Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Castelos de Letras

Em torno das minhas leituras!

Castelos de Letras

Em torno das minhas leituras!

#248 CARVALHO, Rodrigo Guedes de, Margarida Espantada

52855167._SX318_.jpg

Opinião: (Em e-book)

As famílias amaldiçoadas...

Já Tolstoi escreveu, a abrir o seu aclamado romance "Anna Karenina", que “As famílias felizes são todas iguais, as infelizes são-no cada uma à sua maneira.” Devo confessar duas coisas: primeiro, que este é o primeiro romance que leio da autoria do Rodrigo Guedes de Carvalho, segundo que o primeiro ponto se deve apenas ao meu enorme receio de, admirando-o tanto como profissional, me decepcionar amargamente com a literatura que lhe sai das mãos.

Avanço com uma terceira confissão: até meio da leitura, estava convencida que lhe daria um quatro, na melhor das hipóteses. E apenas porque, entre uma escrita que não aprecio por aí além, por quebrar com aquilo que diria ser "a escrita clássica", aquela mais polida onde certos vocábulos e maneirismos não têm lugar, surgem relances de pensamentos admiráveis. De vez em quando parava para digerir um ou outro trecho do livro. As temáticas ali contidas foram-se enredando mais e mais numa narrativa que, de início, prometia alguma simplicidade (até porque se trata de um livro relativamente pequeno). No final, fiquei com a sensação de ter conseguido acompanhar a premissa que o autor se propôs a defender ao escrever esta obra, que acredito que lhe tenha vindo dos recantos mais obscuros da sensibilidade.

"Margarida Espantada" é uma história de família, daquelas que sempre me fascinam. Uma das minhas temáticas favoritas na arte (e, sobretudo, na literatura) é essa evidência de que as famílias são um fluxo orgânico vindo lá de trás, não se sabe bem de onde, com uma carga em parte exposta, em parte oculta, e que se dirige sabe-se lá aonde. Mexendo apenas com duas gerações de uma família que parece amaldiçoada (os Duval), o autor fez um retrato intimista daquilo que terá sido a infância dos quatro irmãos num casarão em Colares, e de como esses acontecimentos os moldaram na relação uns com os outros, na relação com os pais, nas perspectivas de futuro e no modo como eles mesmos se jogaram à vida.

O romance aborda questões delicadas, como violência doméstica, alcoolismo e doenças mentais. Pode parecer uma carga demasiado pesada para um livro tão pequeno, e é-o, mas é nisso que o livro se supera: faz com que tudo isto seja uma só coisa - a maldição das famílias infelizes, em que o sofrimento e as frustrações levam a vícios, que por sua vez levam a violência, que por sua vez molda carácteres, causa psicoses, destrói gerações.

Um dos maiores desafios que experiencio ao ler livros de autores nacionais, é o de me abster do facto de aquilo se tratar de um livro - isto é, o trabalho de alguém, e de me concentrar na história que me proponho viver ao escolher lê-lo.. Até meio do romance, tinha muito presente que aquilo era tudo saído da mente do RGC, chegava a ouvir entoação da sua voz a recitar-mo - cheguei a irritar-me com os nomes das personagens - Margarida Rosa, Maria do Carmo, Ana Teresa, Manuel Afonso, António Carlos, Isabel Rita, Sara Lúcia, Aida Vanda e tantos outros com primeiro e segundo nome, todos eles desencontrados, que a cada novo nome me vinha a irritação de pensar que este narrador podia ter escolhido uns nomes mais aleatórios, só para eu acreditar que estas pessoas existem mesmo.

O livro ganha alento no último quartel: foi aí que se encerrou abruptamente, atrevendo-se a deixar pontas soltas para o leitor unir (como leitora, adoro que um autor me considere capaz de somar 2 + 2), e tornou-se muito sensitivo, muito angustiante. Acredito até que funcionaria bem na prateleira dos thrillers: para mim isto seria um thriller bem escrito. Prefiro mistérios em torno de famílias com sumo em torno das vítimas e dos criminosos do que aqueles episódios do CSI por escrito em que a génese do romance é a vida privada (tantas vezes até romântica) dos investigadores. Aqui, o autor deu-se ao trabalho de criar bons retratos psicológicos das vozes que povoam o seu romance, e de torná-las tanto vítimas quanto perpetuadores; em suma - humanos. De salientar ainda que é assim que, pessoalmente, distingo os bons romancistas: a pertinência dos espaços imaginados pelo autor, a escolha do local onde a história se desenrola, influenciada pelas características do ambiente onde se vê inserida... Pronto, é isto. "Margarida Espantada" só poderia passar-se em Sintra, e em nenhum outro lugar.

Um livro que explica bem esse dominó que é a vida das pessoas. Chamemos-lhe karma, Samsara, tudo o que vai, volta. Toda a dor infringida paga-se, e todas as famílias onde há maus fígados acabam por se precipitar para a própria extinção.
 
Sinopse: Margarida Espantada é sobre família. Sobre irmãos. É sobre violência doméstica e doença mental. É um efeito dominó sobre a dor. A literatura é um jogo do avesso. Os bons romances são sempre sobre amor, e os melhores são os que fingem que não são. Não devemos recear livros duros. As histórias que mais nos prendem trazem uma catarse que nos carrega as mágoas, personagens que apresentam as suas semelhanças connosco. Gosto da ficção que é número arriscado de circo, com fogo e espadas, que nos faz chegar muito perto da queimadura que não vamos realmente sentir. Mas reconhecemos. 
 
Classificação: 5/5*****

#247 HESSE, Herman, Siddhartha

500x.jpg

Sinopse: Siddhartha, filho de um brâmane, nasceu na Índia no século VI a.C. Passa a infância e a juventude isolado das misérias do mundo, gozando uma existência calma e contemplativa. A certa altura, porém, abdica da vida luxuosa, protegida, e parte em peregrinação pelo país, onde a pobreza e o sofrimento eram regra. Na sua longa viagem existencial, Siddhartha experimenta de tudo, usufruindo tanto as maravilhas do sexo, quanto o jejum absoluto. Entre os intensos prazeres e as privações extremas, termina por descobrir «o caminho do meio», libertando-se dos apelos dos sentidos e encontrando a paz interior. Em páginas de rara beleza, Siddhartha descreve sensações e impressões como raramente se consegue. Lê-lo é deixar-se fluir como o rio onde Siddhartha aprende que o importante é saber escutar com perfeição.

