#273 CASTRO, Ferreira de, A Missão
Opinião: Há muitos, muitos anos, tentei ler A Selva, deste mesmo autor. Lembro-me que estava a gostar muito do livro mas, entretanto, a curiosidade esmoreceu e abandonei-o. Era da biblioteca e acabei por devolvê-lo.
“A Missão” é uma novela, e nesta edição é seguida de um conto intitulado “Nossa Senhora dos Navegantes”. Ambos são excelentes, e muito intensos apesar de serem relativamente breves. “A Missão” recordou-me a intensidade das novelas de Steinbeck, em particular A Pérola, que adorei. E sai-se melhor do que essa outra (atrevo-me a dizer) no que ao imprimir realismo e intensidade a uma narrativa, em tão curtas páginas, diz respeito.
"Nessa época, as colónias representavam para os missionários o mesmo que as câmaras de experimentação para certos metais: punham à prova a sua resistência. Todos sabiam que o pecado andava lá, quase nu, entre os coqueiros e que entre pecados e virtude havia apenas os dois ou três milímetros de espessura de uma tanga.
”A Missão” é uma novela publicada em 1954, que se debruça sobre um dilema moral e religioso que teria tido lugar durante a invasão da França pelos alemães, no contexto da II Guerra. Conforme a sinopse indica, a grande questão é se estes monges devem salvaguardar-se dos bombardeamentos aéreos pintando a palavra “Missão” no telhado, ou se devem abster-se de fazê-lo posto que isso dirigiria, sem erro, a Luftwaffe para o único outro edifício de interesse naquela povoação: a fábrica de armamento na qual trabalhavam quase 500 almas.
Ferreira de Castro expõe, com esta premissa tão simples, a verdadeira natureza dos homens, e separa a religiosidade da abnegação e até da ética. Mounier e o superior tornam-se personagens maiores e de grande complexidade, um feito notável numa obra tão pequena. Alguns diálogos mantiveram-me pregada às páginas, sobretudo aqueles em que os monges tentavam, à vez, ser detentores da verdade (e da vontade) divina. O contexto histórico da II Guerra Mundial também está muito bem explorado, a geografia, o tempo e o contexto socio-político da França durante o flagelo dessa ocupação está exposto de modo sublime. Sem se alongar – e recorrendo a metáforas que me pareceram muito esclarecedoras e espirituosas (digo-o porque não sou grande fã de metáforas, sobretudo as de Lobo Antunes), - o autor teceu aqui um enredo credível, profundamente humano e envolvente. Terminei-o com a certeza de ter lido algo que, se tivesse saído da pena de um autor de outra nacionalidade – quem sabe, de alguém fora do isolamento do Estado Novo – teria chegado muito, muito longe.
”Ele pensou que talvez dez homens interpretassem melhor o desejo divino do que dois apenas. Mas, por outro lado, todas as grandes revelações que a Igreja apregoava tinham sido feitas, dizia-se, individualmente. Na religião como nas ideias novas fora sempre uma minoria que iluminara os passos da maioria.”
”Nossa Senhora dos Navegantes” é um pequeno conto que lhe segue, também com grande pertinência e desenvoltura narrativa. Um homem senta-se numa ermida agreste, no topo de uma escarpa e vertida sobre o mar, e descobre que não está sozinho. A outra figura presenteia-o com um longo monólogo sobre o que é ser Deus e viver entre os homens desde a criação. Menciona que em todas as vidas, em todas as épocas, foi chacinado, executado, perseguido e silenciado, ou, como nessa mesma, teve de pular um muro para fugir do manicómio. Uma vez mais, tornou-se para mim evidente que Ferreira de Castro separa a religião do mundo interior e espiritual de cada um, porque este Deus – que procura apenas apregoar a verdade, aliviar os homens da sua vileza para com os outros da sua espécie e ajudar os aflitos, despojando estátuas de ouro e entregando-a aos miseráveis – não é aceite pelos humanos.
Grande reflexão. Terminei a leitura absolutamente maravilhada e certa de que Ferreira de Castro foi um dos nossos grandes. Só teve a infelicidade de nascer em Portugal e, por isso, não ter alcançado voos mais altos (apesar de ter algum significado a nível internacional e de até Stefan Zweig o ter elogiado!)… Enfim, não o esqueçamos nós por aqui. Ele pertence-nos e engrandece-nos com a sua obra.
Sinopse: "A Missão Inclui "O Senhor dos Navegantes". França, Segunda Guerra Mundial: o frade Georges Mounier informa o superior da congregação religiosa a que pertence que, ditado por um imperativo de consciência, tomara a iniciativa de suspender a ordem de pintar a palavra Missão no telhado do convento, que permitiria assinalar o edifício pelo ar aos bombardeiros alemães. Porém, tal iniciativa equivaleria igualmente a denunciar o edifício semelhante ao lado, antigo convento de freiras transformado em fábrica que contribuía para o esforço de guerra francês, pondo em risco a vida dos operários e das famílias que viviam nas habitações em torno deste. «As mesmas letras que nos protegerem podem representar uma sentença de morte para os homens que ali trabalham», explica o frade ao superior, desencadeando um aceso debate sobre a decisão mais correcta: a de conservar a neutralidade da Missão ou a de salvando vidas, colocando-se ao serviço de umas das partes do conflito. O desfecho será inesperado. O presente volume inclui ainda a novela O Senhor dos Navegantes, tornando novamente disponível aos leitores portugueses duas grandes obras da literatura nacional.
Classificação: 5/5*****