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Castelos de Letras

Em torno das minhas leituras!

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Em torno das minhas leituras!

#253 TOLSTÓI, Lev, Guerra e Paz (Vol. II)

Opinião: Maravilhoso! Ainda melhor que o primeiro volume.

"Se o homem pudesse achar um estado em que, sendo ocioso, se sentisse útil e ciente do dever cumprido, acharia uma das facetas da felicidade primitiva."

Neste segundo volume, estamos familiarizados com a miríade de personagens, já lhes conhecemos o passado e começamos a preocupar-nos com o seu futuro. Muita coisa aconteceu ao longo dos quase sete anos (1805-1812) que o livro cobre. Os soldados russos regressam de Austerlitz para a vida em sociedade, sendo que a sua prestação no exército (e na Batalha em específico) se reflete no seu estatuto social. A humanidade de cada personalidade adensa-se. Pierre, sem qualquer ligação aos palcos de guerra, foca-se na aprendizagem e na melhoria do seu carácter, bem como numa série de questões espirituais, Andrei sofre uma reviravolta na sua vida que leva a que se isole e caia em melancolia, e depois, quando o seu destino se cruza com o de outra personagem que nos é cara, vai redescobrir o prazer de estar vivo. Nikolai Rostov, também regressado a casa de Austerlitz, é agora visto como um homem pela família, mas ainda conserva alguns trejeitos da juventude. Descobrimos nele um idealista romântico, e nem a situação de ruína eminente da família o leva a agir contra os seus princípios.


Em geral, trata-se de um segundo volume passado num período de paz, em que Napoleão forja uma aliança com o Império Russo, conseguindo assim um hiato no conflito armado. A Rússia respira de alívio, decide "manter-se fora dos conflitos Europeus", mas, em simultâneo, nasce nos russos um sentimento de si próprios. Por muito que a cultura francesa continue a ser admirada nas esferas aristocráticas, surgem indícios do que é a verdadeira essência deste povo. Há uma cena em que Natacha (uma menina criada na sociedade moscovita, que usa vestidos à la mode, penteados à grega, que fala francês e vibra com a valsa austríaca), usa um lenço tradicional russo estendido por uma criada, e dança animadamente ao ritmo da balalaica que um trabalhador rural dedilha. Essa demonstração do modo de ser russo - tão natural, tão instintiva em Natacha -, por parte de uma jovem que foi criada para os maneirismos "europeus", espanta e delicia um tio que vive à margem da sociedade, e portanto distanciado desse europeísmo que vinga na aristocracia imperial.
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Neste volume, começam as emoções fortes. Desiludimo-nos fortemente com algumas personagens, deixamo-nos enternecer por outras. Acompanhamos um pouco do quotidiano, das vivências daquele povo tão à margem do resto do mundo, das suas dinâmicas sociais, ideologias e excessos, bem como da sua espiritualidade e ocasional abnegação. Neste momento a narrativa subdivide-se em vários núcleos, e todos me surgem interessantes e promissores, daí que me seja tão difícil parar de ler. Ontem, por volta da meia-noite, faltavam 90 páginas para encerrar o volume. Disse a mim mesma que terminava hoje, mas que ia "ler só mais um capítulo". Quando dei por mim, tinha avançado 30 páginas, só faltavam 60, ainda assim muitas, por isso terminava hoje. Sentei-me na cama, decidida a ir beber um último copo de água antes de dormir, e quando o fiz, com o livro no colo, iniciei a leitura de um novo capítulo e despachei mais 30 páginas. Fui beber o copo de água, voltei para a cama e olhei para o livro. Que importam as horas? Só faltavam 30 páginas, podia bem lê-las assim que abrisse os olhos, mas...

Aqui está um livro que não quero que acabe, mas cuja conclusão desejo alcançar o quanto antes. Pergunto-me porque nunca lhe tinha dedicado um pensamento sério, porque me mantive desinteressada dele até agora? Possivelmente porque julguei que não teria nada em comum com os russos, que não encontraria identificação com os seus dilemas. No entanto, a humanidade dos russos é tal e qual a nossa. Os dilemas são os mesmos transversais a cada indivíduo, a cada povo. Será que Deus existe? Será este o caminho da felicidade? Se viver apenas sem causar mal, viverei bem e serei absolvido? Terei coragem para deixar ir a pessoa que mais amo, e enfrentar a solidão após a sua partida? Um ano de afastamento será a eternidade para dois apaixonados? Devemos sacrificar os sentimentos ao bem-estar financeiro, à posição social e ao prestígio das nossas relações?

