Sinopse: Gil Vicente, figura insigne do Teatro e das Letras portuguesas, de vida incerta e misteriosa, mas alvo de admiração e honrarias ao longo dos séculos. Menos afamado, talvez, seja seu servo, Anrique de Viena, homem humilde e leal que conheceu em batalha o mundo, e que regressou para o lado de seu senhor, para o acompanhar no inverno de sua vida e o ajudar na escrita da sua última peça. E através da pena de Anrique, ágil e dedicada, veremos o mestre como nunca antes foi visto: completa e profundamente humano.
Irónico, divertido e comovente, Quando Servi Gil Vicente é um exercício extraordinário de estilo e invenção que, prestando homenagem a um dos maiores autores portugueses, nos permite acesso àquilo que, para o bem e para o mal, poderia muito bem ser Gil Vicente no seu tempo e mundo.
Opinião: A vida de Gil Vicente é, acima de tudo, uma incógnita. Trata-se daquelas biografias ou x, ou y, e o autor valeu-se dessa escassez de factos sobre a vida do dramaturgo para ficcionar. Dizia eu, ainda antes de ler este livro, que João Reis é o melhor escritor contemporâneo português no momento (dos que li, como é evidente). Digo-o porque me parece que vai vencer o teste do tempo, os seus livros terão sempre significância, ou pelo menos alguns deles sim.
Nesta pequena (grande) obra de 200 páginas, o leitor é puxado para dentro de um rodopio de acontecimentos, e no fim é cuspido para fora - esta opção pelo fluxo de consciência oferece sempre uma experiência de submersão. Não é facil entrar no ritmo, parece que aterramos na cabeça de alguém, e esse alguém assume que sabemos uma série de coisas que desconhecemos, e a história vai escorrendo, e aquela voz torna-se mais e mais familiar, e de repente entendemos tudo o que diz e como o diz, e é como compreender outra língua.
A Lisboa do século XVI era um sítio insalubre, prenhe de vigaristas, oportunistas, beatos e peneiras. As crianças e cães vagueavam pelas ruas em bandos, igualmente indisciplinados. O rio estava povoado de embarcações que chegavam dos sítios mais exóticos, os Painéis de São Vicente ornamentavam a capela-mor da Sé e a Inquisição estava prestes a chegar para silenciar os atrevidos. A excelência do romance dá-lhe cor, som, cheiro e sabores. Já JRS diz que o objetivo neste seu último livro era que o leitor percepcionasse Auschwitz com os sentidos... Não sei se aqui o autor pretendia que Lisboa ganhasse vida, mas conseguiu-o como só nos bons livros se consegue. Adorei descobrir expressões da época, ou encontrar a Língua Portuguesa mais próxima do ramo a partir do qual se distinguiu da castelhana - perro ainda era um cão, e a profissão de perreiro era espantar os vadios das igrejas. Não é fascinante?
O narrador é Anrique de Viena - e ele há-de explicar-vos porque é assim apelidado -, um mentiroso, aventureiro, pinga-amor, violento, mas acima de tudo dedicado servo de Gil Vicente. O que me tocou acima de tudo, na narrativa, além dessa imersão na Lisboa antiga, foi a noção de como este país já seria um pouco como é agora. Ou seja, o génio de Gil Vicente é menosprezado, embora o próprio, segundo o retrato, pareça ter vistas curtas e sonhos de grandeza. Tal como Camões, outro português viu parte do seu trabalho perdido, e acabou a vida como um renegado, na miséria e no oblívio, enterrado em parte incerta. Gil Vicente era também joalheiro, terá, entre outras peças, talhado a famosa Custódia de Belém - que, no século XIX, o rei D. Fernando II por acaso resgatou a um antiquário. Essa peça-mor da joalharia nacional está exposta no MNAA e é o que de mais palpável nos chegou das mãos do mestre.
Narrado com humor, sensibilidade e um ritmo muito próprio do estilo do autor, Quando Servi Gil Vicente é, acima de tudo, um livro sobre relações humanas, sobre as dificuldades de extrair génio - arte - a homens em situações desfavoráveis, e retrata muito bem os vícios de ser-se português (a fanfarronice, a preguiça, a soberba, a gula, a negação, a implicância por desporto)...
Sinopse: A mulher vagueia no universo repressivo da casa. Poderia ser a mesma onde a avó fora morta pelo avô, ou de onde a mãe saíra, louca, para o hospital psiquiátrico. Ema é o nome de todas elas. Como o da antepassada tomada pelo terror após ter parido uma menina, sem dar ao homem com quem casara um filho varão. É esse espaço de violência que vai alimentando o ódio na paixão que a última das Emas tem pelo marido. Um ódio crescente que a impele, implacável, para a vingança, para o assassínio dele. Uma morte desfrutada, dir-se-ia gozada, por um olhar onde, apesar de tudo, a paixão perdura...
