes de ser presa, em Julho de 1942. Morreu em Auschwitz no mês seguinte. O manuscrito foi salvo pela sua filha Denise; foi apenas décadas depois que Denise descobriu que o que tinha imaginado ser o diário da mãe era na verdade uma inestimável obra de arte, que viria a ser aclamada pelos críticos europeus como um Guerra e Paz da Segunda Guerra Mundial.
Romance assombroso, intimista, implacável, desvelando com uma lucidez extraordinária a alma de cada francês durante a Ocupação (enriquecido e completado pelas notas e pela correspondência de Irène Némirovsky), Suite Francesa ressuscita, numa escrita brilhante e intuitiva, um momento decisivo e marcante da nossa memória colectiva.
Opinião: A fascinante Irene Némirovsky, de origem judia e nascida em Kiev, tinha planos para escrever um Guerra e Paz que narrasse a ocupação de França pelos nazis. Tinha-se naturalizado francesa havia muito, era casada e tinha filhas francesas. No entanto, sentia-se vulnerável devido às suas origens, e retirou-se para o campo com a família. Ali, enquanto esperava que o inimigo a encontrasse, acalentava a esperança de que isso nunca acontecesse. Escrevinhou um esquema geral para o romance colossal que pretendia criar, apontou as suas dúvidas, fez pesquisa, tirou notas acerca das personagens e suas vivências.
Suite Francesa é a minha estreia com a autora. Comecei por ler sobre a sua vida, e comovi-me profundamente. É costume dizer que não se deve confundir o autor com a obra, nem ler a obra influenciado pela figura do autor. Neste caso, a narrativa está tão entrelaçada com a voz da autora que a absorvi sempre ciente de quem a escrevia.
A autora criou um mosaico de diversas personagens na França de 1940. Temos os Michaud, uma família que trabalha num banco e aguarda o regresso do filho da frente, após a derrota francesa, os Péricand, da alta burguesia, ricos e, ainda assim, conscientes dos sacrifícios inerentes à época, os Corte, um coleccionador de loiça de Limoges que escapa à evacuação de Paris para depois ser tolhido pelo blackout (não podiam acender luzes em Paris durante a noite, nem sequer de automóveis, devido aos bombardeamentos dos aliados), etc.
A meio da narrativa surgem Lucille e a sogra, a senhora Angellier, bem como o oficial alemão que estas são obrigadas a alojar em casa. Toda a leitura demonstra uma humanidade profunda e espontânea. A autora não odeia o indivíduo alemão, tal como não enaltece o indivíduo francês. Retrata o primeiro com a sua sensibilidade para a arte, o seu sentido de dever e o seu saudosismo para com a Alemanha natal. Retrata o segundo com o seu snobismo de classe, o seu vício da cuscovilhice e da bebida, a sua mesquinhez ocasional. Em suma: permite-nos compreender que os homens são todos iguais, são os governos que diferem e os lançam uns contra os outros.
A narrativa foi interrompida pela deportação da autora para Auchwitz. O marido, sem fazer ideia do que significava esse lugar, bateu-se durante meses com as entidades alemãs para tentar obter notícias da mulher e trazê-la de volta a casa. Os alemães acabaram por se aborrecer com este católico tão aficcionado de uma judia, e acabaram por o executar nos mesmos moldes.
As filhas do casal fugiram com ajuda de amigos da família, estavam expostas e podiam ser consideradas judias por via da mãe. Dos objetos da casa, levaram apenas uma mala com os escritos da mãe. Décadas depois tiveram coragem de abrir o manuscrito, que julgavam ser um diário íntimo da mãe, e compreenderam que é na realidade uma obra de ficção que poderia ser disponibilizada ao público em geral.
Delicado, por vezes irónico, mas sempre pleno daquela compreensão da humanidade que só quem sofre possui, é uma leitura que vale muito a pena.
"A literatura nasce de uma necessidade quase atómica de ordenar aquilo que surge catastrófico, de reunir num volume a fragmentada experiência humana".
João Tordo é escritor de profissão. Em 2004 publicou o seu primeiro romance, O Livro dos Homens sem Luz e em 2020 lançou este "manual de sobrevivência" onde compila o conhecimento que obteve ao longo de 16 anos de ofício.