Parto para o terceiro livro com renovado entusiasmo, a torcer por estas pessoas e a desejar que cumpram os seus desejos e sejam bem-sucedidos nas suas lutas. Sempre consciente de que Napoleão irá violar a aliança a qualquer instante e marchar Rússia adentro, para destruir tudo o que sempre foi familiar a estas personagens. A Batalha de Borodino aproxima-se, e com ela há-de abrir-se uma ferida sem precedentes no orgulho russo. Aquilo que foi o maior fiasco de Napoleão, que levou à retirada mais catastrófica de um exército na história militar, e que custou a vida a 375 mil pessoas, no seu balanço final, será o absoluto desastre para os Rostov, os Bolkônski e os Bezukhov? Estas famílias atravessam-se entre Napoleão e o seu objectivo, e prevejo um final épico para os seus destinos.

Ah, these Russians!

Classificação: 5*/5*****

#252, TOLSTÓI, Lev, Guerra e Paz (Vol. I)

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Opinião: Li o primeiro de quatro volumes do incontornável, assustador, megalómano, “Guerra e Paz” (1865-1869) em oito dias. Até a mim me surpreendi.

Em primeiro lugar, devo dizer que tinha um chavão ao qual recorria em diversas ocasiões na minha vida. Quando me diziam “Não leste o livro de instruções?”, referente a produto tal, eu replicava “Se tivesse tempo, lia o Guerra e Paz”. O meu interesse por esta obra nunca foi grande – tinha-o na lista dos livros que queria muito ler mas não pelo enredo em si, nem sabia se algum dia haveria de lhe pegar. Queria lê-lo por ser um daqueles livros que devemos ler antes de morrer, só para saber o porquê de tanto burburinho ao seu redor. O desejo de vencê-lo intensificou-se o ano passado, quando comecei a dedicar-me à literatura russa. Já tinha lido A Sonata de Kreutzer, que me pareceu um tanto difícil de digerir – são os nomes, a história, os diminutivos, os lugares, o modo de estar, o afrancesamento da aristocracia russa, tudo tão difícil e exótico para quem neles se inicia (por vezes até artificial, o que creio que, em Tolstoi, funciona como crítica social). Depois li Turguenev, Fumo, e pensei “embora não me fascinem, estes russos até não são tão inacessíveis quanto isso”. De Turguenev saltei para Dostoievski, porque tanta gente me afirmou, desde sempre, que Crime e Castigo é o seu romance favorito de sempre. E li-o: um desafio, sem dúvida, mas também um sem fim de emoções, desde a angústia ao riso. Regressada a Tolstoi, leio A Morte de Ivan Iliitch, que se transformou automaticamente numa das minhas novelas favroitas, e de uma simplicidade desconcertante. Atiro-me então aos Os Irmãos Karamázov, uma obra que receava ler por vários motivos: sendo o tamanho e o facto de se tratar de uma história de homens num mundo de homens alguns dos principais. Apaixonei-me por aqueles irmãos, dificilmente esquecerei o Dmitri, o Ivan e o Aliocha. Estou convencida que é outro dos livros que me vai ficar par a vida.

Tendo viajado por todas estas obras, e vendo-me em casa devido ao confinamento, comecei a estudar russo básico, o que me esclareceu mais alguns pontos sobre a cultura russa. Aportei num documentário do Youtube em oito episódios, sobre os 300 anos da Dinastia Romanov, e agora entendo que a contextualização dos reinados de Catarina, A Grande (ep. 5) e de Pavel I (ep. 6), bem como de Aleksandr I (ep. 7) me ajudaram a compreender a situação das várias camadas sociais na Rússia Imperial, bem como um pouco das suas relações com o estrangeiro.