Opinião: Este foi o primeiro livro que li da autoria de Herman Hesse, naturalizado suíço e vencedor do Prémio Nobel da Literatura em 1946.

Hesse aproximou-se da cultura e filosofia oriental durante uma viagem à Índia, em 1911, e essa viagem marcou profundamente os seus trabalhos. De salientar que viveu as duas Guerras Mundiais, com toda a carga emocional a elas associada.

Não consigo pronunciar-me acerca de Siddhartha sem evocar as minhas crenças espirituais; isso é um dos contributos do livro para o leitor - a ideia de que a espiritualidade é algo que vem de dentro, que se busca em nós e no Samsara (uma espécie de energia que une todos os seres vivos e que funciona como fluxo constante da vida, fazendo com que passado, presente e futuro sejam um só). Eu não acredito em religiões - acho que as religiões servem o único propósito de controlar as massas, e outras servem apenas os homens e a sua ganância. Há "igrejas" que são, na realidade, empresas com objectivos estabelecidos que visam enriquecer uma cúpula de privilegiados. Sou obrigada a mencionar o Edir Macedo e a corja de cães gulosos da IURD, que sugam a alma e a paz aos desgraçados que por lá aparecem para ouvir o Evangelho. Em Mateus (19; 24), encontramos a célebre citação de Jesus: "é mais fácil fazer passar um camelo pelo buraco de uma agulha do que um rico chegar ao Reino dos Céus", e acredito que esta simples ideia tenha dado azo a muito debate. Não concordo com ela numa visão socialista (todos os ricos são maus), mas sim numa visão céptica, em que nem sempre quem é rico é-o por mérito próprio ou através do próprio suor. Este tipo de doutrina não interessa aos cães gulosos, mas é aquilo que de mais significativo encontramos sobre aquilo que seria a filosofia de Cristo. Isto e o não pedir nada, porque me parece que na Bíblia as maiores bênçãos chegavam para os humildes, para os que se arrependiam, para os que nada pediam (tantas vezes nem sequer perdão, pois que Maria Madalena está perdoada antes sequer de abrir a boca).

Neste ponto esclareço que, para mim, Jesus é quando muito uma figura política, alguém cuja visão permitiu compreender as injustiças sofridas pelo povo Judeu às mãos dos seus opressores (no momento histórico em que viveu, referia-se aos romanos).

Siddhartha é um pequeno romance (ou "poema indiano") de aproximadamente 140 páginas, ao longo das quais acompanhamos o curso da vida de um filho de brâmane, portanto um sacerdote de bom estatuto na organização social hindu. Este jovem brâmane, de nome Siddhartha, decide não se cingir a uma doutrina, nem sequer à que o seu pai pratica, e ir pela Índia em busca de si mesmo. Juntando-se aos samanas, peregrinos no limiar da pobreza, que vivem de meditação e esmolas, aprende a jejuar, a pensar e a esperar, e com outras entidades aprenderá outras tantas lições importantes sobre si mesmo e o universo.

"Ninguém conseguirá a libertação através de doutrinas! Com ninguém, ó Venerável, conseguirás partilhar e dizer o que te aconteceu na hora da tua iluminação! (...) Esta é a razão pela qual prossigo a minha peregrinação (...) para abandonar todas as doutrinas e todos os mestres, para alcançar sozinho o meu objetivo ou para morrer."


O que me parece mais valioso nesta odisseia do jovem Siddhartha é a ideia, tantas vezes controversa, de que a espiritualidade é algo de profundamente pessoal, e que ninguém tem como viver essa viagem pelo outro. Em suma: de nada adianta sentar e escutar aquilo que um Homem esclarecido tenha concluído da sua própria busca espiritual, porque qualquer explicação será oca se não a vivenciarmos. De nada adianta idolatrar alguém só porque reconhecemos nessa pessoa alguma santidade, ou um espírito esclarecido, e vivermos à sombra dos seus ensinamentos. Por muito que a sua doutrina seja verdadeira, continua a ser a verdade daquela tal pessoa, e os significados profundos só fazem sentido para o indivíduo quando é ele a descodificá-los, ao seu ritmo e à luz dos seus próprios sacrifícios e experiências.

Eu sempre senti que a ideia de Deus, de sacralidade, de certo e de errado, vem de dentro de nós. Nunca consegui seguir uma doutrina, acenar em concordância com a leitura de textos ditos sagrados, ou seguir as restrições que tantas religiões impõem. Tantas vezes essas restrições às liberdades individuais são inclusive fruto do preconceito do Homem que interpreta "as escrituras", e não a génese daquilo que está escrito. Creio que, ao entregar-se a uma religião, ao admitir castrar a própria liberdade, o próprio pensamento, a própria capacidade de contemplação, por direccionamento de outrem - que julga ter um conhecimento superior sobre o mundo e o além - o transformamos na nossa consciência. A nossa consciência deve partir de reflexões profundas e de lições apenas por nós vividas.

O livro é muito prolífero neste tipo de reflexão, creio que não ofende nenhum credo - apenas direcciona, com naturalidade, o Homem a descobrir-se a si mesmo e às verdades que o satisfazem espiritualmente.

Recomendo!

Classificação: 4****/*

Os favoritos da vida

só que resumidos a 5!

A minha pasta de favoritos no Goodreads refere 24 títulos que se destacam do mar de livros que li até hoje. Desses 24, alguns mais próximos, outros mais diluídos na memória, decidi escolher 5 para fazer um post sobre os meus livros favoritos de sempre, e porquê.

Isto dos livros favoritos é muito pessoal, tal como o é o gosto por música. Independentemente de o nosso género ser punk, por vezes um momento consagra-se ao som de uma composição de blues, e a canção pode não se tornar favorita, mas torna-se inesquecível, e parte da nossa história.

Cá vão os livros que amei por todas as razões que passo a explicar...

 

1. O Fio da Navalha, Somerset Maugham

MV5BNWJkNDIyNzYtZDVmMC00OTdiLTlmNzEtYWJhN2ZiZGJiZj

Há um filme com Bill Murray cujo cartaz exemplifica melhor a essência de "O Fio da Navalha" do que a própria sinopse do mesmo.