Penso que qualquer escritor ou aspirante a escritor se vai interessar por este livro. Li-o em ebook, o que me permitiu ir sublinhando os pontos cruciais, citações e curiosidades. Achei que as referências são muito acessíveis, pelo menos tendo em conta as minhas leituras habituais.
Identifiquei-me em muitos pontos com aquilo que o escritor expõe - por ex., que um escritor que tenha experienciado dificuldades na vida será, à partida, um escritor mais capaz. Algumas observações pareceram-me muito elucidativas daquilo com que eu própria concordo...
"O papel da ficção não é pedagógico, sob o risco de deixar de ser ficção."
Fora isto, o livro está bem estruturado em capítulos que exploram as expetativas dos aspirantes a autores, os ganhos com livros - para que se desenganem se pensam que vão enriquecer a escrever literatura -, as viagens e residências literárias em torno do ofício, a inspiração ou falta dela, os livros melhor e pior conseguidos, etc. Também parece compartilhar da minha crença de que a literatura de grandes ganhos é a literatura de fenómenos, e que os fenómenos extinguem-se mais ou menos depressa e às vezes às custas da reputação do pretenso autor, que ficará assim rotulado como pertencente a um género pouco literário - a uma fórmula. Enfim, tudo depende do tipo de autor que queremos ser. Duas notas negativas: - Discordei do pressuposto mistério sobre o título do romance de J.D. Salinger, The Catcher in the Rye, porque é dos títulos que fazem mais sentido de sempre, perante o enredo. - A palavra "putativo" surge demasiadas vezes, e causou-me sempre um esgar.
Sinopse: O que é um escritor? Como vive? Como cria? Como sente? Partindo das suas memórias do ofício, João Tordo esboça neste livro uma espécie de manual para todos aqueles que se interessam pelo mundo da escrita sejam escritores a dar os primeiros passos ou leitores curiosos.
Misturando humor e pragmatismo, memórias de vida e conselhos úteis, o autor abre as portas da sua actividade e da sua relação com a literatura e a vida a todos aqueles que experimentam a magia da ficção.
Tenho alturas em que me sinto tão, mas tão inspirada, mas não consigo sentar-me a escrever. Outras em que tenho imensa vontade de tornar ao hábito de me sentar e despejar palavras na folha em branco, mas não tenho nada a dizer. É preciso que estas duas vontades coincidam para que me sente e escreva. Também por isto não me assumo como escritora. Sinto-me escritora em 5% do meu tempo desperta. Parece-me pouco... gera poucas obras de significância, mas aqui também acho que cada um tem um número máximo de temas que lhe falam ao peito, ou de projetos que pode executar com sentimento e assertividade.
É preciso que a história me persiga, me assombre, me desperte durante a noite e me arranque lágrimas enquanto executo as tarefas mais banais em casa. Neste momento, tenho vários romances começados, outros que me acompanham durante o dia, que me acenam à distância. Mas não tenho a mínima vontade de me sentar a escrever. Se pudesse despejá-los num gravador, ou trazê-los, por via da telepatia, para outro suporte...
Concordo que a escrita seja trabalho mas, por minha experiência, sentar-me e obrigar-me a escrever raramente traz grandes resultados. Para mim, a árvore tem de estar plena de frutos, carregada e vergada sob eles, e aí, haja o que houver, largo tudo para colhê-los. Antes que me escapem, antes que apodreçam, acampo sob a árvore e colho-os de braços abertos. São ocasiões de júbilo, porque sinto que não precisei de fazer nada para que me caíssem no colo. Chamo a isso inspiração: o momento em que a história se apodera de mim e de todas as minhas horas, e não posso deixá-la para ir tomar banho, para comer ou para dormir. Nessas alturas, consigo tecer 350 páginas em 3 meses. Quando não sinto esse chamamento da fruta madura, da ideia bem delineada, arrasto-me durante meses ou anos com romances que avançam por via do trabalho - lento, desinspirado - mas não da compulsão de contar uma história.
Tenho tentado escrever livros catalizados pela inspiração, tanto o Demência como O Funeral da Nossa Mãe foram impulsionados por momentos de clareza avassaladora: sabia exatamente de onde essas histórias vinham, e para onde iam, e quem estava no centro delas, e que sentimento devia atravessar toda a narrativa.
Será que, perante as últimas oportunidades, conseguirei escrever só para produzir um manuscrito?