Voltando a Guerra e Paz, Volume I, e a importância de o ter lido em 8 dias… É que este primeiro volume introduz uma miríade de personagens, lugares, ligações, interesses e estratégia militar. Também contextualiza o momento histórico, as alianças militares e algumas batalhas históricas como Austerlitz, em que o próprio Napoleão conduziu as suas tropas contra a aliança russo-austríaca. Por tudo isto, creio que será, dos quatro volumes que compõem este colosso, o mais desafiante. Quase na viragem das 200 páginas, estive prestes a desistir. De repente saía dos salões de S. Petersburgo, onde tudo era etiqueta, e da nobreza despreocupada de Moscovo, para a tomada de uma ponte algures numa Europa que sofreu inúmeras alterações geográficas desde esse distante ano de 1805. Estava no meio de ajudantes-de-campo, generais, hussardos e cossacos, com os seus sabres, baionetas, espadas e penachos. Perguntei-me se seria capaz. Mas o obstáculo não durou mais de dois capítulos, e de repente a guerra já me acelerava o pulso; começava a conhecer as personagens que vou acompanhar ao longo destas cerca de 1200 páginas em situações de vida ou morte, e a deslindar os corajosos dos cobardes, os valorosos dos mesquinhos. Comecei a preocupar-me com os seus destinos, a desejar que a Rússia triunfasse sobre o inimigo imbatível, e, terminado este primeiro volume, lancei-me ao segundo, ansiosa por acompanhar estas personagens no rescaldo dessa batalha sangrenta.

Diria que as personagens principais são as seguintes: Nikolai Rostov, Andrei Bolkônski, Pierre (Conde Bezukhov) e Natacha Rostova. Parece-me que a acção irá sempre decorrer em torno dos destinos destas personagens, auxiliadas por dezenas – se não centenas – de personagens secundárias (li algures que o romance conta com 550 personagens), o que torna esta obra tão rica e tão complexa. Muitas dessas personagens e dos eventos aqui descritos são históricos: os generais, como Kutúzov e Napoleão, o Imperador Aleksandr I que faz as suas aparições em batalha, e recepções como a organizada em honra do príncipe Bragation, felicitando-o pelo seu brio militar em Moscovo, existiram de facto.

Fiz um esquema das personagens na primeira página do primeiro volume, coisa que me ajudou a reconhecer quem é quem, quem se dá com quem e, principalmente, a associar os nomes, diminutivos, famílias e títulos a cada personagem. Foi assim que entendi que Hélène é Elena, e também Liólia. Anna também é Annette, Piotr também é Pétia, e Petrushka, Mária também é Marie, e Macha, Vassili também é Vássia, e Vasska, e por aí fora. Conforme a personagem que toma a palavra, refere-se ao outro de um modo ou de outro. É de pôr a cabeça a andar à roda, mas sinto que toda essa confusão está arrumada no segundo volume. A partir daqui já sabemos distinguir as inúmeras personagens (desisti de acompanhar os cargos militares). Importamo-nos realmente com eles, apesar de tantos e de tão distintos, cada um com a sua responsabilidade no combate a Bonaparte e, em breve, na defesa da mãe Rússia. Esta tradução é muito boa, e sigo sempre as várias notas que ajudam a esclarecer o contexto dos diálogos e da narrativa.

Há trechos de enorme beleza narrativa ao longo deste primeiro volume, em que as personagens são pela primeira vez confrontadas pela brutalidade da guerra.

"Apesar de ainda não ter passado muito tempo desde que o príncipe Andrei deixara a Rússia, já mudara bastante. Na expressão do seu rosto, nos movimentos e no andar já não se lhe notava o antigo fingimento, o cansaço e a preguiça: o ar dele agora era o de uma pessoa que não tem tempo para pensar na impressão que pode causar aos outros () O seu rost exprimia mais concórdia () o sorriso e o olhar eram mais alegres ()"

Não consigo parar de ler, sou apenas vencida pelo cansaço, pela falta de posição e pela necessidade de repouso da vista. Por isso sinto que, se ler o segundo livro ao ritmo do primeiro (coisa que desconfio que hei de ler muito mais rápido, porque estou muito motivada), em duas semanas terei lido metade de Guerra e Paz. Em um mês terei lido o livro completo. E cumpre-se, assim, um sonho que cheguei a arrumar para o lado, por julgar impossível.