Esta é a história de Larry, um americano comum, com a vida mais ou menos planeada - um casamento, um emprego - e que perde todas as suas certezas aquando da sua experiência como piloto de guerra na Primeira Guerra Mundial. Isto é, quando um seu companheiro de armas se sacrifica para o salvar, Larry começa a ver a vida de outro modo, e a buscar-lhe um sentido. O próprio Maugham assume-se como narrador, e Larry como um seu conhecido, uma das inúmeras pessoas com quem se cruzou na sociedade de Chicago, e mais tarde em Paris. Assim, o livro vai-se desenvolvendo de encontro em encontro, enquanto a América se precipita para o Crash da Bolsa de '29 e a Europa para a Segunda Guerra. Este livro tocou-me profundamente pelo retrato nítido das personagens, pelo modo como conduzem as suas vidas sem terem realmente total controlo sobre elas, e por dois momentos de absoluta transcendência que vivi ao lê-lo, guiada pelo talento do autor. Um desses momentos passa-se num lago na América, quando um homem reflete sobre o que perdeu com a crise e sobre o atual propósito da sua vida, e outro quando Larry, em meditação, assiste ao nascer-do-sol na Índia e retira daí as respostas que havia perseguido durante tanto tempo. Em suma, é um livro espiritual apesar da rigidez da sociedade, da dureza dos tempos e das convenções esmagadoras de um mundo em profunda mudança. Segundo o cartaz do filme, é a história de um homem à procura de si mesmo. Ficou-me gravado na alma.

 

2. E Tudo o Vento Levou, Margaret Mitchell

Margaret-Mitchell-1938.jpg

São 1200 páginas daquele que considero o romance melhor conseguido de todos os tempos. Por todos os motivos: porque é enorme, porque contém as personagens mais complexas que jamais encontrei (excepto, talvez, em Os Irmãos Karamazóv), porque o amor, a guerra, a mudança, a morte, a fome, tudo, é eximiamente descrito e explorado. E Tudo o Vento Levou passa-se nos conturbados anos da Guerra de Secessão nos Estados Unidos, que opõs o sul esclavagista e ligado à terra (a Confederação), ao Norte industrial e progressista (a União). No centro desse conflito temos Scarlett O'Hara, uma jovem mimada e fútil que até então viveu de privilégios, e que por fim se vê obrigada a vários sacrifícios para sobreviver. Scarlett não olha a meios para obter o que deseja, e é por isso que a considero a melhor anti-heroína de todos os tempos, a par com Rhett Butler, o seu co-protagonista. E eu adoro histórias de personagens falíveis, anti-heróis e outros cuja alma percorra um caminho de redenção!

 

3. As Vinhas da Ira, John Steinbeck

Este romance de 1939 da autoria de John Steinbeck ganhou o National Book Award e o Pulitzer Prize, sendo que mais tarde Steinbeck haveria ainda de ser distinguido com o Prémio Nobel. As Vinhas da Ira é a saga épica da família Joad, que se vê vítima da Grande Depressão, mas também das tempestades de pó que atingem ocasionalmente o centro dos Estados Unidos e que destroem as colheitas. Vítimas de condições tão inóspitas, os Joad, com a casa às costas, atravessam vários Estados ao longo da Route 66, numa tentativa desesperada de chegar à Califórnia, onde haveria trabalho, sol e pêssegos para todos. Este livro desafia os limites do suportável, da miséria, e em simultâneo tem um cunho socialista, de denúncia que busca levar a sociedade à reflexão e à correção de comportamentos pouco empáticos. O discurso de Tom Joad à mãe, em que garante que sempre que haja injustiça no mundo ele estará lá, arrepiou-me e emocionou-me até às lágrimas. Deixo a canção que descobri após a leitura, e que me acompanhou durante as semanas em que o livro permaneceu em mim - original de Bruce Springsteen, mas é desta versão que gosto.

4. O Som e a Fúria, William Faulkner

"Life's but a walking shadow, a poor player,
That struts and frets his hour upon the stage,
And then is heard no more. It is a tale
Told by an idiot, full of sound and fury,
Signifying nothing."

Shakespeare, Mcbeth

"O Som e a Fúria" é um romance experimental de William Faulkner, publicado em 1929. Dividido em quatro partes, expõe a visão das personagens de maneira tão única que o leitor começa por se sentir perdido. Ainda me pergunto se teria coragem de continuar a lê-lo noutro contexto que não aquele em que o li: nas viagens diárias no metro, entre New Jersey e New York, em novembro de 2018. Estava presa àquele livro cuja ação decorre no sul profundo da América, onde os escravos surrupiam salsaparrilha aos patrões, descendo às adegas e escondendo-se pelos cantos que dominam nas mansões senhoriais. Mas o Som e a Fúria é sobretudo a história da família Compson, em declínio perante a sociedade. Outrora aristocratas, enfrentam a pobreza, a doença mental, o vício e a degradação generalizada. Faulkner recorreu ao chamado fluxo de consciência, em que o narrador cede à personagem o ritmo da narrativa, e esta se desenvolve ao passo a que as ideias lhe ocorrem. Torna-se confuso, difícil de ultrapassar, mas pontilhado de momentos inesquecíveis, de significados ocultos até à resolução de todo o mistério, revelou-se simplesmente sublime.

 

5. Cem Anos de Solidão, Gabriel García Márquez

Ilustração de Luísa Rivera

(Ilustração de Luísa Rivera)

É pouco habitual que me entregue demasiado ao estudo de um autor, são poucos os autores que me fascinaram de tal modo que assisti a entrevistas, umas atrás das outras, para poder beber da sua aura, das suas palavras e acompanhar-lhes as ideias. É-me fascinante. Numa das entrevistas de Gabo, o autor revelou que, antes de Cem Anos de Solidão, tinha escrito romances e outros textos com o objetivo de levá-los à televisão, de contentar o público e de criar conteúdo para entreter. Quando se viu a escrever Cem Anos de Solidão, escreveu-o para si, abandonando essa escrita televisiva e as expectativas do público. O transe durou 18 meses, e creio que isso se explica pelo modo como o livro parece correr a um ritmo, a uma voz. De geração em geração de Buendías, a imaginação de Gabo multiplica-se, aprimora-se. Cada geração é única, dispõe de uma voz e de adjetivos, e entrelaça-se nas horas com tanto esmero! Tão trágico quanto amoroso (é esta a palavra que quero, amoroso), o enredo de Cem Anos de Solidão é inesquecível. Ou melhor, desvanece na cabeça, mas fica no coração. Maravilhoso!

