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Castelos de Letras

Em torno das minhas leituras!

Castelos de Letras

Em torno das minhas leituras!

"Já ninguém lê Dostoievski"

Desmistificar os clássicos

A Câmara Municipal de Almada tem, na plataforma soundcloud, um podcast "Os Livros da minha vida", em que professores, alunos e funcionários dos agrupamentos das escolas do município falam do livro ou dos livros que mais os marcaram. Uma professora bibliotecária disse que Dostoievski é um escritor fundamental, "que já ninguém lê", e destaca Émile Zola como um escritor que tem o condão de a desfazer em lágrimas. O Secretário de Estado da Educação rematou o projeto destacando o primeiro livro que leu de um sopro, sentado nas escadas dos pais: "Mataram a Cotovia". O Secretário de Estado esclarece ainda a importância do Plano Nacional de Leitura: motivar os jovens a lerem livros até ao fim, seleccionando livros que "agarrem" as crianças à leitura. Muitas vezes a literatura começa assim: com livros que nos agarram, e depois passa por várias fases, e culmina "na nossa praia". Mas, para isso, é preciso que não assustemos os jovens com calhamaços inalcançáveis para a sua idade. Vou admitir que, no secundário, tentei ler "Os Maias" (que julguei que viriam a ser obrigatórios, mas depois acabei por estudar antes "A Cidade e as Serras"), e fiquei horrorizada. Fiquei enfadada de morte com aquela descrição de uma casa senhorial que levou páginas, e páginas, e mais páginas. Perguntei-me "É isto o que mais se louva na literatura em Portugal? Então não me interessa a literatura portuguesa". E, durante anos, mantive-me afastada desse e de outros clássicos portugueses. Anos mais tarde, decidi dar-lhe uma oportunidade. Tinha evoluído de uma miúda romântica para uma aficcionada de História, o retrato da época - de repente a descrição do Ramalhete! - interessavam-me mais do que a própria ligação central do livro. A amizade e camaradagem masculinas emocionou-me, e terminei o livro em lágrimas, certa de que voltarei a lê-lo.

Resumindo: o timing importa.

Porque é tão importante ler Dostoievski, ou Zola, ou Steinbeck, ou mesmo Voltaire? Porque, mais do que escritores, estas pessoas eram excelentes analistas, que representaram a natureza humana como poucos outros. Observavam, filtravam o mundo e devolviam-no por escrito para as gerações vindouras. Deslindavam o significado do seu tempo, da complexidade da sua realidade, e tornavam-na acessível a quem os lesse. Ainda assim, da primeira vez que a pessoa degusta uma iguaria, depois de anos a comer spaghetti à bolonhesa, pode estranhar. A coisa é tão fora do nosso universo que podemos decidir que não vale a pena o esforço. Que quem louva os antigos são idiotas sem visão de futuro. Quando, a meu ver, quem louva os antigos compreende melhor o mundo de hoje, porque conhece o passado através dos melhores pensadores disponíveis em cada época. E, consequentemente, está melhor preparado para construir o futuro.

Deixo o nome de alguns autores ditos clássicos, incontornáveis ou vencedores de prémios literários reputados (separo-os porque nem todos os premiados resistem da mesma forma ao teste do tempo) que me atrevi a ler e que não são nenhum bicho de sete cabeças. Isto é, qualquer um de nós consegue lê-lo e apreciá-lo, sem espinhas:

1. A Leste do Paraíso, John Steinbeck - ou O Bem Vs O Mal

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Simplificando: é um livro muito descritivo ao início - no que à geografia do Vale de Salinas diz respeito; afinal, o autor era natural de lá. Acham que aguentam conhecer as paisagens americanas pela caneta de um Nobel? Posso prometer-vos que, fora isso, é um livro sem floreados e com alguns dos melhores diálogos e das melhores personagens que jamais encontrei em literatura. Podemos considerá-lo a perfeita novela com direito a heróis e vilãos, e toda a panóplia de humanos imperfeitos pelo caminho. Esta é a história de uma mulher má, de um homem bom, e dos filhos gémeos de ambos. Um puxa ao pai, o outro foi representado por James Dean no cinema. Tirem as vossas conclusões, mas preparem-se para o juntar à lista dos livros da vossa vida.

