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Castelos de Letras

Em torno das minhas leituras!

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Em torno das minhas leituras!

Vida de Escritor

O dinheiro, os prémios, as ideologias

Nunca gostei que me apelidassem de "escritora". Para mim, "escritor" é aquele que vive da escrita, e estou muito longe disso. Não é nada fácil viver-se da escrita como profissião, e o problema é que, na minha ótica, quanto mais a escrita é profissão, menos o escritor o é em essência. Isto porque, para mim, escrever é algo que acontece a pessoas que têm algo para dizer. Escrever é um acidente na vida dos filósofos, na vida dos grandes pensadores, na vida de qualquer homem ou mulher que se interesse pelo que acontece no mundo ao seu redor. Escrever é um reflexo da mente. Escrever com o objetivo de fazer disso ganha-pão retira a imparcialidade que uma mente necessita para gerar ideias, pensamento. Viver de escrever soa-me a trabalho, a obrigação. Escrever para vender é-me incompreensível, eu já tentei (há fórmulas infalíveis), mas não consigo... Não consigo produzir um 365 Dias, porque a escrita vem de meditação, de recantos profundos, e não consigo produzir com o lucro em mente. Pior para mim.

Este ano, estando desempregada, tenho tempo. Com o tempo, montei um calendário de eventos literários que possam interessar-me, e, mais importante, de prémios literários a que vou tentar concorrer com obras já terminadas. Porque amo a literatura e quero ver o meu trabalho destacado com uma dessas menções? Não, falso. Eu amo a literatura e por isso leio, os prémios literários pouco têm a ver com literatura. O motivo é outro: é porque preciso de dinheiro. Soa trágico, soa fraudulento, soa mercenário. Fui ler sobre o assunto, e descobri que não estou sozinha neste intento.

Germano Almeida, neste artigo, reflete sobre a importância dos prémios literários para os escritores, e sobre casos específicos como o de Camilo José Cela, reconhecido primeiro com o Nobel, e só mais tarde com o prémio máximo de literatura no seu país. Que dizer de Saramago, persona non grata em Portugal, um imaginário prolífero para a academia sueca? Que valem estes prémios todos, afinal? São sinónimo de boa literatura? De esforço contínuo? De carreira? De destaque entre os pares? Ou apenas um palco para gerar receitas, destacando-se um autor anual? Dar voz a um cidadão de uma qualquer nação? Mas, para se usar da voz, convém ter ideias. São poucos os escritores neste país - sobretudo das "novas gerações" que defendam grandes ideais. Paz, amor e a natureza não são bem ideais... São mais a luta da hora, politicamente correta. Quantos escritores atuais abrem a boca para falar de política? De sociedade? Li "Em Teu Ventre" do José Luís Peixoto, apenas em busca de um ideal. O autor acredita ou não acredita que as crianças tenham visto a Nossa Senhora? Dispõe-se à discussão, ao debate? Não. O livro agrada a gregos e troianos, está ali para todos. Fui ver algumas entrevistas, a ver se o ideal passava, mas o "extraordinário escritor" não se descoseu em momento algum. Diz que "o livro trata das aparições", que "são aquilo que nunca surge no livro". Saramago teria feito algo grandioso disto - e de repente lamento imenso que tenha partido sem o fazer!

O próprio autor admite que a questão da fé não tem lugar no livro - limitou-se a explorar os aspetos históricos. Com um tema tão poderoso, tão interessante, porquê fugir disso para relatar o dia a dia de três pastores num ermo do interior sem ir mais além?

Este ano hei de participar em tudo o que é prémio literário. Se, por um lado, como também destaca o autor cabo-verdeano no mesmo artigo, adoraria receber algum reconhecimento pelo trabalho que tenho vindo a desenvolver, por outro o dinheiro dava mesmo jeito. Mais jeito ainda daria o destaque: quem sabe as portas se abrissem, me visse por fim convidada para os encontros literários e festivais da mesma estirpe, para os quais nunca existi. Mas e o amargo de boca? Isto é: de vez em quando, leio um ou outro autor premiado, e fico sempre desiludida. A sensação de: é isto o melhor que foi a concurso? E depois surgem sempre várias dúvidas. A maior delas prende-se com o facto de vivermos no Sul da Europa, onde a corrupção é endémica e o nepotismo é de bom tom. Perguntamo-nos porque são sempre os mesmos a receber as mesmas graças, os mesmos convites e destaques. Tudo bem que o país é pequeno, mas porquê um leque tão curto de destacados? Destacados esses que depois vão, nos ditos festivais literários, apertar a mão aos presentes e futuros juris de dos tais prémios literários... Tantos livros medíocres são produzidos nestes nichos, sem alma, sem ideal, sem perdurarem no tempo...