 

#246 DOSTOIEVSKI, Fiódor, Os Irmãos Karamazov

WhatsApp Image 2020-04-10 at 15.19.37.jpeg

 

"Só Dante pôs os vários mundos assim em coexistência", diz-nos ainda Bakhtine, "mas em Dante eles não interagiam."


Artigo do Público, aqui

Há imenso para dizer sobre os Os Irmãos Karamazov, seria uma dissertação interminável, que se multiplicaria várias vezes face ao volume real do romance, posto que cada parte, cada capítulo, cada diálogo e cada personagem daria origem a rios de tinta a seu respeito. Posto isto, talvez deva dizer que o que fica, no leitor, desta obra colossal publicada entre 1880 e 1881, isto é, terminada a dois meses da morte do autor, é uma necessidade premente de reflexão. Reflexão sobre todo e cada tema que nos é apresentado ao longo desta narrativa, em que o narrador se assume presente e inclusive condiciona a opinião do leitor. Mas, mais surpreendente do que esta familiaridade que o narrador estabelece com o leitor, é o facto de cada diálogo, de beleza incontornável, oferecer não raramente perspetivas opostas sobre um mesmo assunto, e a argumentação e contra-argumentação serem tão bem articuladas que parece impossível que tenham sido produzidas pela mesma cabeça.

Este é um romance de 768 páginas (na minha edição da Saída de Emergência, que aconselho por ser maleável e muito agradável a nível estético), que explora – de maneira até autobiográfica, segundo defendem alguns autores e críticos – a vida dos Irmãos Karamazóv. São eles Dmitri (Mitya), Ivan, Alexey (Aliocha) e Smerdyakov, este último ilegítimo. Cada um destes irmãos oferece um ângulo da Rússia czarista, empobrecida e raiada de contrastes. Dmitri é impulsivo, apaixonado, violento e movido por um profundo sentimento de injustiça para com o pai Karamazóv. Ivan é um intelectual introspetivo, que busca a solidão para desenvolver ideias revolucionárias e que rejeita a ideia dde Deus. Segundo Ivan, sem Deus tudo seria permitido. É a ele que se atribui o capítulo intitulado O Grande Inquisidor. Freud, que estudou esta obra a fundo para melhor compreender a psique do seu autor e as riquíssimas reflexões psicológicas nela contidas, considera esse trecho o que de melhor se produziu em literatura, e este romance em particular a maior obra da História. Nesse capítulo, Ivan expõe um seu poema em que opõe Jesus Cristo retornado para junto dos homens ao Grande Inquisidor, na Sevilha do século XVI. As reflexões que resultam dessa colisão – um livre pensador e um guardião da igreja – são atuais e pertinentes, e com toda a certeza escandalosas para a época.

"Eu sustento que basta destruir a ideia de Deus no homem, é por aí que deve começar. Oh, raça de cegos que nada compreendem! Quando todos os homens tiverem negado Deus… e eu creio que a época do ateísmo universal chegará (…) o velho conceito do universo desmoronar-se-á por si mesmo, sem canibalismo, desaparecerá a velha moral e tudo começará de novo. Os homens unir-se-ão para arrancar da vida tudo o que ela tiver para dar, mas só para o gozo e a felicidade da terra; enaltecer-se-ão nas asas do seu espírito, animado por um orgulho titânico, e aparecerá o homem-Deus. De dia para dia, ampliando indefinidamente as suas conquistas sobre a natureza através da ciência e da vontade, experimentando um tão íntimo prazer nisso mesmo que se compensarão com juros das suas antigas esperanças de gozos eternos. Todos saberão que são mortais e enfrentarão a morte com orgulho e serenidade de deuses.”


A história desenvolve-se de encontro em encontro, de monólogo em monólogo. É favorecido o encontro privado, onde as pessoas se revelam na sua essência, mas também se dão cenas de ajuntamentos, em que o autor teceu com mestria as nuances dos sentimentos e das ideias de cada interveniente, e ainda bordou com esmero os ímpetos da alma coletiva. Destaco a cena no Mosteiro, ao qual se havia juntado Aliocha (o anjo Aliocha), o presbítero (entidade moral máxima naquela comunidade), Dmitri, com as suas acusações e declarado rancor ao pai, Ivan, observador e racional, e um familiar afastado que se exaspera e choca com as ofensas trocadas entre pai e filho. A cena chega a ser cómica, mas o travo a tragédia eminente está sempre presente.

Aliocha é uma personagem de grande espiritualidade e comedimento, a voz que consola os dissabores das outras personagens e que, apesar de jovem, tem sempre um conselho sábio a prestar. Segundo Freud, deve o nome e parte da sua aura ao facto de que o próprio casal Dostoiesvki havia perdido um filho homónimo (Alexey) com a idade de três anos, pouco antes de dar início a esta empreitada.

É uma obra muito cerebral, mas também apaixonada. Cerebral porque o autor foi abrindo questões cujas respostas iam surgindo oportunamente ao longo da sua extensão. Por outro lado é uma obra de grande emotividade, porque são as paixões que movem os ódios e os amores dos Karamazóv, tantas vezes apontados como “uma família à parte” pelas personagens que com eles se cruzam, mas que, com toda a certeza, são um espelho fidedigno da Rússia do século XIX.

Sabemos que Dostoievski, tendo falecido com apenas 59 anos, viveu uma vida de grandes sobressaltos. O pai seria um tirano, o jovem sofreria de epilepsia, foi submetido a trabalhos forçados na Sibéria, desprezava o czar e a Rússia Imperial, e professava um ténue socialismo, bem como outras crenças que haveria de consolidar ao longo da sua vida.

Os Irmãos Karamazov é um romance de grande espiritualidade e senso filosófico, em que o autor não deixa de se questionar acerca da família, de Deus, da natureza humana e seus consequentes atos e impulsos. Uma obra maior que, um dia, espero encontrar alento para reler. Estou convencida de que, nas suas entrelinhas, virei ainda a deslindar muitas outras conclusões.

 

Classificação: 5/5******

Livros tão maus que não deu para parar de ler

Há quem ache que ler um livro qualquer é melhor do que não ler livro algum, mas eu não concordo, mesmo porque já tive péssimas experiências com algumas leituras.

Deixo-vos os meus traumas literários com as respetivas reviews. 

Tem toda a razão todos os que disserem que com estas escolhas literárias só podia acabar em desilusão, mas reparem que há um Nobel no meio!