Temas prementes: Paternidade, sociopatia, bem, mal, preconceito, ganância

2. Mataram a Cotovia, Harper Lee - ou Uma Lição de Tolerância

Harper Lee cresceu no Alabama e foi amiga de Truman Capote. Ao contrário deste, que escreveu vários romances e se interessou por cinema, Lee escreveu apenas o incontornável "Mataram a Cotovia", e uma espécie de rascunho do mesmo que decidiram publicar em 2015, alegadamente contra o seu consentimento (Vai e Põe Uma Sentinela). Este romance, que se calhar assusta por ser tantas vezes mencionado como "bom", não é, de modo algum, "difícil". Reparem que quem nos conta a história de um negro acusado da violação de uma jovem branca é a pequena Scout, que vive com o irmão e o pai numa cidade do Alabama. O livro explora a questão da justiça social, do racismo e do crescimento pelos olhos de uma criança, o que o torna acessível, ternurento e desarmante em simultâneo. Não vos parece promissor ler sobre um advogado branco disposto a defender um negro na América segregacionista dos anos 30? 

Temas prementes: Racismo, crescimento, justiça social, preconceito

3. A Morte de Ivan Iliitch, Leo Tolstoi - Ou O Sentido da Vida

Quando surgem estes nomes russos, esquisitos e impronunciáveis, a maioria dos leitores põe-se a milhas "isto não é para mim". Mas também não é para os intelectualóides. Ora reparem: isto é só a história do pobre Ivan (até se diz bem, Ivan), que está a convalescer na cama devido a uma doença terminal. Todos nós somos capazes de compreender a sua esperança de que o médico se tenha enganado no diagnóstico, e todos nós somos capaz de dar connosco a desprezar o nosso cônjuge e filhos, que continuam a viver a vida como se não estivéssemos no quarto ao lado, a despedirmo-nos da nossa. É pequeno e foi escrito na linguagem clara e sucinta que caracteriza o estilo de Tolstoi, apesar, claro, da riqueza de conteúdo nas suas reflexões. 

Temas prementes: Vida, morte, arrependimento

4. Pan, Knut Hamsun - A Sociedade e o Ciúme

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Neste romance de cerca de 160 páginas, este norueguês de nome esquisito escreve na linguagem mais simples que possam imaginar. Apesar de simples, não é simplista - a profundidade emocional está ao alcance do leitor atento. O Tenente Glahn vivia sozinho e em paz na sua cabana isolada numa ilha norueguesa, tendo apenas o seu cão como companhia, qual divindade mitológica da floresta: Pan. Caçava e pescava para comer, dava grandes passeios e tinha a natureza como sua confidente. Até aí, tudo foi harmonia, mas um dia cruza-se com Edwarda, uma jovem em melhores circunstâncias que ele, e os seus encontros e desencontros vão virar-lhe a vida do avesso e fazê-lo perder controlo sobre os seus atos.