Sinopse: Lev Tolstói foi e continua a ser um dos nomes maiores da literatura, e as suas ideologias, a par dos seus escrito, influenciaram sobremaneira o panorama social, político, religioso e literário do século XIX, e daí em diante.
Escritor, filósofo, pedagogo e até profeta, o escritor russo foi um defensor acérrimo das minorias e dos mais desfavorecidos, e um dos primeiros a insurgir-se contra a escravatura. Com um percurso de vida tumultuoso, e apesar das muitas perseguições a que foi sujeito, Tolstói encontrou na escrita um refúgio e é de forma sábia que abordou temas tão inquietantes quanto complexos. Embora não haja uma data precisa, sabe-se que foi entre 1865 e 1869 escreveu e publicou aquela que é talvez a sua obra-prima e uma das maiores criações literárias de sempre: Guerra e Paz. Tendo como pano de fundo um cenário de guerra, com a invasão da Rússia por parte das tropas Napoleónicas, esta novela épica apoia-se em episódios ficcionais e históricos sobre aquele país, num momento de profunda convulsão, e surge como uma reflexão sobre a vida humana e a sua frágil existência. Nesta obra grandiosa, as personagens amam, odeiam e lutam, mas acima de tudo anseiam por encontrar o sentido da vida. Tal como elas, também Tolstói se confrontou inúmeras vezes com a sua própria condição enquanto ser humano, refugiando-se a dado momento numa fé e religiosidade profundamente vincadas. Tolstói deixou-nos um valiosíssimo legado literário e o seu nome perfila ao lado de outros grandes vultos como Shakespeare ou Homero.

A presente obra – publicada em quatro volumes – inicia uma nova colecção, intitulada Obras-Primas da Literatura e foi traduzida directamente do russo por Nina Guerra e Filipe Guerra que, pela excepcional qualidade do seu trabalho, venceram o Grande Prémio de Tradução Literária APT/Pen Clube Português.

Classificação: 5*****/5

#251 MAUGHAM, W. Somerset, As Paixões de Júlia

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Opinião: W. Somerset Maugham é o meu autor favorito. Também é possível que já o tenha dito de Steinbeck, e é igualmente verdade. São dois autores com várias obras publicadas, entre contos, romances e novelas, muitos dos quais já tive o prazer de ler. Quando os leio, os seus livros competem apenas com as outras criações deles próprios. Avalio-os pela sua própria escala. No caso de Maugham, durante anos foi também dramaturgo, e terá sido com base nesses conhecimentos da vida nos palcos que escreveu este As Paixões de Júlia, ou, no original, Theatre. É também um gentleman, e das poucas pessoas da História que eu gostaria realmente de ter conhecido. Quem sabe ele me convidasse para a sua casa do Mónaco para tomar chá, e nos tornássemos bons amigos ou, pelo menos pen pals.

Este romance centra-se num casal inglês, Michael e Julia, e no modo como ambos dedicam a sua vida ao teatro. Michael é um homem bem parecido, altruísta apesar de avarento, sem outro talento que não a beleza. Julia é uma mulher de aparência vulgar, mas de génio, cuja vocação a levou a tornar-se a melhor artista de teatro inglesa. Juntos, gerem um teatro e as suas relações com elegância.

Maugham dá voz a Julia, uma mulher que, segundo o filho, representa a todos os instantes. Julia é calculista, caprichosa e egocêntrica. A sua grande tragédia é perder-se sob camadas de fingimento, arriscando-se a nem existir. Usa a sua capacidade de ler os outros, e de os contemplar com o que esperam dela, para ser adorada e aceite em todos os círculos. A sua reputação é imaculada e ela adora ser o centro das atenções. Acompanhamo-la desde a juventude, em que era uma atriz promissora, enamorada por Michael, até aos seus 46 anos, altura em que, assustada pela possibilidade de estar a envelhecer e a perder a admiração de que goza há tanto tempo, se deixa envolver num caso desesperado com um jovem contabilista que a admira cegamente.

Apesar de a primeira metade do livro não oferecer grandes emoções, e o romance ostentar a frivolidade da própria protagonista, na segunda parte o autor valeu-se do seu conhecimento inigualável da natureza humana para nos surpreender. Julia é apanhada nos seus exercícios de fingimento, o seu amante talvez não lhe seja assim tão devoto e o filho, que considera insípido, talvez seja a única pessoa que a vê sob todas as camadas de que o teatro a revestiu.

"Não conheces a diferença entre verdade e fingimento. Estás sempre a representar. Em ti é uma segunda natureza. Representas quando temos uma festa em casa. Representas com o pai, representas comigo. Comigo fazes o papel da mãe carinhosa, tolerante e célebre. Não existes, não passas dos inúmeros papéis que interpretaste. Interroguei-me muitas vezes se terá alguma vez existido uma Julia Lambert ou se nunca foste mais do que um veículo para todas essas pessoas que fingiste ser. Ao ver-te entrar numa sala vazia, senti por vezes vontade de abrir a porta de repente, mas tive medo de não encontrar ninguém."