 

A Música do Tempo, Margarida Afonso

De longe, sem sombra de dúvida e, inesquecivelmente: o pior livro que alguma vez li. Uma perda de tempo total.

Uma dondoca fútil, que nada deve à inteligência, com problemas insignificantes a consagrar-se desgraçadamente em baixo, tudo alinhavado pela pior escrita com que alguma vez me deparei. Já o li há pelo menos cinco anos, e recordo-me de não ter conseguido parar, devido ao absurdo dos diálogos, das situações. Recordo-me de a dondoca passear na própria propriedade, apontar um limoeiro e perguntar a um funcionário o que faziam com os limões. Marcou todos os pontos: pelo pior.

Em segunda edição!

Não há boas fotografias, mas podem espreitá-lo aqui.

 

Uma Escolha Por Amor, Nicholas Sparks

moralmente questionável

Uma-Escolha-por-Amor.jpg

É para aí o décimo livro que leio de Nicholas Sparks depois de uma pausa de alguns anos… o último que tinha lido foi o Juntos ao Luar. Resumindo: continua o mesmo. Se querem conhecer o estilo recorrente de NS somem estes ingredientes:
- Muitos diálogos a propósito de nada com piadas aleatórias.
- Chavalinho porreiro com covinhas na cara que bebe cerveja
- Chavalinha com mau feitio que bebe Diet Coke
- Encontros comuns – jantares, barbecues – combinados e sem nada de espontâneo, onde eles discutem a espontaneidade e decidem que vão dar um mergulho, aprender a andar de mota, algo do género.
- Beijos conservadores no final desse primeiro encontro
- Um viúvo
- Alguém estéril
- Um acidente
- Uma doença
- Um cão
- Uma ligação inexplicável com um animal que não lembra a ninguém – como o Noah da Alquimia do Amor com o cisne, ou agora o Travis com um pombo.
- Um dilema moral complicado, do género: a) ela está a morrer, vale a pena ficar com ela? b) ela diz que para ficar com ela tenho que deixar de mandar garrafas com mensagens à minha mulher que morreu c) ela não pode ter filhos, fico com ela? d) o irmão dela é que atropelou e matou a minha mulher, fico com ela? e) ela pediu que, caso ficasse em coma, etc., eu devia desligar as máquinas ao final de doze semanas. Desligo?
Este dilema e) teria dado um livro excelente. A sério. Gabo-lhe o ter pensado nessa questão, embora não seja totalmente nova, e teria sofrido e vivido realmente este tema. Tudo porque, saberei lá eu explicar, fiz o mesmo pedido a uma pessoa próxima. Se por algum motivo ficar em estado vegetativo, ajudem-me a morrer, já que cá não se pode escolher esse desligar das máquinas, segundo sei. A pessoa disse que não o faria. Não o faria porque gosta de mim. Bom eu devo ter uma ideia muito distorcida do amor, detestei. Não, detestei não chega, DETESTEI, em caps, a mensagem que o Sparks passa neste livro. Fiquei indignada com a pequenhez deste amor que ele descreve e que vende, e que muitas mulheres/homens, se é que o lêem, compram como o ideal. O único, o genuíno. E a dignidade humana? A mulher teria de ficar meses – anos…! – à espera de acordar numa cama, quem sabe se aprisionada no próprio corpo mas consciente, a ansiar por ser libertada? Por poder morrer? Para lhe removerem os tubos que lhe sustêm a vida? Com o corpo a atrofiar-se? O rabo a ser limpo por terceiros? Amor, para mim, tem de ser mais. Mais do que ele gostar dela e não imaginar a vida sem ela. Se a ama respeita-a. Se a respeita cumpre o que ela lhe pediu, em desespero. Mas não, mais vale arriscar, queimar os papéis legais onde ela estipula esse pedido e fazer figas para que ainda esteja vivo um dia, se ela acordar. E depois, como é Nicholas Sparks *spoiler* a senhora claro que acorda. E nem se zanga! É escusado dizer que, se fosse eu, embora agradecesse a oportunidade para ter regressado, me separasse quase certamente de um homem em que não podia confiar. É isso o amor, não? Pedir a alguém que nos dê voz quando ela nos falta, e esperar que repita as nossas palavras sem egoísmos. E ele foi egoísta, tão egoísta…! Não concebo amores assim.

Passada a fase da indignação acrescento que isto representa a segunda parte do livro. A primeira deve-se ao modo como estes dois vizinhos se conhecem e a sinopse só se debruça sobre ela. Ora a senhora tem namorado – quase noivo – e, ao final de três dias, já anda enrolada com o vizinho. True love, says Nicholas Sparks. Devo mencionar que, dias depois quando um colega de trabalho dela tenta beijá-la o dito vizinho o esmurra e a aconselha a abrir um processo contra ele de agressão física? Fuck logic. Onde está a explicação dela ao namorado quando o larga? O livro sofre um pulo. Ora estão a passear de mota e conhecem-se há três dias, ora já ela está em coma e ele a ama perdidamente, anos depois, casados e com filhos. O senhor escreveu o livro nos joelhos. A Presença, mesmo na 8ª edição, tem o livro cheio de gralhas. Não admira que seja dos dele de que menos se fala…

Enfim, se eu entrar em coma, se eu tiver um AVC e não puder falar, se eu partir o pescoço e implorar a alguém que me ajude a ter paz, façam-no! Como dizia Ramón Sampedro (Mar Adentro), Aquele que me ama é aquele que me ajudará a morrer.

PS - O nome do livro devia ser "Uma Escolha por Egoísmo Que Acaba Bem Porque, Afinal, é Nicholas Sparks"

A Valsa Esquecida, Anne Enright

1187754Anne.jpg

sem alma, sem sal

Sou um bocadinho snobe no que diz respeito a literatura. Bom, é verdade, admito. Eu própria me envergonho disso por dois motivos que considero válidos; primeiro porque a leitura é extraída da escrita, e a escrita, como arte que é, é subjectiva. Toca uns e passa ao lado de outros.

Mas este A Valsa Esquecida intrigou-me. Foi nomeado para um Orange Prize, tem uma capa que apela à melancolia, à reflexão e aos valores morais e enraizados... não? A mim foi essa ideia que passou. Agora adivinhem? Eu não entendo porque é que o livro tem este título - nem valsas, nem convenções, nem um passado para esquecer, nada que se lhe associe. E a capa? Bom a ideia que tenho da protagonista é uma trintona de ganga e cabedal, cabelos curtos, álcool e maquilhagem a mais. Onde é que isto combina com a saia e os sapatinhos clássicos da senhora na capa?