Temas prementes: Natureza, solidão, sociedade, amor não correspondido, ciúme

5. Caim, José Saramago - O Velho Testamento segundo Saramago

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Quando se pensa no Nobel da Literatura Português, pensa-se sempre no quão espinhosa era a sua prosa, a pontuação desencontrada e por aí fora. Também se pensa que Saramago era comunista e ateu, mas isso apenas nos interessa na medida em que é através dessa voz que se expressa. É essa a lupa a partir da qual via o mundo. Há livros de Saramago mais famosos - Memorial do Convento, Ensaio Sobre a Cegueira ou As Intermitências da Morte, por exemplo - mas não os considero mais fáceis que "Caim". Recordem-se que a estrada para a boa literatura deve ser construída degrau a degrau - isto é, livro a livro. Caim parece-me uma ótima aposta para conhecerem Saramago: se rebuscarem bem na vossa memória, encontram referências aos dois filhos de Adão e Eva, Abel e Caim? Pois é, Saramago pegou no nosso Caim, montou-o num jumento e fê-lo percorrer os momentos icónicos do Velho Testamento. Se se munirem de humor (e lhe perdoarem a pontuação), vão chegar a um final que me fez sorrir e suspirar. Ah, Saramago!

Temas prementes: Deus, humanidade, crueldade, religião, Velho Testamento

Vantagem: são livros que provavelmente vão encontrar em alfarrabistas, em segunda mão no olx e outras plataformas, ou que podem facilmente pedir emprestados ou requisitar nas bibliotecas.

Outra vantagem é que, degrau a degrau, se evolui destes livros para outros mais complexos e desafiantes. Destaco, de entre esses, "Guerra e Paz", de Tolstoi, ou "Ulisses", de James Joyce, que ainda não sei se algum dia estarei preparada para ler (e compreender).

Coragem, um livro bom nunca é uma perda de tempo.

Boas leituras!

A auto-publicação

Ou como as editoras, os leitores e os pares as vêem

Quando publiquei o meu primeiro romance, "Demência", pela Alfarroba, estávamos em 2011 e eu não tinha qualquer entendimento do mercado editorial.

Na altura, estava a enviar outro manuscrito para várias editoras. Era fácil, bastava ir aos sites e preencher o formulário de envio de originais. Era logo avisada que, se não respondessem em X tempo, é porque o livro não se adequava no Plano Editorial. Ficava triste perante tanto silêncio, posto que estava convencidíssima de que tinha escrito uma coisa espetacular, e de que o meu livro era pelo menos tão bom quanto alguns que via publicados e que acabava por ler. Existe uma enorme possibilidade de que estivesse enganada, inebriada pelo feito de ter terminado três romances que considerava publicáveis apenas com 18 anos, e desde então andava nessa senda por publicação.

Eu sempre escrevi para mim, mas havia gente próxima que sabia que o fazia, que lia os manuscritos, que sabia que dedicava bastante tempo a essas andanças, e que me incentivaram a procurar uma editora. Vários meses volvidos e com a caixa de correio vazia, comecei a perguntar-me se o meu livro seria péssimo ou se as editoras não estavam interessadas em escritores desconhecidos.

À luz dos meus 18, 19, 20 anos, isso pareceu-me doloroso. Era uma idealista que, inclusivamente, fez figura de idiota algumas vezes. Lembro-me de marcar uma reunião com o responsável pela Biblioteca de Almada, e de o pressionar a "investir" nos escritores locais. Que vergonha, meu Deus! Era lá essa a função do senhor!

Enfim. Uma amiga falou-me na Alfarroba, uma "editora pequenina" de Alcochete, e disse-me que tentasse enviar para lá o manuscrito. Não demorou muito para que me respondessem a solicitar uma reunião, à qual compareci com os nervos em franja. Disseram-me que o livro era bom, mas que podia melhorar um pouco - iam dar-me algumas indicações de como, caso eu concordasse em avançar para publicação. Cumprimentaram-me pela minha juventude, e explicaram-me que teria de me comprometer a adquirir um certo número de exemplares para podermos avançar com o trabalho. O valor que me pediram não era pouco para uma miúda que acabava de conseguir o seu primeiro trabalho, e fui aconselhada por familiares a recusar a proposta. Com aquele dinheiro, podia tirar a carta, fazer uma viagem, comprar um carrito velhinho que ainda andasse. Mas eu percebi que podia recuperar parte do investimento vendendo os livros diretamente, e agora até me sinto feliz que tenha sido assim. Esse expedir de livros autografados, o diálogo com cada leitor que foi ousado o suficiente para apostar numa desconhecida, com base em meia dúzia de reviews de pessoas que dedicam a vida à leitura e divulgação de autores... uau! Aproximou-nos imenso. De repente,  vi-me naqueles filmes americanos em que a pessoa tem a sala cheia de caixotes com livros (nesses filmes americanos ninguém quer comprar os livros). Mas o "Demência" foi vendido até esgotar. Não sei exatamente quantos anos demorou a secar na fonte, mas de repente só existia no olx, nas feiras de rua, ou encontrava-se um exemplar danificado na banca de algum alfarrabista, etc. A divulgação foi parcialmente feita pela editora, que também assistiu na edição e revisão o melhor que podia. Envolvi-me no processo ao ponto de disponibilizar a fotografia da capa, e fiquei muito satisfeita com o objeto "livro" que saiu desse meu investimento e dessa aposta da "editora pequenina". 