Mais uma viagem inesquecível pela pena do meu adorado Maugham.

Sinopse: Julia Lambert está no auge do seu sucesso: é considerada a maior actriz inglesa do seu tempo. No palco, é uma verdadeira profissional, dominando totalmente as suas emoções, e as suas actuações são arrebatadoras. Na vida real, está cansada do marido e é bastante menos disciplinada. Quando um tímido e jovem fã a cobre de atenções, Julia fica inicialmente divertida, mais tarde entusiasmada pela sua persistência e, por fim, louca e perigosamente apaixonada… A sua vida, até então aparentemente perfeita e imperturbável, vai sofrer uma viragem irreversível.

Ainda que Maugham seja preferencialmente aclamado enquanto romancista e escritor de contos, foi enquanto dramaturgo que ele conheceu inicialmente o sucesso. O presente romance é um testemunho desse seu entusiasmo pelos palcos.

Classificação: 4****/*

#250 TORDO, João, A Noite em Que o Verão Acabou

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Opinião: “A Noite em que o Verão Acabou” é a minha estreia com João Tordo. Terminei o romance com a sensação de que não devia ter começado a lê-lo por este. Julgo entender que este é um livro “fora da sua praia”, em que se aventurou num novo género. Eu não percebo muito do género thriller, mas creio que o thriller é aquele género de filme/livro em que há um bandido à solta e os bons têm de o parar. Aqui, e segundo a sinopse anuncia, houve um crime, há um suspeito e procura-se a verdade. Nesse sentido, diria que é mais um… mistério? Ou um romance no qual acontece um assassinato. Acho mais corretoa ssim: é um romance no qual, por acaso, uma pessoa é assassinada.

“Aquele caso era, na verdade, uma história de amor. Ou mais de uma.”

Tirei várias conclusões a respeito do livro, e também senti que fiquei um bocadinho por dentro daquilo que é o trabalho do autor.
Vou ensanduichar a minha opinião, porque há coisas boas e más à mistura.

Começando pelas coisas boas :
- A escrita, que é clara e flui;
- Os diálogos, que acabam por ser espirituosos;
- As personagens, que mais ou menos interessantes se mantém fiéis à sua personalidade;
- O trabalho gigantesco que é evidente que o autor levou a cabo para pôr de pé uma obra deste tipo, com várias pontas soltas – que, aliás, vai unindo a seu tempo, o que expõe o planeamento por detrás do livro;
- Na sequência do ponto anterior, as analepses encaixam bem umas nas outras;
Por tudo isto, penso que voltarei a ler João Tordo, mas no registo que é “dele”, e num livro mais pequeno.
Agora vou alongar-me nas más, porque foram o que minou a leitura: :
- O livro é enorme, com mil e um subenredos, e nem todos acrescentam grande coisa à história – por exemplo, há demasiadas páginas em torno da carreira frustrada da personagem principal, da sua tentativa de se formar na New York University. Também há muita insignificância em torno de rotinas diárias, coisas que podiam ser abreviadas até para não nos afastar do cerne do livro. E também há o facto de, a cada revelação a respeito do caso, se recapitular grande parte deste, o que a dada altura torna aquilo que seria a parte interessante da história – o assassinato e a investigação – um pouco aborrecidos;
- Há muitos anacronismos históricos que me tiraram da ação, dos quais destaco alguns: o Hospital de Portimão referenciado em 1987, quando apenas foi inaugurado em 1999, Havaianas no Algarve em 1987, quando também só chegaram ao país em 1999, “televisores gigantescos” no Algarve de 1987, jogos em rede com utilizadores de todo o mundo em 1998, câmaras de televisão por cabo em 2008 ainda a utilizar cassete (aqui é o contrário, já havia câmaras digitais com memória digital);
- Outros problemas com o enredo prendem-se com incongruências, isto é, com circunstâncias que não me convenceram – um rapaz de 13 anos que fala Inglês perfeito, e que só se atrapalha com uma expressão: Pen pal, mas depois se sai com outras que até eu desconhecia (digo “eu” que vejo filmes e séries há 30 anos, que leio em Inglês (não mais porque sou preguiçosa) que fui professora voluntária de Inglês por dois anos, e que trabalho em Inglês há 10: housebroken, para “domesticado” – é que estamos no Portugal de 1987, e embora o Pedro diga que aprendeu Inglês a ler e a ver filmes, parece-me altamente conveniente que assim seja para o enredo, e nada verossímil;
- Também me debati com o modo como a personagem se dirigia aos membros da família – isto é, o romance é contado na primeira pessoa por Pedro Taborda, mas dirigia-se a algumas personagens com um distanciamento que me deixou alerta. Sendo o livro um pretenso thriller, e referindo-se sempre à irmã como “Júlia”, e raramente como “a minha irmã”, e ainda à tia-avó como Lucília, e nem sempre “a tia”, perguntei-me se viriam a ser suspeitas de algum crime ao longo do livro;
- Outra dúvida são algumas expressões que surgem em Português, quando supostamente todos os diálogos do livro passados nos Estados Unidos devem ser em Inglês. “Com a breca!”, “Três é a conta que Deus fez”, ditos por personagens americanas, põem-me ali às voltas para tentar perceber o que teriam dito os yankees na realidade;
- Outra coisa que dificultou a leitura foi o facto de muitas personagens serem estereotipadas – perdi a conta a quantos americanos eram “gordos”, ou moviam o rabo assim ou assado; o advogado tinha o perfil de fuinha que se associa a vários advogados, os polícias tinham um quê de idiotas corados que comem donuts, as jovens são muito bonitas, os homens de negócios passam muito tempo fora de casa, e por aí fora;
- Por último, o que mais atrapalhou a leitura foram as inverosimilhanças na história, e neste ponto deixo as coisas com a proteção do spoiler. Quem ainda não leu o livro não abra. Começo por dizer que o que se segue são reflexões de uma pessoa que, desde que o confinamento começou, deve ter assistido a 13 temporadas de Forensic Files, no Youtube. Trata-se de uma espécie de minidocumentários sobre crimes ocorridos na América, ao longo das últimas décadas (e também Canadá e Austrália), e como a polícia os resolveu através da Ciência Forense. Cada episódio tem 20 e poucos minutos e basicamente mostra como a ciência é fulcral ao serviço da justiça. Neste romance, a ciência forense não existe.
(view spoiler) (o link leva-vos para a página do Goodreads, onde podem clicar em spoiler para ver o texto oculto).