Ponto positivo: a escritora e o cenário são irlandeses e, visto que vou à Irlanda em Setembro, teve para mim, um interesse particular.

Ponto negativo: fiquei na mesma quanto à Irlanda, a escritora não aproveitou a visibilidade para falar de nada que não da crise e do sector imobiliário.

Personagens: mas que azar é este que tenho com as personagens? Perguntei-me, ao terminar o livro, se sou eu que embirro. Senti-me ligeiramente decepcionada por ter a certeza de que ia gostar do 2º livro da Balogh publicado em Portugal. Perguntei-me se seria o género: será por amar tanto os romances históricos que me aborreci de morte com este da Enright? Mas tive a minha resposta: na segunda página do Um Verão Inesquecível, já eu estava a rir. Já o personagem masculino foi apresentado, com toda a margem que há-de haver para as suas inconstâncias e imprevisibilidades. Já os homens na multidão tinham mais alma, mais profundidade, mais dimensões, do que a cabecinha oca da Gina e o canalha do Seán deste A Valsa Esquecida.

A dado momento o romance resvalou do foco do romance extraconjugal para a filha do adúltero, que tem epilepsia. Ora bem quando o casal esmoreceu - alguma vez houve chama? Aí pela página 160 de 225 (aprox.) a autora lembrou-se de remexer na filha. De "inventar" uma relação entre a adúltera e a filha do adúltero. Relação cliché, mal explorada, vazia, até porque a Gina não tem nada de terno, vulnerável ou maternal. A cabeça do Seán? Nunca entendemos. O porquê daquela atracção mútua? Idem.

O que salva o romance - muito repetitivo em cenários, muitas festas com os mesmos convidados, álcool, pseudo-dramas e rotina doméstica aborrecida - são os trechos, as associações espirituosas ocasionais que sugerem que a Anne, de facto, tem talento. Este só não é um livro que eleve o seu potencial.

PS - Voei sobre as últimas cinquenta páginas...

 

Uma Promessa de Amor, Tiago Rebelo

o segredo é escrever livros com um pézinho no estrangeiro, mas nem isso os salva

Talvez deva gabar a perícia que este senhor tem para reconhecer crianças nos homens. É o segundo livro dele que leio e, segundo sei, a fórmula é a mesma. Metem-se duas mulheres ao barulho, maduras e admiráveis, e um homem indeciso como uma criança numa loja de doces. Recorta-se uma cena em duas, mete-se metade no início e metade no fim e tem-se assim uma fórmula “infalível”. Depois é preciso que as mulheres digam que estão fartas de ser espezinhadas, e que o homem seja tão encantador – e encantador é a palavra favorita do autor – que lhe dê a volta no final sabe-se lá como (ele também não se dá ao trabalho de explicar). O que dizer deste romance em específico?
Temos uma mulher (Luz María) presa ao regime cubano – encantadora – que tem um caso quase fortuito com um homem-criança, idiota, atraente, metido por entre todas as saias que passam. Temos essa mulher a quase arriscar a vida para conseguir fugir do país, com a mãe atrelada. Depois temos outra mulher (Isabel) com uma carreira de sucesso no ramo da publicidade, cuja vida já foi inúmeras vezes estraçalhada pelo mesmo homem que ela considera o amor da sua vida, e a quem este Lourenço, também homem-criança, considera o amor da sua. Posto isto, não entendo como é que a mestria deste senhor se mete a enrolar as cabeças das pessoas. A mim parece-me tudo muito simples – ele passou a vida a destruir a felicidade da mulher que diz amar (apetece-me rir pelo facto de ela, aparentemente, lhe ter dado essas oportunidades todas), e então vem a cubana. A cubana, uma mulher admirável, sem dúvida, embora nunca se entenda muito bem o que a move – sem ser o desejo por liberdade, que me parece comum a qualquer ser-humano num regime opressivo – e por quem ele se encanta. E o encantamento é suficiente para, uma vez que não pode tê-la, meter novamente “a mulher da sua vida” na gaveta. Foi o final que me chocou mais quando uma destas mulheres, descritas como fortes e dignas pelo autor, decide aceitá-lo. E desvie agora os olhos quem tiver intenções de embarcar neste mar de frases feitas, informações dispensáveis e evidente falta de empenho do autor. Mas ela ACEITA-O. Para mim era evidente que o final do livro é cada uma delas a dispensar o idiota do homem, que viveu por entre pernas uma vida inteira, que se despiu da Isabel porque “não estava preparado”, que voltou para ela só para voltar a deixá-la uma e outra vez. Que final mais perfeito, mais adulto, seria este? Desdenhou tantas vezes do doce que devia era ficar sozinho na sua casa “enorme” no Parque das Nações, a beber o típico uísque e a olhar para as luzes da Vasco da Gama. Aí sim, talvez eu admirasse um pouco este livro. Agora um final feliz para um pulha? Uma mulher de personalidade forte a submeter-se outra vez?
Poupa-me, Tiago. Não me convenceste.

 

Mariana, Meu Amor, Margarida Rebelo Pinto

um pontapé numa figura histórica que muito acarinho

27434836._UY630_SR1200,630_.jpg

Vou tentar ser concisa nesta review, e portanto vou separar as águas por pontos.

Motivação: Voltei a pegar num livro da Margarida Rebelo Pinto, após o trauma anterior, sem sombra de dúvida por causa do chamariz da história da Mariana Alcoforado. Para quem não sabe (e que pelo livro dificilmente entenderá, pelo que aconselho antes a leitura de “Mariana”, da Katherine Vaz), trata-se de uma fidalga encarcerada pelo pai no Convento da Conceição de Beja, na segunda metade do século XVII. Mariana escreveu cinco cartas inflamadas ao seu apaixonado, o Marquês de Chamilly, que andava por cá a combater os castelhanos. O sucesso de vendas foi imediato e duradouro em França, e acabou por ser traduzido noutras línguas. “Cartas de uma Religiosa Portuguesa”. Como já previa, o engodo saiu gorado. A acção nem sequer decorre nessa época, mas sim na actualidade. Uma jornalista anda a registar a história da Soror Mariana. A história de amor disfuncional da jornalista Alice, bem ao estilo de todas as que a Margarida conta desde que aprendeu a escrever, é o fio condutor da história.