O melhor de tudo, e eu na altura nem sabia que era uma sortuda, foi o interesse sem preconceitos dos leitores e dos bloguers (fosse face à nova autora desconhecida, fosse face à editora não muito famosa), que apostavam em autores portugueses, que arriscaram no livro e depois o divulgaram sem qualquer benefício próprio. Fui muitíssimo bem acolhida, e todo esse processo aproximou-me imenso dos leitores e tornou-me profundamente grata a eles. Também me mostrou que grande parte deste processo está dependente deles e da sua receptividade.

"O Funeral da Nossa Mãe" passou pelo mesmo processo. O primeiro livro correu tão bem que não tive qualquer dúvida de que queria partilhar outro convosco, e salvo erro nem sequer cheguei a endereçar o manuscrito às editoras convencionais. Por essa altura, já tinha vários conhecidos no mundo das letras. Fiz amizade com alguns outros escritores emergentes, e as nossas dúvidas, frustrações e angústias eram as mesmas. O maior problema era a distribuição: os leitores a perguntarem onde podiam comprar o livro e sabê-lo disponível em tão poucas plataformas era frustrante. Mas eu entendo, e porquê? Porque as editoras são um negócio, as livrarias são um negócio e por aí fora: tudo é um negócio. Não tem como o não ser. Não é tarefa de nenhuma dessas plataformas "educar os leitores", nem sequer "promover a cultura". É possível que nessa área trabalhem muitos aficcionados da leitura, mas o princípio maior, julgo entender, é o lucro. Como em qualquer negócio: fazem apostas válidas que lhes garantam as portas abertas. E um escritor desconhecido é um mar de incerteza financeira. 

Resumindo: estava satisfeita com o trabalho da Alfarroba, excepto a nível da revisão, que poderia ser mais cuidada mas na qual também via falhas minhas, e na distribuição, coisa que não estava a 100% nas suas mãos resolver. Olhando para trás, fui também uma sortuda por não ter caído nas garras da Chiado. A Chiado é uma tipografia que cospe livros com capas hediondas e revisão nula. Assisti à humilhação de uma rapariga muito querida de Almada, que me convidou para um café, quando ela entendeu que o livro não foi publicado por nenhum tipo de mérito seu. Foi publicado porque ela acabava de contrair uma dívida. Ela não sabia pôr o h em , e a fábrica tipográfica também não lho soube corrigir logo na primeira página de livro. A somar a isso, o livro era um conto miserável, e ninguém lho disse. Ela descobriu quando eu lhe dei a minha opinião sincera, acompanhada de um pedido de desculpas.