Fechando a sanduíche:
É um bom esforço, com partes interessantes e alguns trechos de boa prosa. Porém, torna-se demasiado grande, demasiado inverosímil nalgumas partes, demasiado fantasioso e novelesco noutras. Isso e o facto de no livro subsistirem tantos núcleos, tantas histórias e tempos paralelos… Lembrei-me sempre da máxima “menos é mais”. Se o Taborda (já agora um tipo sem sal nem grande personalidade) está a contar a história como num romance, porque não ser objetivo?
Vou voltar a tentar ler João Tordo, mas da próxima comprometo-me com um livro mais pequeno.

Sinopse: 14 de Setembro de 1998. O dia em que Chatlam, uma pequena vila americana, acordou em choque com o homicídio de Noah Walsh. O principal suspeito: a sua filha de dezasseis anos. No Verão de 1987, o adolescente Pedro Taborda apaixona-se por Laura Walsh, a filha mais velha de um magnata nova-iorquino. Ela e Levi – uma criança misteriosa – passam férias com os pais no Lagoeiro, uma pacata cidade algarvia. Rica e moderna, a família Walsh tem tudo para dar muito nas vistas no sul de Portugal. Inebriado pelas formas perfeitas e pelos modos ousados de Laura, Pedro encontra na rapariga americana o seu primeiro amor. Mas quando o Verão acaba, a família Walsh regressa aos Estados Unidos e o destino fica por cumprir.

Dez anos depois, Pedro, decidido a tornar-se escritor, vai estudar para Nova-Iorque. Fascinado com Gary List, antigo prodígio das letras americanas, chega aos Estados Unidos determinado a perseguir os sonhos da juventude. Ao reencontrar Laura, está longe de suspeitar que esse acaso o mergulhará no crime mais falado dos anos noventa, o homicídio do milionário Noah Walsh.

Com um segundo homicídio a atrapalhar a investigação e uma corrida para salvar Levi, de apenas dezasseis anos, acusada de matar o pai, Pedro e Laura enredam-se irremediavelmente na teia de segredos que envolve a família Walsh, desde os anos quarenta do século XX até ao impensável desfecho nas primeiras décadas do novo milénio.

Porque em Chatlam – e neste thriller imparável – nada é o que parece.

O QUE ESCONDE LEVI WALSH?

Classificação: 3***/**