Revisão: O livro parece carecer de uma revisão séria. Surgem frases como “O coração, a quem…”, estrangeirismos metidos pelo meio do livro e sem itálico, tipo “out of the blue”, etc., etc. Por várias vezes tive de reler uma frase na tentativa de entender o seu sentido, posto que as vírgulas andavam desencontradas.

Romance contemporâneo: Como escritora, antiga estudante de literatura, não entendo como a Margarida pode ter adoptado este estilo. Não é “leve”, é “pena”. Profundidade nem vê-la. A escrita é acessível à minha irmã de 9 anos, com algumas deixas a respeito de tecnologias que me deixaram de sobrancelha erguida. “O Pedro mandou-me um Whatsapp”. Eu pensava que o Whatsapp era uma aplicação, e que se diria algo como “O Pedro mandou-me uma mensagem no Whatsapp”. Afinal, parece que podemos mandar a aplicação uns aos outros. O Pedro é o “vilão” deste livro. Com a Guida há sempre um tipo que lixou a vida da principal, que a ama mas é um cobarde, que a deixou e não responde às mensagens. Nesta “obra” não é excepção. A Alice meteu-se com um homem casado, que não deixa a mulher e os filhos por ela. Surpreendeu-me ter gostado q.b. deste enredo até à página cem. Foi a descrição do Rio de Janeiro e dos brasileiros, e também das pessoas com quem a Alice se ia cruzando, as águas de coco, o paredão e algum conhecimento evidente da cidade sobre a qual se escrevia e dos hábitos culturais dos cariocas. Havia a certeza da Alice de que o Pedro gostava dela, mas era demasiado cobarde para arriscar mudar de vida. Pronto, até à página cem funciona. Depois torna-se maçador, é sempre mais do mesmo. Todos lhe dizem que é linda e deveria seguir em frente. Basicamente, o romance contemporâneo são duzentas e cinquenta páginas de uma Alice a lamuriar-se, enquanto se diz forte e independente, e enquanto os outros lhe elogiam a liberdade. São duzentas páginas de “ele não me liga nenhuma”, e de “não consigo esquecê-lo”, e da história da Mariana enfiada pelo meio, a ultrapassar o Nöel à força, à laia de lição de vida amorosa. Incongruências? Os pais da Alice são toxicodependentes, mas nunca bateram à porta dos pais a pedir dinheiro, nunca procuraram a filha com esse fim. Quando o pai morre, deixa mil e setecentos euros e o hospital pago em antecipado. Que rico drogado este, que em três décadas manteve sempre o controlo sobre o vício e ainda morre num hospital privado, ainda que sozinho, com quase dois mil euros no bolso. Minha gente… Uma pessoa agarrada ao “cavalo”, como a Margarida se refere à heroína, anda sempre no limiar da miséria. Garanto que não teria um euro no bolso. Enfim, um livro com este enredo, em 120 páginas, até seria minimamente tolerável. De 300 é impensável, repetitivo, aborrecido. Também não gosto da maneira como ela conduz a narrativa. “Acordei às dez, tomei um duche, comi uma maçã e fui às compras. Bebi um café, voltei para casa e escrevi dez páginas do livro novo”. E da futilidade das relações, dos melhores amigos que se fazem após uma conversa, das mil e uma personagens cuja história é resumida em dois parágrafos, do homem que amamos por causa do cheiro, da elegância e do desprezo a que nos vota, do tipo com quem dormimos porque está na hora de seguir em frente e ele estava ali, naquele bar, naquela noite, e nos disse que éramos bonitas. Mas o pior está para vir… Ah, e já vos disse que a alcunha da personagem principal é Açúcar? "Oh Açúcar, tens de o esquecer!".

Mariana Alcoforado: Completamente assassinada. Para quem leu e releu as cartas, como eu, a Mariana não é nada daquilo que a Margarida descreve. E há visões que terei de apagar da memória, para poder preservar a ideia daquela que é, para mim, a mais notável história de amor do nosso país. Maior do que a de Pedro e Inês, que julgo baseada sobretudo em luxúria, e na traição da pobre Constança. A felicidade desses dois constrói-se sobre a desgraça da princesa e a possível perda de independência do reino. No caso da Mariana, falamos da vida pessoal de uma jovem de boas famílias, cuja contrariedade por ter sido fechada num convento transparece a cada palavra das suas cartas. Uma mulher confinada cujas palavras escapam às paredes do convento e chegam aos confins da Europa para confidenciar a sua solidão e o seu amor desmesurado pelo Marquês de Chamilly. É evidente que ele a conspurcou, que ela se deixou ir por acreditar nas suas promessas de amor eterno e de que voltaria para a resgatar do Convento. Porém, e sem me alongar, a abordagem da Margarida é a seguinte: sempre na primeira pessoa, a Mariana narra, ao longo de 4 dias, a sua história de amor a uma noviça muda. Teria então 75 anos e analisa tudo em retrospectiva. Porém, a falta de sensibilidade da Margarida neste ponto do romance é constrangedora. A voz que empresta a Mariana jamais pode pertencer-lhe: esta mulher conformada, entregue à vida religiosa e que se queixa do amor da sua vida, a quem chama “crápula” e outras coisas que agora não me recordo e que me soavam igualmente abrasileiradas. A linguagem está desfasada da época, parece-me. “Devo cuidar da higiene do convento”, ou algo semelhante. Higiene? Este conceito não me parece muito seiscentista. Enfim, o pior mesmo foi o modo como, quase no fim do livro, ela continua a repetir “Benedita, vou contar-te a história deste amor, regista tudo o que digo”. E depois divaga sobre o amor e o sexo – muito entendida, esta freira que só teve um amante, e que foi enclausurada num convento aos dezasseis anos. Mas pior é mesmo o modo como há sempre descrições de sexo nas lições desta Abadessa à sua pupila, de modo vulgar e incomodativo. Toda eu me encolhia ao ler a minha “suposta” Mariana a dizer que o Marquês de Chamilly “a penetrava” assim, a “possuía” assado, mas pior ainda… Que tinha um “membro muito grande”, e que ela lho dizia, ou que uma mulher deve dar prazer ao homem de todos os modos que souber, por exemplo “montando-o”, e que o faziam todas as noites, despachando depois os lençóis para uma noviça lavar. O que me matou (fechei o livro, apaguei a luz e enrolei-me em posição fetal de olhos muito abertos no escuro), foi ler que (view spoiler). Morte ao amor, viva às lições sexuais da freira enclausurada. Não acredito que uma velha abadessa de 75 anos tenha necessidade de contar tais coisas, pensei que falariam do amor, das conversas, dos detalhes do enamoramento, mas não. Aqui fala-se do modo como fornicavam, e basta. Também adorei ler a Mariana a avisar a freirinha dos homens maus, do modo como abandonam as mulheres, como “se não nos respondem às cartas é porque já não têm nada a dizer”, e como há por aí “violadores”. Espantoso o acesso à informação que uma freira enclausurada tinha, e sobretudo o quão progressistas eram estes termos e visões da sociedade. Ah e a HISTÓRIA? Enxurradas de números e datas sobre guerras, e está feito. É mentira, a Mariana é só um engodo para fingir que a MRP é capaz de escrever um romance histórico (nem de época, quanto mais histórico!!!). Se é pela Mariana que vêm, fujam!