Opinião:
"Naquela noite, quando ele acabou, ela soube, teve a certeza que ficara grávida. Sentou-se na borda da cama alta e vomitou para o bacio que mal teve tempo de puxar para si."
Ema é a minha estreia com Maria Teresa Horta (N. 1937), e é um aquecimento antes de me atrever a ler As Luzes de Leonor. Trata-se de uma novela (apesar de ser listado como romance, mas tem apenas 134 páginas e pouquíssimas personagens) publicada em 1985, e a temática é-me muito familiar: a mulher maltratada, abusada, violentada, magoada e de rastos às mãos do marido, e com a conivência da família.
Trata-te de um livro ao qual atribuo os adjetivos cru e visceral, e identifico alguns motivos pelos quais não mexeu mais comigo, tratando-se de uma das minhas bandeiras de vida (a denúncia da violência contra as mulheres).
Em primeiro lugar, trata-se de uma história muito curta, torna-se difícil afeiçoarmo-nos realmente às personagens (três Emas: avó, filha e neta, todas infelizes no casamento), mesmo porque a história é contada em avanços e arrecuas, com algumas repetições, alguma confusão (não há tell, trata-se sobretudo de show, coisa que aprecio bastante mas que levanta muitas dúvidas). Por outro lado, é muito interessante o modo como a autora distinguiu as vozes e o tempo das três Emas (a maçaneta de loiça que depois é metálica, o cabelo loiro e os bandós, o fato casaco-calça da neta, o cabelo curto e ruivo, os objetos oferecidos a uma Ema que depois se tornam relíquias para as outras Emas), e também o modo como a infelicidade de uma parece a infelicidade de todas, entrelaçadas numa mesma desdita conjugal que atravessa o tempo e as gerações.
Outra coisa que me impediu de me entregar mais ao romance é o facto de que, em 1985, esta obra poder constituir um tratado feminista, uma denúncia social, uma obra essencial que deu voz às mulheres. Em 2020 trata-se de um romance ainda atual (infelizmente), mas em torno de um tema muito discutido e explorado nesta época. Não deixa de ser trágico que assim seja, que ainda hoje seja pertinente falar-se de violência doméstica, de abusos psicológicos e de patriarcado... Mas a verdade é que, posto isto, o romance não me trouxe nenhuma novidade, nem chegou a comover-me embora esteja magistralmente escrito.
Opinião: As Pupilas do Senhor Reitor é, talvez, o livro mais famoso e mais readaptado do escritor portuense Júlio Dinis. Publicado em folhetins em 1866, esta história passada numa aldeia portuguesa inominada foi ilustrada pelo artista Roque Gameiro em 1904 e 1905. Segundo Roque Gameiro, que percorreu o norte do país para procurar a paisagem adequada ao enredo, a ação teria lugar em Santo Tirso. Deixo algumas das esmeradas ilustrações de Gameiro, que sem dúvida me ajudaram a visualizar este romance soberbo.
Tratando-se do terceiro livro de Júlio Dinis que leio este ano, começo a sentir algum cansaço face a um certo estilo de narrativa e a certo conteúdo temático (uma espécie de puerilidade que percorre todo o enredo). No entanto, se a primeira metade do livro considerei algo enfadonha, a segunda recordou-me do porquê de apreciar tanto as tramas do autor.
Este romance conta a história de duas meias-irmãs, Margarida e Clara. Quando ficam órfãs, o reitor da aldeia toma-as sob sua proteção. Ainda que financeiramente independentes, são as meninas dos olhos do reitor, e com ele realizam projetos de caridade, ensinam crianças a ler, levam conforto aos moribundos e etc. Gozam, portanto, da alta estima do povo da aldeia, malgrado sejam as duas muito diferentes.