Isto para dizer que, se querem publicar um livro por vossa iniciativa, não há nada de errado nisso. Tantos escritores de renome o fizeram! Tolstoi, Hemingway, Margaret Atwood, Virginia Woolf e por aí adiante. O facto de uma editora rejeitar o vosso manuscrito significa que ele não é vendável, na sua ótica. Não significa que seja mau. As Cinquenta Sombras de Grey são vendáveis. O nosso querido best-seller nacional da fórmula infalível e das frases feitas também. Até temos um guru espiritual que era careca e agora usa rabichinho que também deve sair-se bem nas vendas. Por isso não confundam a rejeição do vosso livro por uma editora conceituada como um atestado de má-qualidade. Pode ser que até vos seja lisonjeador.

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Os meus conselhos caso queiram arriscar a vossa estreia com uma vanity, como a Alfarroba ou outras disponíveis no mercado, são:

1. Fujam da Chiado, vai destruir-vos a reputação ainda antes de serem lidos;

2. Estejam dispostos a trabalhar duro na revisão do livro, quiçá na concepção da capa, na divulgação e inclusive na venda da vossa criação, porque a distribuição nunca será o que desejavam;

3. Não se precipitem - depois de publicado, não podem fazer desaparecer o livro -, só podem contar com a vossa própria crítica, sejam exigentes. Perguntem-se se o livro está terminado, se é a melhor versão de si mesmo, se vale a pena disponibilizá-lo ao mundo;

4. Procurem bloguers / influencers em torno de livros a quem achem que o vosso manuscrito vai agradar. Ofereçam-lho em troca de uma opinião sincera! Se tiverem sorte de que se interesse, e que se disponha a ler-vos, vai partilhar a opinião com o seu universo de seguidores (é aqui que convém que estejam confiantes na qualidade do livro, porque é de opiniões positivas - sinceras - que a estrada será pavimentada!). É um investimento, e não há como ser forreta nessa hora;

5. Se tiverem dúvidas e quiserem tentar uma última vez a ronda das editoras convencionais, direccionem a vossa procura. Enviem o manuscrito e carta de apresentação, ou outros documentos solicitados, apenas para editoras cujo cerne editorial se adeque ao vosso trabalho. Caso contrário só estão a perder o vosso tempo e o deles;

6. Preparem-se para que algumas pessoas não gostem do livro quando for publicado: não levem a peito. Aceitem as opiniões com humildade e poder de encaixe. Usem esse feedback para melhorar no próximo livro.

Tendo optado por publicar com uma vanity, aproveitem essa divulgação e todos os conselhos anteriores para criarem o vosso universo de leitores. Chegada a altura de serem aceites por outra editora, que garanta distribuição e que não vos cobre para publicar, eles estarão convosco. São a vossa melhor carta de recomendação.

Para terminar, desejo boa sorte a todos os que queiram publicar um livro. Aconselho-vos a encontrarem a vossa voz, a desenvolverem temas que vos são familiares e a trazerem para a luz assuntos que mexem convosco. Num mundo com tantos, tantos livros, garantam que o vosso traz alguma diferença!

Bonne chance,

C.

#249 HAMSUN, Knut, Pan

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Sinopse: Pan é, desde a sua publicação, um dos livros mais apreciados e amados de Knut Hamsun. Uma obra-prima da literatura, onde «a natureza fala na língua subtil e sonhadora de um breve e idílico Verão nórdico».

Através dos papéis encontrados depois da sua morte, o tenente Glahn relata-nos a sua trágica paixão pela jovem Edwarda, num crescendo de exaltação que invade e se confunde com a paisagem envolvente, tor­nando-se difícil distinguir entre natureza e psique.

Opinião: Ainda no outro dia se falava, algures pelo Instagram, sobre comprar-se livros pela capa. Comprei Victoria (1898) precisamente pela capa, depois ajudada pela sinopse. Gostei tanto que pouco depois me comprometi a adquirir Fome (1890, vejo-o sempre esgotado), e este Pan (1894).

Pan é uma figura da mitologia grega, meio humano meio animalesco (focinheira e chifres), divindade dos bosques, e portanto dos pastores e dos caçadores. Uma breve leitura a seu respeito revela-nos que o seu lado humano lhe conferia sentimentos ternos, bem como a capacidade de se apaixonar. Porém, o seu lado animal levava-o a destruir tudo o que acarinhava.