Tive tantas desilusões com prémios literários... Se, nos grandes portugueses de antigamente, as obras destacadas se evidenciavam pela complexidade de discurso, a exaustão das descrições, a narrativa entaramelada, a controvérsia política, os novos destacados são tão nus, tão simples, que dói. Fica sempre a dúvida: escrevo pior do que isto, ou sou apenas pior relacionada? Falta-me o tal prémio que me eleva ao estatuto de igual aos outros? Quereria eu pertencer a um consórcio de escritores? Não, eu nem me sinto escritora. A escrita sai-me nos tempos livres, quando a mente está desanuviada dos problemas do dia-a-dia. 

E porque gostaria eu de receber um prémio? O dinheiro, sem dúvida. E depois? Mais dinheiro. Ou, também interessante, o sentar-me lado a lado com os "pares", aqueles que tento ler sem conseguir, aqueles cuja sorte procuro interpretar. Porque chegaram eles ali e eu, que desprezo a estrada, não consigo sentar-me na mesma cadeira? E quereria eu sentar-me nessa cadeira, dar por mim a escrever para publicar, para ganhar mais dinheiro, para que não me esqueçam? Sem nada a dizer, sobretudo sem me atrever a ofender?

Sim, não? Porquê? Sei lá. Acho que é porque não sei fazer mais nada.

#257 DINIS, Júlio, Uma Família Inglesa

Opinião: Que achado delicioso!

Nunca me tinha inclinado para Júlio Dinis (Joaquim Guilherme Gomes Coelho - 1839-1871) nem para as suas obras mais sonantes (A Morgadinha dos Canaviais ou As Pupilas do Senhor Reitor, entre outros). Comprei o livro numa loja em de artigos em segunda mão, custou-me um euro e achei graça à edição, no acordo ortográfico em vigor nos anos 70.
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O autor é conterrâneo de Eça de Queiróz e de Camilo Castelo Branco, e creio que faz uma ponte entre os estilos praticados por um e outro. Camilo vivia o amor lado a lado com a tragédia, não há finais felizes para os seus mais famosos amantes. Eça via o mundo com um realismo irónico (uma espécie de rir para não chorar), e expunha os defeitos da sociedade hipócrita do século XIX. O jovem Júlio, sendo médico e de ascendência inglesa, era versado em literatura saxónica, menciona grandes nomes como Byron e Sterne, ou ainda Walter Scott, e estava familiarizado com o modo de ser inglês e português (portuense, em específico). Teceu assim uma obra de 424 páginas que expõe os preconceitos entre classes (e nações), na sociedade moderna, progressista mas ainda assim com um quê de tacanhez do Porto nos anos 60 do século XIX.

As personagens centrais são a família Whitestone, a família Quintino, mas também as más linguas da cidade, que acabam por pesar no enredo e transtornar os seus protagonistas. Há muita perspicácia na narrativa do autor, que recria de modo realista as atrações da Invicta, o quotidiano desta e doutras personagens da cidade, e que parece encontrar regeneração na natureza, pois que os passeios pelos arrabaldes da cidade, dominados pela paisagem ao redor, transportam a personagem central para o mundo interior das reflexões e da auto-descoberta, enquanto a vida boémia da cidade - o teatro, o jogo, os charutos, as mulheres de má fama, os clubes, casas de pasto, etc. - propiciam convivências superficiais e por vezes até prejudiciais à tomada de um rumo na vida.

O autor foi minucioso no retrato da sociedade portuense com toda a sua vivacidade, bem como da mentalidade que assistia os vários extratos sociais que a compunham. Gostei tanto que creio que, muito em breve, vou voltar a lê-lo. Que orgulho por encontrar um autor que sublima assim a nação portuguesa! Que retrato fascinante do Porto e da sua gente...

E o amor? Pueril, mas intenso. Que aconchego de alma, este livro...

Sinopse: Em plena segunda metade do séc. XIX, Júlio Dinis apresenta-nos uma família que habita a ribeirinha cidade do Porto, os Whitestone. Mr. Richard é o chefe de família, um homem que simboliza fielmente a austeridade britânica. Homem de hábitos e já viúvo, é dono de uma casa comercial na Rua dos Ingleses, centro nevrálgico do comércio na cidade. Carlos é o filho mais velho.

Um jovem boémio, frequentador assíduo de cafés e de teatros, está completamente desligado dos negócios da família. Jenny é a filha mais nova. Desde a morte da mãe que ocupa o seu lugar no que toca a tudo que está relacionado com o universo doméstico. É ainda uma grande confidente do irmão e uma mediadora entre este e o pai de ambos. Todo o enredo se precipita quando, num baile de Carnaval, Carlos conhece uma misteriosa mascarada que, mais tarde, se vem a revelar ser Cecília, a filha de Manuel Quintino, guarda-livros na casa comercial dos Whitestone.

Uma Família Inglesa

Uma-Família-Inglesa.jpgCom os preparativos das férias, as insónias (que me mantém sonolenta o dia todo), e os dias como ama do bebé mais delicioso do mundo, ainda não consegui terminar Uma Família Inglesa, de Júlio Dinis. Está a ser um livro maravilhoso, uma surpresa que me deixa feliz por finalmente conseguir extrair toda esta admiração e prazer de um livro nosso!