Clara é alegre, espontânea e imprudente. O seu coração leve impede-a de se proteger de possíveis maldades alheias, e acaba metida numa grande confusão quando, já noiva, acaba por se colocar em situações comprometedoras com outro rapaz da aldeia. Quanto a Margarida, sinto ter já experienciado este espírito feminino noutras obras do autor. Tanto Jenny, de Uma Família Inglesa, como Berta, de Os Fidalgos da Casa Mourisca apresentam as mesmas qualidades. Próxima da canonização, Margarida é abnegada, perdoa facilmente e vive uma vida de recato. Pratica caridade, é adorada por crianças, velhos e moribundos, e é uma espécie de santa da aldeia, sendo inclusivamente assim apelidada por outras personagens em vários trechos. Esta santa, que se sacrifica para limpar a honra da irmã estouvada, é um tipo de mulher que Júlio Dinis parecia muito admirar, e que me suscita algumas reflexões. Primeiro, antevejo um laivo de romantismo nesta figura idealizada: ninguém é tão perfeito, tão doce, tão ponderado, tão apto a deixar-se sofrer e prejudicar, como as Jennys, as Bertas e as Margaridas desta literatura. Por outro lado, agrada-me a ideia, também exposta noutros romances do autor, de que os nossos protagonistas – por muito que amadureçam, por muito que se regenerem, nunca chegam realmente a “merecer” este tipo de mulher. E de facto há uma aura de etéreo em torno destas jovens, penso que talvez por Júlio Dinis ter perdido a mãe muito cedo, e por isso as mulheres terem sido para ele, quem sabe, uma entidade mística de superioridade moral, a salvo da inconstância masculina.
Gosto sobretudo do retrato de Portugal que, apesar de sitiado nos anos 60 do século XIX, me parece ainda muito recente. Nesta aldeia as mulheres e crianças passam necessidades enquanto os maridos desperdiçam a pouca renda na taberna. O padre é uma entidade espiritual, mas também moral, e há sempre quem o siga de olhos vendados: é ele quem manda os homens para casa, entregarem os parcos soldos à prole. Como as aparições de Lourdes tinham tido lugar em 1858, causando com certeza grande impressão na sociedade portuguesa, havia mulheres que buscavam essa santidade pelo caminho da sacristia e da beatice. Aqui o autor deixa uma mensagem clara: a bondade, a santidade, são coisas distintas da devoção religiosa, o que me sugere que observava com ceticismo os costumes da época.
O que não apreciei neste livro foi, uma vez mais, a volatilidade dos sentimentos da personagem principal masculina, a leviandade com que professam o amor. Em Uma Família Inglesa, Charles é um estouvado até conhecer a jovem mascarada, e a partir daí redime-se sem mais. Em Os Fidalgos da Casa Mourisca é Maurício, uma personagem secundária, quem morre de amores pela nossa protagonista, e de repente esquece-a sem hesitar. Por fim, neste romance, é Daniel quem, depois de escrever versos a outras raparigas da aldeia, e de cercar Clara por não conseguir esquecer-lhe os modos alegres e os olhos negros, descobre que afinal o seu coração pertence a Margarida, à Margarida a quem nunca dedicou uma palavra em três quartos do livro. Resumindo: fiquei emocionada quando ele lhe retribuiu o seu amor de juventude, foi por isso que terminei o livro de um ápice. Porém, não pude deixar de concordar quando ela própria declara que em breve a afeição dele esvoaça para outra moça, os sentimentos deste médico da cidade não são de fiar, e isso desgosta-me neste tipo de romance, porque recai mais no romantismo de décadas anteriores do que no realismo que o autor se propôs a adentrar. O amor tudo redime, e o casamento é final feliz garantido.
De qualquer modo, recomendo vivamente, mesmo pelas gargalhadas que certas cenas me provocaram. Romance incontornável na literatura lusófona.
Deixo link para as ilustrações completas de Roque Gameiro numa edição antiga do romance, bem como estudos para as mesmas. Lindíssimo!
Classificação: 4****/*
Sinopse: Romance de Júlio Dinis publicado, em 1866, sob o formato de folhetins no Jornal do Porto, e em volume no ano seguinte. Segundo o próprio autor, numa referência das «Notas», a obra teria principiado a ser escrita em 1863, durante a permanência de Júlio Dinis em Ovar. O título refere-se às personagens femininas do romance, duas meias-irmãs órfãs, Margarida e Clara, de personalidades opostas, adotadas pelo Reitor. A intriga centra-se, contudo, em Daniel, segundo filho do lavrador José das Dornas. Depois de, em rapazinho, ter renunciado à carreira eclesiástica por amor a Margarida, Daniel regressa à aldeia, já médico e completamente esquecido do seu idílio de infância. Para além do Reitor, a obra apresenta uma interessante galeria de tipos rústicos, onde se destacam as figuras de José das Dornas, João Semana, o bondoso médico rural, João da Esquina, o dono da loja, e a sua esposa interesseira, a ti'Zefa, a beata linguaruda, entre outras. Em suma, As Pupilas do Senhor Reitor traduz a vida rural portuguesa da época.