Apreciação geral: Tirando partes do romance da tal Alice, a que até achei alguma graça, a mulher não sai do mesmo. A criatura arrasta-se, queixa-se a todos, todos lhe perguntam se está bem, se já o esqueceu… Bem, dá a ideia de que o amor é isto: na gaveta, à espera que ele precise de nós como que a um par de cuecas limpas. E já me estou a repetir, pareço ela.

Duas estrelas: 1 pelo Brasil, 1 porque reservo o 1* somente para livros que nem podem ser apelidados de tal.

 

Toni Morrison, Deus Ajude a Criança

Do pior que jamais li

”Sem aprofundarem muito, partiram do princípio de que os três viveriam juntos, pelo menos até Queen poder cuidar de si”

29955956._UY630_SR1200,630_.jpgNos últimos tempos, tenho lido muitos livros bons. Li O Som e a Fúria, li As Vinhas da Ira, li À Espera No Centeio, li Mataram a Cotovia. Posto isto, peguei nesta pequena obra de Toni Morrison, uma autora nova para mim, porque o tema do racismo me interessa genuinamente. Já o explorei nalguns destes romances, e esperava algo ainda mais pungente, ainda mais avassalador, neste Deus ajude a criança, porque a ação nos chega pelo punho de uma negra laureada com o Nobel, nascida em 1931 e que, até pela época em que viveu a sua juventude, deve ter contos de arrepiar a respeito do assunto.

Não sei se comecei pelo livro errado, ainda tenho ali outro da autora na prateleira, mas o certo é que detestei. Oh, se detestei. Detestei-o da página 1 à 149, mas mais ainda da 150 à 157. Vou tentar resumir porque me causa o livro tanta aversão em termos gerais, e depois vou pôr um filtro de spoilers para dizer porque é que um pobre e inocente romance de 157 páginas me causa tanta indignação.

Comecemos do modo politicamente correto: as personagens são fúteis e superficiais. Pode dizer-se isto de personagens que saíram do punho de um Nobel? Diria que sim, se este acaso lhe fosse intencional. Só que não é. O que a autora faz neste romance já vi ser feito muitas vezes: pega-se em personagens de duas dimensões, irritantes, inconsequentes e incoerentes, e pinta-se-lhes um passado infeliz. A partir daí, é como se a tivéssemos enchido de substância. Já não é fútil, é revoltada. Já não é irritante, é reativa. E também não é inconsequente, está é perturbada. Só que as personagens deste livro, da primeira à última, são de um vazio de dar dó.

Comecemos pela personagem principal, Bride. "Bride" é o apelido que Lula Ann escolheu para si própria. É estúpido, mas podia ser só isso. Não, na realidade, não consigo escolher um nome melhor para uma personagem tão chata como esta Bride. O nome calha-lhe que nem ginjas. De seguida, temos Brooklyn, a amiga de Bride. Nem me ponham a falar dessa amizade entre a menina preta-ónix e a menina loirinha e pálida de rastas loiras. Não acrescentou uma vírgula ao romance, exceto descrevê-las exaustivamente a nível físico, para vermos como são diferentes e como os brancos até podem ter os seus traumas. Depois temos Booker, o ex-qualquer coisa de Bride. Nunca entendemos porque é que gostam um do outro, porque é que se apaixonaram, se estão apaixonados ou se é só o sexo que era maravilhoso. Isto também me faz imensa confusão nos romances: quando os autores nos atiram personagens que são autênticos protótipos do falhanço da nossa espécie, que não conseguem conduzir um carro sem bater, que só fazem disparates, são desastrados, só se metem em problemas, mas, por acaso, são todos deuses no sexo. E como há aquele ênfase aborrecido no sexo e em como sexo de outro mundo é suficiente para forjar relações. “Ele era complicado, mas o sexo era divinal”. Pronto, isto é a relação da Bride com o Booker. Mas há mais personagens, há a Julie, a Raisin/Rain, a Sofia Huxley/ex-professora da Bride, a mãe da Bride, todas muito iguais. Demasiado iguais. Já explicarei abaixo quão iguais.

Agora, para finalizar o excerto sem spoilers… Imaginem uma história que se quer sobre o racismo, um racismo tão acutilante que a premissa principal vendida na sinopse é a de uma mãe que despreza a própria filha pela cor da sua pele. Parece-me um mundo de possibilidades e, no entanto, saíram todas goradas. Parecia-me que estava a ler um livro da Lesley Pearse, tragédia após tragédia. Não há um dedo de credível neste romance. A autora não quis saber de realismo. Pensou “quantas tragédias consigo enfiar num livro passado em para aí dois meses e em 157 páginas?”, e enfiou-as todas. Com especial incidência no racismo, abusos sexuais e desastres em geral. Pois é, esperava uma coisa composta e saiu-me este esboço sobre uma negra da cor da noite cujos atributos físicos vêm referidos até à exaustão, de uma futilidade embaraçosa, tudo num emaranhado de situações irrealizáveis que me puseram num constante estado de a sério?. Gostaria de dizer que foi isso me impediu de viver a história, mas a verdade é que não há história. Não entendo a quantidade de boas reviews. A medicação deve estar a afetar-me o discernimento.

Para culminar, o livro segue a várias vozes que, em vez de acrescentarem algo de novo, só repetem a mesma circunstância pela segunda e às vezes terceira vez. Num livro tão pequeno, é dose.

 

E vocês, quais são os piores livros que jamais leram?