O livro segue comigo para férias, mas gostaria de deixar dois excertos de que gostei particularmente, e que exprimem um sentimento português muito verdadeiro até há pouco tempo.

Se ousamos falar de Camões, ao mesmo tempo que de Tasso, de Dante e de Milton; se ousamos apregoar o vinho do Porto, junto com o de Xerez, Château-Lafite e Tokay, é porque lhe deram lá fora o diploma de fidalguia; que por nós... continuaríamos calados."

No período da Regeneração, em que o jovem Júlio Dinis teceu esta belíssima obra - tanto em prosa, quanto em reflexões e asserções a propósito do modo de ser português e do modo de se ser inglês no seio dessa sociedade - Portugal começava a procurar alguma valorização, algum sentido de si. Havia obras públicas, tertúlias, nasciam e criavam-se gerações de excelentes pensadores, escritores, cientistas sociais. Júlio Dinis é conterrâneo de Alexandre Herculano, Eça de Queiróz, Camilo Castelo Branco. As mudanças políticas e sociais levam também a uma revolução na literatura. O jovem médico do Porto repudiou o romantismo (levado ao extremo por Camilo Castelo Branco) e introduziu-se no realismo (com laivos de naturalismo). Também me parece inovador, na sua obra, a forma como o ambiente (por exemplo, o tom violeta do quarto da jovem Jenny Whitestone) exprime a essência da pessoa que o habita e que por ele circula. Ou seja, o quarto de Jenny é simples e confortável (ali "nada mente", não há latão a fazer-se passar por metal precioso, nem vidro por pedras de maior valor, nem madeira que finja ser mármore). O escritório onde o Sr. Whitestone se dirige para saber novas dos seus negócios, por sua vez, é húmido, acanhado e soturno, o que é um ambiente claramente contrário àquele que agradaria a um jovem vivaço como Carlos Whitestone, protagonista da narrativa.

A causa disto é sermos nós uma nação pequena e pouco à moda, acanhada e bisonha nesta grande e luzidia sociedade europeia, onde por obséquio somos admitidos, dando-nos já por muito lisonjeados, quando os estrangeiros se deixam, benevolamente, admirar por nós."

Júlio Diniz, de ascendência também inglesa, dispõe do ângulo perfeito para analisar os costumes dos portuenses, e também dos ingleses desta sua família de burgueses de posses; os Whitestone. O autor tem toda a legitimidade para admitir aquilo que os portugueses nem a si próprios confessam: que só reconhecemos o que temos de bom no nosso país quando os estrangeiros lhe conferem um selo de qualidade. Até no Turismo isso é verdade - por outro lado, foi o Turismo que, nos últimos anos, permitiu que Portugal parasse, por fim, de se comparar a outras nações. Volvido século e meio da publicação de Uma Família Inglesa (1868), o boom do setor turístico em Portugal levou a que compreendêssemos, por fim, o valor dos nossos pastéis de nata, do nosso vinho, das nossas sardinhas, dos nossos enlatados, da nossa cortiça, das nossas paisagens, do nosso Alentejo, do nosso Porto (era uma ruína em 2011, quando comecei a trabalhar em turismo)!

E tudo porque os estrangeiros vieram para cá, escreveram artigos em revistas internacionais e disseram que isto é espetacular, é original, é o último reduto da autenticidade na Europa, onde há uma Itália já sobreexplorada pelo turismo, gentrificada (em Roma mal se vêem italianos), uma Paris pouco amiga de estrangeiros (por terem sido o destino mundial #1 durante anos, um Algarve inflaccionado e pejado de bares e de hotéis à beira mar. O revés da moeda é que nem todos os portugueses entenderam que os estrangeiros vêm para cá por causa das nossas diferenças, não para buscar semelhanças. Começaram a surgir restaurantes internacionais em casa esquina de Lisboa (daqueles com fotografias e explicação dos pratos) - além do bacalhau (muito bem, embora inflaccionado até às lágrimas no centro de Lisboa) - há tapas, restaurantes italianos, gelatarias, e até os fingidos pastéis "tradicionais" de bacalhau e queijo da Serra (só quem nunca comeu uns pastelinhos de bacalhau feitos à colher pela avó é que acha aquilo "tradicional"). E que dizer da loja do carroussel? A das latas de sardinhas a mais de 7,00€ cada, só por causa do ar afrancesado do sítio e da data impressa nas latas?

Enfim, o turismo há-de voltar. Mas espero que não volte o de massas. O que destruiu as baixas, o que empurrou os portugueses para fora dos bairros tradicionais, o que fez disparar o valor das casas e que atirou muitos portugueses para o limiar da pobreza (enquanto outros, os investidores, alguns deles até políticos *cof**Robles*cof* lucraram com o mercado imobiliário fechando os olhos a todos os danos colaterais).

A ver se voltamos a dar valor ao que é nosso. Sem deixarmos de ser nós.