O título do romance entrelaça-se com perfeição nesta figura mitológica. O enredo decorre numa ilha nórdica que o autor nunca chega a nomear, onde o Tenente Glahn se isola numa cabana de caça com o seu cão, Esopo. É a sua voz que nos guia através das estações e da paisagem, das noites de ferro, do ir e vir das embarcações no cais da ilha. Glahn é um jovem mistério para os habitantes da ilha, que acabam por se sentir atraídos pelo seu modo de vida e pela sua maneira de ser. Vêem algo de romântico no homem solitário que percorre a montanha com a espingarda e o cão, caçando para viver, cozinhando a própria comida, observando a natureza e a aurora boreal sem outra companhia que não os seus próprios pensamentos.

No início do romance, Glahn está em plena harmonia com a natureza ao seu redor. Disserta a respeito da paz e da felicidade que o mundo ao seu redor lhe inspira, com a sua tranquilidade e os seus ciclos. Porém, a dada altura, conhece Edwarda e o seu pensamento afasta-se do campo terreno para o mundo volátil dos sentimentos e das dores amorosas. Passa a experimentar ciúme e despeito, o que o transforma num ser por vezes cruel.

Knut Hamsun é uma figura controversa da literatura internacional. Terá sido uma figura errante que se entregou a períodos de vagabundagem ao longo da sua vida. Viveu na Noruega mas também na América do Norte, e a sua obra literária despreza o progresso e o mundo cosmopolita. Era grande apreciador da natureza, e um grande admirador da Alemanha e da sua visão do mundo, tendo-a apoiado em ambos os conflitos mundiais. Em 1920, foi galardoado com o Prémio Nobel da Literatura. Como defensor do regime nazi, e tendo inclusive apoiado a invasão do seu país natal pelo III Reich, chegou a escrever uma elegia a Hitler após a sua morte, engrandecendo as suas qualidades de guerreiro e pensador. Essas posições valeram-lhe um internamento psiquiátrico no pós-guerra, partindo do princípio de que sofreria de algum tipo de patologia que lhe condicionava as ideias. Ainda assim, em pleno internamento, escreveu a sua última obra, criticando os profissionais que duvidavam das suas capacidades mentais.

"Fome", "Pan" e "Victoria" formam uma espécie de trilogia que ilustra uma fase da escrita do autor, em que se evidencia o pensamento panteísta (o universo e Deus como um só, para simplificar, sendo que Deus se manifesta através do universo e mais concretamente da natureza), um lirismo que me recorda o romantismo de inícios do século XIX, embora com trejeitos de maldade.

"- Podias dar-me o Esopo?
Eu não hesitei. Respondi-lhe:
- Sim.
- Então talvez possas vir amanhã e trazê-lo contigo - pediu ela.
(...)
Porque razão teria ela pedido para aparecer pessoalmente e levar-lhe o cão? Iria ela dizer-me alguma coisa e falar comigo pela última vez? Já não tinha qualquer tipo de esperança. Como iria ela tratar Esopo? Esopo, Esopo! Irá torturar-te! Irá chicotear-te por minha causa, com e sem razão (...).
Chamei Esopo para junto de mim, afaguei-o, juntei as nossas duas cabeças e peguei na minha arma. Ele já gania de prazer, pensando que iríamos sair para caçar. Juntei as nossas cabeças novamente, encostei o cano da arma ao pescoço de Esopo e disparei...
Paguei a um homem para levar o corpo de Esopo a Edwarda."

Espero voltar a lê-lo em breve, embora nem toda a sua obra esteja disponível em português, coisa que entendo porque vejo um fosse ideológico e estilístico entre este tipo de literatura e a que foi vingando na Europa do Sul. 

Classificação: 4,5*****/5